Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Em nome da família muitos votam em Bolsonaro, sem perceber que família sem direitos e garantias não é mais família e sim um grupo de servos e escravos
Há poucas semanas uma irmã participante de comunidade evangélica criticou a atitude do presidente da República durante a pandemia, mas afirmou que pode votar nele porque defende a família. A atitude da senhora merece respeito, pois ela vive a sua realidade e a sua consciência neste momento de sua vida. Deste modo, o que fez o atual presidente, como a negação de vacinas, o deboche para com aqueles que tomaram (o caso do Jacaré), o desprezo diante de mais de 660 mil mortos (membros de famílias agora sofridas) e o empobrecimento de milhões de famílias pelas atitudes econômicas erradas, nada disso foi suficiente diante do fato de que ele “falou que preserva a família”. A irmã está a defender uma família que ela aprendeu a amar e respeitar dentro da experiência dela no correr da vida. Do que viu, leu ou escutou, o presidente defende a família, ou melhor, defendeu durante o seu governo.
É claro que a construção e a valorização da família são valores importantes, mas as famílias variam muito nos diferentes lugares do nosso planeta. Há famílias que vão muito além daquelas “de sangue” e são enormes. Há famílias pequenas, pois os membros consideram que somente o pequeno grupo é família. Há famílias que se desenvolvem em torno da mulher e a irmã pensada aqui provavelmente imagina uma família diferente, com um homem capaz de prover as necessidades básicas, embora a mulher sempre tenha um papel da maior importância. Já faz bastante tempo que os governos dão as chaves das casas populares nas mãos das mulheres do grupo familiar, porque muitíssimas, milhões de famílias não têm os homens em sua direção. As mulheres são as grandes organizadoras.
Os fatos e os dados que envolvem as famílias são complexos. Nada simples. Até mesmo o tratamento de que as pessoas gostam no interior das igrejas – irmã e irmão – mostra que a família nunca significa um grupo fechado. Jesus teve família talvez pequena, a partir da experiência de Nazaré, mas ele dedicava muita atenção aos grupos maiores que se prezavam, que ficavam juntos, que celebravam em comum. Ocorria também que o divórcio é conhecido, em diferentes formas, há muito tempo e no contexto bíblico era uma realidade normal e regular. Jesus demonstrava, algumas vezes, raiva diante de pessoas que somente aceitavam a verdade “do seu grupo”, “sua família de fé” e por isso ele valorizou as irmandades que buscam transformar o mundo da injustiça para a justiça. Aliás, esses grupos, espécie de famílias, não existem somente no Cristianismo. Além disso, uma família que se quebra pela separação pode se organizar novamente, mas nunca será como antes. A ideia de família vai mudando conforme as experiências da vida.
O respeito à família pensada pela irmã não exclui a reflexão e quem sabe a conversa. Infelizmente, a maioria das igrejas não se sente parte do Brasil, interpreta mal os Evangelhos e, por isso, não pratica a cidadania, o que significaria realizar encontros para debater os rumos do país neste mundo e as necessidades do povo. Em consequência, as pessoas que participam das igrejas tomariam decisões sobre as candidaturas melhores para tirar o Brasil do atoleiro moral, cultural, educacional e econômico em que está.
Voltemos à família. Não dá para impor ou projetar para os outros a “minha” ideia de família. É muito provável que a irmã da comunidade de fé saiba disso, mas o bonito significado de família que ela tem na cabeça é motivo para votar outra vez no presidente, somente porque ele fala a favor da família. Mas ele mesmo já se casou três vezes, o que é problema quando a vida familiar e social é bem encaminhada para a criação de outras famílias e se garante o cuidado dos filhos e filhas. Tudo isso é possível na enorme sociedade humana em que vivemos.
Mas certamente a ideia de família do presidente da república não é a mesma da irmã, que provavelmente convive em sua família há bastante tempo, seu marido e seus filhos, que ainda não saíram de casa, ou quem sabe saíram e voltaram. Se o presidente fosse uma pessoa honesta e aberta, ele falaria em família de modo mais amplo e reconheceria os problemas das famílias brasileiras. De fato, na medida em que ele joga a ideia de família como uma isca para pegar os eleitores-peixes, que são aqueles que acreditam que a família é o que pensa a irmã da igreja, alguma coisa não se encaixa. Não dá para acreditar nele, porque de fato ele demonstra não saber nada de família, nunca estudou ou pensou nas diferenças entre famílias e não conhece, nem acredita na família daquela irmã, embora queira o seu voto. Ele joga no ar a palavra família, associada a Deus, não porque a defende, mas porque rende votos.
