Janio de Freitas

Imagem: Carlos Fajardo (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HENRY BURNETT*

Ler o Janio aos domingos, durante os últimos quatro anos, era um refúgio, um dos únicos motivos de seguir pagando a Folha

Eu já fiz coisas quase insanas para ler a Folha de S. Paulo. Morava num conjunto da Cohab no bairro do Coqueiro, no município de Ananindeua, colado a Belém; algo como Guarulhos em relação a São Paulo. É quase certo que eu fosse o único assinante do jornal num raio de quilômetros. Até aí tudo bem.

O problema é que a assinatura devia custar cinco vezes mais que o valor do Sudeste e o jornal, podem rir, não raro só era entregue no dia seguinte. Logo, muitas vezes lia o jornal com um atraso que, no mundo das notícias, podia ser fatal.

O motivo daquele gasto absurdo para um estudante desempregado era simples: os jornais de Belém eram contaminados pela política provinciana e eu achava que o “maior jornal do país” era isento.

Mas logo outros motivos me tornaram dependentes daquela leitura. Marcelo Coelho era meu preferido. Aquilo era jornalismo cultural do mais alto nível e não fazia diferença ler suas colunas um dia depois da publicação.

Nunca esquecerei a estreia de Arnaldo Jabor no jornal. Ele escreveu, cito de memória quase trinta anos depois, sobre o quadro de Diego Velázquez As meninas. Foi um deslumbramento. “Ler” um quadro; eu via aquilo pela primeira vez, num jornal!

Não posso sequer confirmar a informação no Acervo da Folha, porque anteontem cancelei em definitivo minha assinatura digital (teria sido bem melhor se existisse isso naquela época…). Depois de tantos anos lendo esse jornal – contra várias dicas de amigos que sempre me alertaram sobre as ambiguidades destiladas nos editoriais – fui vencido.

Quando soube da demissão do jornalista Janio de Freitas fiquei alguns minutos sem entender – de novo eu tentava entender o jornal, para dar-lhe algum crédito. Tendo publicado duas ou três colaborações e me sentido “o centro do mundo”, me sentia esgotado; já não era sem tempo.

Tentei cancelar minha assinatura a primeira vez logo depois da vitória do Lula. Curioso, Freud explica. Eu já andava sentindo a ambiguidade (?) do jornal bater no teto, mas então antes de abrir o editorial, no dia seguinte à vitória, eu pensei comigo, “a Folha vai cobrar o Lula um dia depois da apuração”. Batata, diria Nelson Rodrigues (por que lembrei dele?). Estava lá o editorial confirmando minha intuição.

Entro no chat e peço para cancelar. O atendente, pasmem, me sugere ler o Ombudsman como argumento para aceitar pagar “1,90 por três meses, depois 9,90”. Perguntei se ele estava me sugerindo manter a assinatura para ler a única coluna que criticava o jornal e a resposta foi sim. Mas eu disse que já lia, ele e Janio de Freitas, e o Marcelo Coelho, claro. Prorroguei mais um ano… (já era caso de internação, eu sei).

Mas a demissão de Janio foi demais. Lembro que ele havia sutilmente se queixado quando o jornal reduziu de duas para uma única coluna dominical sua colaboração. Ler o Janio aos domingos, durante os últimos quatro anos, era um refúgio, um dos únicos motivos de seguir pagando a Folha.

Como um jornal demite seu jornalista mais importante, cuja integridade e acuidade política servia de baliza para dezenas de jornalistas no país? Leio o motivo: contenção de gastos… pensei: não seria o caso de triplicar o salário para manter um jornalista dessa qualidade nos quadros do jornal? Se o New York Times declara voto, por que a Folha se mantém “apartidária”? Meu amigo alemão, no auge da campanha, me disse assim: “a Folha é de esquerda”. Ledo e Ivo engano, meu caro.

Acho que este texto deveria ser escrito por um jornalista, não é meu caso. Sou apenas um ex-leitor, para quem o jornal se tornou um fardo insuportável. Cancelei o recebimento da Newsletter, mas eles seguem mandando, como um castigo.

Soube que Marcelo Coelho saiu junto comigo, em respeito ao colega. Eu, que assinei o jornal muito por sua causa, me senti representado. Pensando bem, a saída dele faz acreditar que ainda resta gente íntegra neste mundo.

*Henry Burnett é crítico musical e professor de filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de Espelho musical do mundo (Editora Phi).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES