O conceito de democracia no jovem Marx

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Por PAULO BUTTI DE LIMA*

Em seus comentários críticos às reflexões hegelianas, Marx, ao considerar a democracia, adota, como ponto de partida, a soberania popular

O tema da democracia se apresenta no jovem Karl Marx a partir de um intenso diálogo crítico com as ideias de Hegel sobre o Estado, nos termos, porém, de uma reflexão inseparável da luta concreta dos movimentos sociais e políticos que assumem a democracia como palavra de ordem. Na base desta dupla relação, teórica e prática, Marx vai se exprimir sobre as múltiplas concepções de democracia, tais como encontradas nos vários contextos e nos momentos diferentes de luta política: no que diz respeito, por exemplo, à realidade alemã ou francesa, Marx se oporá aos por ele designados “democráticos (pequeno) burgueses”; julgará, ao contrário, com maior favor os democráticos (radicais) ingleses e oferecerá uma avaliação ainda diferente da reflexão democrática como desenvolvida na América.

Na perspectiva, enfim, de uma teoria da transformação social, a democracia poderá mostrar-se como o resultado, mesmo que temporário, de um processo revolucionário. Sufrágio universal, ativo e passivo, e fim do Estado com a instauração da sociedade comunista são os dois principais parâmetros que orientam a reflexão de Marx sobre a democracia, de acordo com uma precisa periodização e com os fins mais ou menos programáticos de suas publicações.

Com a crítica de Marx à democracia “burguesa”, a experiência da humanidade na infância de seu processo histórico pode assumir um aspecto mais democrático. Tendo, porém, em vista a superação da forma estatal, os procedimentos sentidos como “democráticos” assumem um caráter provisório, mesmo quando incluídos nos programas das forças progressistas e revolucionárias. No futuro da sociedade comunista, a destruição do Estado (e o fim da distinção entre o âmbito civil e político) manterá alguns valores da democracia, apesar de esta ser, em princípio, uma forma política.

A democracia antiga ocupa uma posição só em aparência secundária no interior dessa reflexão. A superação da cesura entre sociedade civil e Estado – um elemento de reflexão já presente na crítica do jovem Marx a Hegel – relaciona, de certa forma, o mundo grego antigo à situação política futura. Aceitando, em parte, as considerações hegelianas, Marx sublinha, ao longo de seu percurso intelectual, a relação íntima entre a democracia antiga e a escravidão, assim como a visão da Antiguidade como momento histórico superado, mesmo se situado em uma posição ideal: uma ambiguidade que se concretiza na concepção do mundo antigo como infância da humanidade.

E ainda, na esteira de Hegel, Marx reafirma a relação (“moderna”) entre economia e política, retomando de seu predecessor a distinção entre sociedade civil e Estado: um processo que distancia do horizonte político moderno a democracia dos antigos. Mas a chave de leitura da “verdadeira democracia” não é dada pela interpretação hegeliana da realidade estatal, e deve ser procurada em um outro momento, que não na Antiguidade clássica.

As críticas de Marx à concepção hegeliana da democracia remontam a 1843 e foram publicadas postumamente. Nessa sua primeira contribuição ao problema democrático, uma das discussões mais longas que dedicou a esse argumento, Marx reabilita a democracia como condição do discurso político. Hegel procurava reformular os próprios critérios de avaliação dos tipos de governo segundo a visão de um processo histórico em que a forma democrática de organização social e política é restrita a um passado distante e superado.

A argumentação desenvolvida por Hegel na Filosofia do direito é invertida pelo seu jovem leitor: não somente o problema da democracia não se enquadra em uma reflexão antiquada sobre as formas de governo, mas é a democracia que torna possível a própria reflexão política. O argumento é central em um texto que, por sua vez, se mostra decisivo para as interpretações do pensamento de Marx: se para alguns nos encontramos aqui diante de uma visão juvenil que será em seguida abandonada pelo autor (podendo, portanto, oferecer a medida da evolução de seu pensamento), para outros, a discussão das teses hegelianas antecipa as ideias políticas do período da maturidade. Em um caso como no outro, o tema da democracia se insere no centro do percurso intelectual de Marx, visto segundo continuidade ou ruptura.

A crítica de Marx a Hegel se desenvolve a partir de dois temas centrais: por um lado, à diferença entre sociedade civil e Estado; por outro, à oposição entre monarquia e república-democracia. A cidade grega, segundo Marx, não conhece uma separação efetiva entre o âmbito social e político. A sua forma unitária é um elemento de distinção entre antigo e moderno. A modernidade política se baseia na ruptura entre a esfera civil e a estatal. A teoria dos tipos de governo, que se apresenta no mundo moderno como uma herança antiga, deve ser adaptada a essa sua nova moldura, para não ser abandonada. Ao contrário da monarquia em Hegel, a democracia representa a superação de uma divisão que é própria aos modernos e que não era conhecida pelos antigos.

O texto de Marx assume a forma de um comentário crítico às reflexões hegelianas. Ao considerar a democracia, o ponto de partida é a soberania popular. Diz Hegel, citado por Marx, que não se pode aceitar essa noção como equivalente à noção de república, ou de maneira mais específica, à de democracia. A identificação entre soberania popular e república, como vimos, era kantiana, já a sua interpretação democrática remetia a Rousseau e sua herança no período revolucionário. Ao afastamento da democracia como algo do passado, Marx responde afirmando a precedência da democracia sobre as demais formas políticas. Se Hegel exclui a democracia em vista de uma “ideia desenvolvida”, Marx vê nessa ideia a própria democracia: “A democracia é a verdade da monarquia, a monarquia não é a verdade da democracia. A monarquia é necessariamente democracia como inconsequência contra si mesma, o momento monárquico não é uma inconsequência na democracia. Ao contrário da monarquia, a democracia não pode ser explicada a partir de si mesma”.

O que pode ser concebido por si mesmo é obviamente anterior, precedendo o que é, ao contrário, concebido através de outra coisa. A monarquia não é somente sucessiva à democracia, mas é uma de suas formas degeneradas. Todo elemento democrático é igual a si mesmo e não assume, politicamente, um significado “diferente do que lhe cabe”, sendo “apenas um momento de todo o demos”. Na monarquia, “uma parte determina o caráter do todo”. Nessa relação entre o todo e a parte, a democracia pode ser vista como o gênero da constituição, enquanto a monarquia aparece como uma de suas espécies. Sendo degenerada, a monarquia é a espécie “má” do gênero constitucional que é, em seu todo, democrático.

Marx não menciona uma democracia originária, quando define um tal gênero democrático do qual derivam as constituições particulares degeneradas, como a monarquia, mesmo porque, nesse contexto, não se fala necessariamente de uma relação genealógica ou histórica. A referência, porém, é sempre a algo precedente, como fica implícito nas teorias da democracia primitiva. Todas as outras formas de governo são compreensíveis somente a partir da peculiaridade democrática. A democracia pode, assim, oferecer o fundamento humano do mundo político: “A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último. A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem”.

Que a democracia esteja para todas as demais formas políticas “como para seu Antigo Testamento” reconfirma o pressuposto de uma anterioridade democrática que pode assumir forma histórica. A compreensão justa desse enigma da política não se encontra em um momento qualquer da Antiguidade, mas entre os modernos. Os franceses entenderam a verdadeira natureza da democracia, que implica o desaparecimento do Estado político: em si mesmo, o Estado “não vale mais pelo todo”, e, portanto, não pode assumir plenamente o ideal democrático.

Todavia, torna-se evidente que, em um tal contexto, no qual também a forma republicana se mostra como uma abstração política em relação à democracia (poder-se-ia dizer: Roma em relação a Atenas), a primazia da política confere aos antigos uma posição paradigmática. Entre os antigos, o Estado político “constitui o conteúdo do Estado por exclusão das outras esferas”; não se vê o mesmo no Estado moderno, que representa, ao contrário, um “compromisso entre o Estado político e o não político”.

A superação desse compromisso não reintroduz, porém, a realidade anterior, unitária. O mundo grego é lembrado por Marx, nesse comentário, somente após o mundo medieval, e a verdade representada pela democracia – o enigma resolvido – é enfraquecida pela presença, nesse mundo, da escravidão. Mas a escravidão torna-se também a metáfora com a qual Marx descreve a relação entre os cidadãos das cidades antigas e o Estado, antes da separação moderna entre estas esferas: na Grécia, “o homem privado é escravo, o Estado político como tal sendo o conteúdo verdadeiro, único de sua vida e de sua vontade; ou, como no despotismo asiático, o Estado político é somente o arbítrio privado de um indivíduo singular, ou seja, o Estado político, como o Estado material, é escravo”.

Marx acrescenta que, entre os gregos, a sociedade civil era escrava da sociedade política. A instituição concreta da escravidão é, então, evocada como imagem da submissão do âmbito civil ao político. A exclusão da Grécia como ideal democrático é determinada pelo fato de que o Estado político deva perecer (no mundo moderno), em vez de se impor como déspota (como entre os antigos). A cesura moderna entre sociedade civil e sociedade política deve ser resolvida em sentido oposto ao predomínio da polis grega.

A posição da democracia como gênero é reelaborada por Marx em seus escritos sucessivos com a introdução do tema do comunismo. A noção de comunismo primitivo reforça a visão do papel marginal dos gregos na representação ideal das relações civis e políticas. O comunismo, por um lado, a dialética, por outro, são os termos do vocabulário marxista que definem então os limites da interpretação histórica e programática da democracia. […]

Nos Manuscritos econômico-filosóficos procura-se, por conseguinte, esclarecer a relação entre comunismo e formas políticas. Enquanto conserva sua natureza política, o comunismo é “democrático ou despótico”. Isso ocorre, porém, em um momento imperfeito, em que está presente a propriedade privada e, ao mesmo tempo, se toma consciência da “reintegração ou retorno do homem a si”. A natureza democrática – ou, em alternativa, despótica – do comunismo, ou seja, a conservação da esfera política, assim como a sua convivência com a propriedade privada são elementos de progresso, mas incompletos diante de uma natureza humana não distinta entre as esferas civil e política. Reelaborando a expressão com a qual, na crítica a Hegel, indicava a democracia, Marx pode agora definir o comunismo como “o enigma resolvido da história”.

*Paulo Butti de Lima é professor na Universidade de Bari, Itália. Autor, entre outros livros, de Platão: Uma poética para a filosofia (Perspectiva).

Trecho do livro Democracia: a invenção dos antigos e os usos dos modernos (EdUFF).

 

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