Se o presidente acreditasse na família e desejasse a felicidade dela, faria o contrário do que fez no governo e correria atrás de vacinas para Covid a fim de começar a vacinar três meses antes do que começamos. Como é que um homem como esse pode gostar de família se ajudou a desmantelar milhares delas com sua negação da Covid-19? No meio de uma doença desconhecida e violenta ele defendeu a economia e as empresas e não as famílias brasileiras. O dinheiro foi muito mais importante do que a família. Só comprou vacina depois de muitos protestos, muita pressão e gente morrendo.
Será que ele gosta das famílias dos pobres que roem ossos por falta de carne? Se gostasse, teria outro plano político-econômico. Ou das mães negras e mestiças que perdem seus filhinhos sob os tiros dos policiais mal preparados e desprovidos de ética? Ele não foi capaz de ver que ao perder os filhos as famílias podem se perder na vida? Nenhuma família se reconstitui muitas vezes; ela se altera, muitas vezes para pior. Não se conhece um conceito completamente fixo de família. O que realmente tem importância no grupo que se reúne para viver é que seja feliz, tanto os mais velhos como a sua descendência.
Dias atrás, na Marcha do Silêncio, realizada no Parque Ibirapuera, em São Paulo, que lembra as pessoas assassinadas pelos governos e pelo estado brasileiro, estava presente a mãe de um dos meninos mortos em Paraisópolis, Dênis. Alguém viu ou ouviu o presidente da república demonstrar algum sentimento pelos nove meninos e menina mortos? Será que ele não sabia que a violência dos policiais determinava a destruição de várias famílias? Ele se preocupou com o desespero das mães de família? Será que a sua “família” falada não é somente de boca prá fora? Mas famílias faladas não existem. O que existe é a família vivida no real.
Seria bom que a irmã soubesse que a família não é aquela que nós pensamos, mas de fato aquela que podemos construir. Nada a ver com a família que está na boca do presidente. Não é a ideia de família que importa, mas sim a vida concreta da família no mundo real. Será que isso não foi lido nos textos judaico-cristãos? Ou alguns pastores não estão nada preparados para o seu trabalho?
Não existe uma família igual no tempo e no espaço. Muito menos as famílias dos pastores de igrejas semelhantes àquela da irmã, muitos dos quais querem impor a conversa de família do presidente quando eles não praticam aquela ideia de família. São incoerentes.
O que existe na vida real são construções de famílias de acordo com os afetos, valores, necessidades, desejos, pensamento, situação histórica. Mas se considerarmos o que esse presidente já fez desde 2019, as famílias que ele prefere são aquelas que existiam no tempo colonial, que moravam nos casarões, enquanto as famílias dos pobres viviam em casinhas e comiam as migalhas dadas pelo rico. Ou do filme Poderoso Chefão, porque o presidente está sempre querendo governar sozinho, como nas ditaduras e na família patriarcal, bem como estimular o uso indiscriminado de armas pelos homens.
Do mesmo modo, ele deve adorar as famílias que vão privatizar as praias brasileiras, as unidades de preservação, o pantanal, as terras indígenas e as florestas. Aliás, os deputados do presidente não param de apresentar projetos para isso. Todos os dias. A família do presidente (incluindo seus “familiares” na Câmara e no Senado) não faz outra coisa que piorar o Brasil, destruir suas belezas, queimar suas árvores, liquidar suas flores e águas, aumentar as mortes das pessoas negras e a destruição de suas famílias, negar comida e emprego e diminuir os salários de todo mundo, mesmo das pessoas que estudam nas faculdades.
Pode-se imaginar que a família da irmã que pensa em votar no presidente poderá encontrar praias privatizadas e outros lugares bonitos privatizados, nos quais sua família não poderá entrar. Nesse caso, a família deixa de ser cidadã e perde direitos. Nessa hora adianta a ideia de família ou a vida? O que são as famílias onde não há direitos garantidos à cidadania? A família sem direitos e garantias não é mais família e sim um grupo de servos e escravos.
Em nenhum lugar dos textos sagrados está escrito que viemos a este mundo exclusivamente para morrer e ganhar a vida eterna. Se fosse assim, Jesus, como pessoa, teria vivido alguns dias somente. Ou nem isso. Estamos no mundo para realizarmos ações no tempo da vida, as quais melhorem a vida e o mundo, não para um grupinho de herdeiros e proprietários de bilhões, mas para todo mundo. Assim fazendo, a morte não importa, até porque a Páscoa significa, para quem tem fé, a morte da morte.
