A grande fome em “A hora da estrela”

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Por SUSANA SOUTO*

Macabéa é uma personagem que desmonta o que sabemos sobre o outro, sobre nós, sobre o mundo, sobre a invenção da alegria

“Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar pra comer.”
(Clarice Lispector, A descoberta do mundo).

“Ó, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça\ Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”
(Chico Science).

Coube a mim, ironicamente, fazer a sobremesa deste livro banquete [Comer com os olhos] sobre um tema nada doce: a fome. Tratar da fome no momento de saborear aquilo que se come por puro luxo, ou prazer, é voltar ao começo da refeição/reflexão e dizer que não, não podemos estar saciados, pois ainda temos esse problema gravíssimo a enfrentar, que se inscreve numa cadeia longa de ações necessárias para garantir o direito à vida, neste país, neste planeta, como nos diz Clarice Lispector em crônica de setembro de 1967, no Jornal do Brasil:

“Daqui a vinte e cinco anos”

“Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. […] Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer” (LISPECTOR, 1999, p.33).

Estamos há 56 anos da publicação dessa crônica e infelizmente, enquanto escrevo este texto, há no Brasil 21 milhões de pessoas passando fome e 70 milhões em insegurança alimentar.[i] A fome é central ainda hoje na vida de uma enorme parcela da população brasileira e também na configuração de Macabéa, criada por Clarice Lispector e recriada por Suzana Amaral, uma das personagens mais desconcertantes e memoráveis das nossas artes.

 Publicado no ano da morte de sua autora, 1977, A hora da estrela é um livro singular na obra clariceana, e será mote, em 1985, para o primeiro longa-metragem dirigido por Suzana Amaral, numa estreia muito feliz que reúne atores extraordinários, como José Dummond, Fernanda Montenegro e Marcélia Cartaxo, atriz que está estreando no cinema, uma paraibana de 19 anos à época tinha, mesma idade de Macabéa.

Temos fins e inícios atando-se aqui.

A grande fome

O título escolhido pra este texto foi recortado do trecho: “Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjoo para comer. Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha a grande fome” (LISPECTOR, 1995, p. 55). A grande fome aqui é entendida não no sentido que tem na história, em que há uma grande fome na Europa, na Idade Média, mas no sentido de uma fome que atinge milhões de pessoas, não só Macabéa, que seria mais uma espécie de metonímia, no que se refere à fome, de uma parcela imensa da população brasileira.

Ao longo de toda a sua carreira, Suzana Amaral continuará entrelaçando cinema e literatura: em 2001, faz Uma vida em segredo, 2001, a partir do livro de Autran Dourado; em 2009, traduz pro cinema Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, e em 2018, oferece ao público sua leitura de O caso Morel, de Rubem Fonseca. Mas esses são ingredientes para outros pratos.

Vamos, então, a essa sobremesa um tanto amarga.

Suzana Amaral, leitora de Rodrigo S.M.

Em uma entrevista,[ii] Suzana Amaral conta que estava fazendo um curso de cinema em Nova Iorque e o seu professor de roteiro mandou a turma escolher um romance, sendo muito categórico quanto ao tamanho do livro: curto. Ela, então, foi até uma biblioteca e passou o dedo na lombada de uma fileira de romances brasileiros, parando no mais fino. Este mais fino era o último livro de Clarice Lispector, a partir do qual ela fez o roteiro, em parceria com Alfredo Oroz.

Na capa do livro, figura apenas A hora da estrela, mas após a “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector)”, aparecem mais doze títulos: A culpa é minha ou A Hora da Estrela ou Ela que se arranje ou O direito ao grito ou Quanto ao futuro ou Lamento de um blue ou Ela não sabe gritar ou Uma sensação de perda ou Assovio ao vento escuro ou Eu não posso fazer nada ou Registro dos fatos antecedentes ou História lacrimogênica de cordel ou Saída discreta pela porta dos fundos (LISPECTOR, 1995, p.10).

Essa profusão de títulos indica a existência de múltiplas narrativas que se encaixam nesse livro em que temos a ficcionalização da autoria na personagem Rodrigo S.M., pertencente à classe média, o que está relacionado à comida, como ele mesmo (a)nota, “sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto” (LISPECTOR, 1995, p. 33), que se vê diante da tarefa difícil de escrever sobre matéria tão distinta da sua própria vida: “A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim” (LISPECTOR, 1995, p. 33).

Ou ainda, em outra passagem metanarrativa tão ao gosto da prosa clariceana: “Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça” (LISPECTOR, 1995, p. 38). Rodrigo enfrenta o dilema ético de que tratar da miséria brasileira em sua obra, de algum modo, é também se beneficiar da existência da miséria, como destaca Nádia Battella Gotlib, um nome central na fortuna crítica de Clarice Lispector: “O romance focaliza, então, numa última instância, o poder do escritor, ou do intelectual, que se “ocupa” do pobre, traduzindo-lhe os sonhos, mas não lhe sendo possível concretizar tais sonhos na prática. Ou seja, o romance questiona e desmistifica o poder do intelectual que, tanto por pieguice humilde quanto por ávida prepotência competente, se alimenta do seu objeto de estudo, sem conseguir que este se torne sujeito de sua história”. (1995, p.470).

Mas Suzana Amaral não é propriamente uma leitora do romance de Clarice. Ao fazer seu roteiro, ela é, digamos, leitora do livro de Rodrigo S.M., que, aliás, não está no filme. Ela leva para a tela não o livro “de Clarice” e suas histórias encaixadas, mas sim o livro “escrito” por Rodrigo, e nos convida a acompanhar alguns meses do cotidiano de uma sertaneja miserável de Alagoas, suas “[…] fracas aventuras […] numa cidade toda feita contra ela” (1995, p. 35), um grande centro urbano brasileiro para o qual muitos nordestinos migraram e migram em busca de condições de sobrevivência.[iii]

Essa metrópole “toda feita contra ela” é mudada, no filme, do Rio de Janeiro de Clarice Lispector para a São Paulo de Suzana Amaral, mas isso não importa, pois, como diz a canção dos Titãs: “miséria é miséria em qualquer parte”.

Talvez, em busca de um livro fino para o seu primeiro roteiro, Suzana Amaral tenha escolhido um ainda mais curto: o romance de Rodrigo S.M., em que a narrativa se confronta com a fome, “flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens”, na definição lapidar de Josué de Castro.[iv]

Dize-me o que (não) comes e eu te direis quem és

Em crônicas, romances e contos, Clarice fala muito de comida. Em Laços de família está presente em “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”; “A menor mulher do mundo”; “Uma galinha”; “Feliz aniversário”; “O jantar”. Em A legião estrangeira, temos o antológico “A repartição dos pães”. Não se trata aqui de fazer uma lista exaustiva dos alimentos na obra clariceana, mas quero lembrar que A descoberta do mundo, começa (ainda que o volume não tenha sido organizado pela autora) com o doloroso “As crianças chatas”: “Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho que está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: não posso, estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? – pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam, no ninho da resignação. E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta”. (LISPECTOR, 1996, p. 20).

Essa revolta talvez tenha levado a autora de Perto do coração selvagem a compor Macabéa, uma espécie de Severina, que sai do sertão para a cidade grande, primeiro Maceió, depois Rio de Janeiro.

Tanto no livro quanto no filme A hora da estrela, a comida é um recurso importante de composição das personagens. No início do livro, o acesso à comida é usado como critério de classificação do público, algo bastante inusitado na literatura brasileira: “(Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente […])” (LISPECTOR, 1995, p. 46).

E também no início do filme, há uma sequência muito dura, em que a miséria é evocada. Macabéa, que divide um quarto de pensão com outras mulheres igualmente pobres chamadas Maria, acorda no meio da noite, senta-se em um urinol e, logo em seguida, ainda sentada, pega uma coxa de frango que está em uma embalagem de alumínio e come-a, enquanto faz uma necessidade básica, nesse quarto muito similar a uma cela de prisão brasileira, em que há também uma cozinha improvisada, com um fogão de duas bocas.

Figura 1

Fonte: Filme A hora da estrela, de Suzana Amaral

Polos opostos se encontram. O baixo material e a boca. Enquanto urina, Macabéa também come uma comida feia, fria, que não estava guardada em um lugar adequado, numa releitura de um trecho doloroso do livro: “Às vezes, antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio era mastigar papel bem mastigadinho e engolir” (LISPECTOR, 1995, p. 47). Muito poderia ser dito sobre esse papel que se mastiga na ausência de comida, mais ainda em um romance tão marcado pela reflexão metanarrativa.

Há tanta coisa em cena aqui: a fome noturna, a comida fria e feia, a ausência de uma mesa, de uma cadeira, de um lugar convencional pra se comer, compondo um quadro da degradação da vida dos que nada têm. Mas com Macabéa nada é simples nem óbvio, e Suzana Amaral, fina leitora, entende isso. No mesmo quarto em que a câmera compõe esse momento de dor e carência, em outra sequência, Maca, sozinha (é quase sempre na solidão que as personagens de Clarice Lispector se defrontam com a angústia, com o êxtase ou com a felicidade clandestina), num dia de folga, dança com um lençol que faz as vezes, ora de uma espécie de véu de noiva, ora de um parangolé, remetendo-nos a Hélio Oiticica:

Figura 2

Fonte: Filme A hora da estrela, de Suzana Amaral

No livro, a mesma beleza: “Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida a coisa mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias” (LISPECTOR, 1995, pp. 57-58).

Em contraste com Macabéa, magra, sertaneja, pálida, de ovários murchos, comendo apenas cachorro-quente, órfã de pai, mãe e de dinheiro, temos Glória, sua colega estenógrafa, cujo pai trabalha num “açougue belíssimo” (1998, p. 40), “criada na carne”, como ela mesma diz, trazendo “no sangue um bom vinho português” (LISPECTOR, 1995, p. 76).

Essa personagem, cujo futuro já é indicado pelo nome, seduz Olímpico. No mercado dos afetos, Glória é vista a partir do que come e é tratada como comida: “Vendo-a, ele [Olímpico] logo adivinhou que, apesar de ser feia, Glória era alimento de boa qualidade. […] Posteriormente, de pesquisa em pesquisa, ele soube que Glória tinha mãe, pai e comida quente em hora certa. Isso tornava-a material de primeira qualidade. Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num açougue” (LISPECTOR, 1995, p. 77). Macabéa, que tem em comum com Olímpico um passado sertanejo de miséria também vê e se vê em relação a Glória a partir do acesso à comida:

“Macabéa entendeu uma coisa: Glória era um estardalhaço de existir. E tudo devia ser porque Glória era gorda. A gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz dizer para uma gorda que passava na rua: “a tua gordura é formosura!” A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de sua vida. Pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau. (Já então tinha tendência para anúncios.) A tia perguntara-lhe: você pensa lá que é filha de família querendo luxo?” (LISPECTOR, 1995, p.52).

Glória é aquela que “tem a malícia de toda mulher”, como canta Noel Rosa, a que sabe “a dor e a delícia de ser o que é”, pra retomar a resposta de Caetano Veloso a esta canção.[v] É uma personagem feminina composta a partir do estereótipo de gênero: falsa loura (seguindo o modelo imposto pelo cinema industrial, que aparece no filme nos cartazes colados por Macabéa na parede do seu quarto), gorda, carioca da gema, sedutora.

Figura 3

        Fonte: Filme A hora da estrela, de Suzana Amaral

(Acredito ser importante abrir parênteses sobre essa personagem, num momento em que voltamos a discutir seriamente no Brasil direitos reprodutivos. No livro, não há qualquer menção ao aborto, mas no filme, em 85, último ano da ditadura militar, Suzana Amaral insere esse tema em alguns momentos: num diálogo de Glória com um amante, numa conversa de Glória com Macabéa e na consulta de Glória a Madama Carlota. Esse tema continua na ordem do dia das lutas feministas e é sempre muito tenso e delicado, no contexto conservador e religioso brasileiro.).

Madama Carlota, a cartomante vivida magistralmente por Fernanda Montenegro no filme, vem de um passado de miséria e fome, e também é configurada a partir da comida, no livro, não no filme. No final da narrativa, em diálogo com o conto machadiano “A cartomante”, Clarice Lispector completa sua galeria de personagens femininas com essa ex-prostituta que lê o futuro de Macabéa, nas cartas e “[…] enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca pequena. Não ofereceu nenhum a Macabéa” (LISPECTOR, 1995, p. 92). Esses bombons, dentro dos quais há um “líquido grosso” (metáfora um tanto óbvia), ligam-se a sua feminilidade (já que os doces são comidas de mulheres e crianças) e reforçam o seu hedonismo, doces são comidos por prazer, não por necessidade.

O diálogo longo de Macabéa com Madama Carlota, que oferece apenas café frio a sua cliente, é seguido quase linha a linha por Suzana Amaral. Será este, aliás, um raro momento em que Macabéa receberá o tratamento delicado, ainda que profissional, simulado, da cartomante e terá pela primeira vez notícias de um futuro que a fez “tremelicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade” (LISPECTOR, 1995, p. 96).

Temos ainda no filme as três Marias com quem Macabéa divide o quarto e comem tanto quanto ela. Há aqui uma inusitada profecia dos horrores do Brasil: essas mulheres miseráveis trabalham nas Lojas Americanas, no romance. Elas aparecem cozinhando em uma cena no pequeno fogão, cozinha improvisada, e depois seguram a cabeça de Macabéa, num momento de solidariedade enquanto a sertaneja vomita. No filme, não no livro.

O direito ao vômito

A fome parece colada em Macabéa, ou como escreve Clarice Lispector na crônica de “Daqui a vinte e cinco anos”: “[…] na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome” (data, p.).