No tempo da Inquisição, havia dedos-duros que se chamavam “familiares do Santo Ofício”. Foi um tempo terrível. Eles denunciavam pessoas para os inquisidores por qualquer coisa que viam ou ouviam e que não parecia de acordo com o que pregava a Igreja. Com isso, destruíram famílias e levaram muitas pessoas ao desespero, à morte ou à prisão. Quando o presidente disse, com todas as letras, que tinha um sistema de informação dele (lembram-se daquela absurda reunião do governo?) e que a polícia federal não o ajudava, ele demonstrou que seus informantes eram do mesmo tipo dos “familiares” do Santo Ofício. Por isso, ele estava bem informado para defender “seus filhos” e amigos, até mesmo das coisas ruins que fizeram. Que família é essa?
Que fique claro que família voltada para o mal não é família; é quadrilha. Mesmo tendo o nome de família.
Ora, do mesmo modo, as famílias criadas pela Máfia são tão sagradas, tão defendidas, aparentemente tão “certinhas” e, no entanto, no meio delas há mortes violentas, traições, escândalo até entre aqueles que se beijavam todo dia. Defender a família às vezes, como no caso desse tipo de família citada, quer dizer mesmo defender o dinheiro, o poder, o mito da família, os interesses e inclusive as mortes, a maldade. Não se pode crer que a irmã lembrada aqui goste de ou aprecie esse tipo de “família”.
Mas a família do presidente gosta de violência, tiros, empregos para pessoas-fantasmas que nunca trabalham, privilégio para comprar um montão de coisas. Será que o pastor da irmã nunca viu isso, ou ele mesmo está ganhando alguma “grana” ou privilégios para defender a “família” do presidente? No MEC, Ministério da Educação, se formou uma espécie de família de supostos “crentes” que roubaram dinheiro das crianças e jovens que estudam no Brasil para enfiar em construções muito menos importantes do que a educação. Quem indicou os “irmãos” para fazer isso foi o presidente. Que bela família, não?
Se a família do presidente é toda atrapalhada e o trabalho dele destruiu milhões de famílias, qual família ele está defendendo? Provavelmente nenhuma.
Neste mês de abril a irmã pensa em votar no presidente porque ele fala em família, defende a família. Mas família não é uma palavra: é corpo, sangue, afeto, presença, memória, cuidado, criação. Ora, se o presidente não trabalhou pelas famílias dos mais pobres, que passam da metade de todos os brasileiros, então ele é contra a família que de fato vive e existe. Pelo jeito, é contra elas porque suas políticas de governo desmancharam as famílias. E elas têm morrido. Deste modo, ele nega a família. Quem gosta de família só pode construir, nunca destruir. Ele foi destruidor. E esta é a verdade que vimos, ouvimos, lemos, acompanhamos há três anos.
É de se pensar que os que se preocupam com a família e pensam em votar no presidente estão com uma ideia bem atrapalhada de família. Ou ainda não analisaram as coisas que têm acontecido no Brasil. Ou também não se incomodem com o uso do nome de Deus em vão.
O presidente escolheu a pior palavra para jogar na campanha eleitoral, em nome de Deus. Não tratemos de Deus, ou D’s, porque até o presidente deve pedir perdão a Ele pelo uso absurdo que faz do Seu nome. Quem trabalhou pelo desmanche, pela pobreza, pela fome e pela desorientação das famílias brasileiras jamais poderia invocar esse nome em vão. De fato, merecia a excomunhão, não a aceitação ou o voto dos brasileiros e brasileiras. Mesmo a fé exige obras concretas e construtivas para garantir a redenção. O presidente demonstra não ter nem fé, nem obras.
Assim, família para ele não passa de um conjunto de sons e algumas letras no papel. De fato, a família real é esse mundão de grupos que se juntam pelo afeto e por seus diferentes projetos. O que importa, se a irmã permite, é que os grupos de afeto discutam o que realmente querem para o Brasil, seja em educação, em saúde, em habitação, comida, emprego digno, transporte e, principalmente, o fim da miséria que o presidente fez crescer pelo seu pouquíssimo trabalho.
O que mais se pode desejar senão que a irmã discuta, até outubro, com aqueles que vierem buscar o seu voto, qual o projeto para mudar o Brasil e torná-lo justo, bonito, alegre. As famílias, embora diferentes entre si, têm muita força para exigir isso.
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.