Esse fragmento, aliás, parece ecoar um trecho do clássico publicado em 1946, A geografia da fome, de Josué de Castro: “Não é somente agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as vísceras e abrindo chagas e buracos em sua pele, que a fome aniquila a vida do sertanejo, mas também atuando sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta social. Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana como a fome quando alcança os limites da verdadeira inanição. Fustigados pela fome, fustigados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários exaltam-se e o homem como qualquer outro animal esfomeado apresenta uma conduta que pode parecer a mais desconcertante”. (2022, p. 252)

Josué de Castro de quem este ano estamos comemorando, no sentido de memorar em conjunto, os 50 anos de morte e que foi um grande pensador da fome, e não só, e uma das vítimas da ditadura militar, tendo morrido no exílio. E mesmo morto, quando retorna ao Brasil, a ditadura impede que seu velório e seu enterro sejam divulgados, temendo um grande ato político. O que nos faz lembrar de uma famosa tese sobre a história de Walter Benjamin: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (1994, p. 224). Josué, que dedica seu livro a Rachel de Queirós e José Américo de Almeida, chamando-os de “romancistas da fome”, certamente teria se comovido com Macabéa, que talvez não tivesse saído do sertão, se o Brasil tivesse feito a reforma agrária, necessária para resolver o problema da fome.

Essa sertaneja de 19 anos é tão absurdamente miserável que, no livro, sequer tem o direito de vomitar. O vômito é negado a Macabéa, aquela que “graças a Deus nunca vomitou”, como diz a Olímpico, em um de suas desconcertantes conversas. E, em uma passagem que sempre me leva às lágrimas, explica por quê. Na consulta que tem com o médico incompetente e impiedoso, excluído do filme, “… desatento [que] achava a pobreza uma coisa feia” (LISPECTOR, 1995, p. 85), temos o seguinte diálogo:

— Você as vezes tem crise de vômito?

— Ah, nunca! — exclamou muito espantada, pois não era doida de desperdiçar comida, como eu disse.

(LISPECTOR, 1995, p. 85)

Ela quase vomita, no momento de sua morte: “Nesta hora exata, Macabéa sente um fundo enjoo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas” (LISPECTOR, 1995, p. 104).

Mas no filme, Macabéa vomita, já perto do final, após ir à casa de Glória, que a convida muito culpada por ter lhe roubado Olímpico de Jesus,[vi] com quem tinha um “namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor”(LISPECTOR, 1995, p. 77) e conversas sobre “[…] farinha, carne-de-sol, carne seca, rapadura, melado” (LISPECTOR, 1995, p. 63). Na festa de aniversário da mãe de Glória, Macabéa se espanta com a fartura e come excessivamente, vomitando ao voltar para a pensão, ajudada pelas Marias.

Suzana Amaral concede a Macabéa o direito ao vômito, tão comum em filmes de Sganzerla, como nos lembra Patrícia Mourão, na sua comovente fala sobre Sem Essa, Aranha[vii]. No livro, Clarice Lispector trata disso de forma muito mais dura. A comida é algo tão raro na vida de Macabéa que ela não tem sequer o direito de desperdiçá-la vomitando, o que é reforçado em várias passagens, como na seguinte: “No dia seguinte, segunda-feira, não sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa do nervosismo de beber coisa de rico, passou mal. Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate” (LISPECTOR, 1995, p. 84).

O chocolate, no livro, e o almoço farto do aniversário da mãe de Glória no subúrbio, no filme, portanto, são luxos pra Macabéa. No filme ela pode “desperdiçar comida”. Vomitando, ela vive a experiência do excesso, que lhe é negada no livro. Ou, podemos pensar ainda que o vômito no filme se inscreve na ficcionalização da miséria extrema de Macabéa: ela come tão mal e pouco que, quando come bem, vomita. Ela não tem nunca direito à comida. Não vomita pra não desperdiçá-la e, quando a come em excesso, não consegue retê-la. Ela está condenada a uma dieta a base do lixo da indústria alimentícia controlada pelo império estadunidense: cachorro-quente e coca-cola[viii], e, às vezes, café.

Em várias passagens do filme, Suzana Amaral mostra a coca-cola ao lado do rádio, um importante veículo de comunicação de massas ainda hoje no Brasil. O conluio entre mídia hegemônica e grandes corporações, ainda hoje, sustenta e prolonga a miséria.

Essa bebida, comum na mesa dos brasileiros e central na economia do país num determinado período, tem um lugar interessante no livro e no filme. Índice de hospitalidade, o café é oferecido a Macabéa, ralo, frio e sem açúcar, pela dona da pensão onde mora, quando ela vai procurar um quarto. E, no final do livro, aparece de novo, agora oferecido por Madama Carlota, frio e sem açúcar. Com leite e açúcar, é oferecido também por Olímpico a Maca, que fica espantada com a rara generosidade desse “namorado”, visto por ela como “sua goiabada com queijo”. Nessa sequência, Macabéa quase passa mal de tanto açúcar, centro de muitos dos nossos males, ligado ao latifúndio à monocultura e ao trabalho escravo, que coloca em sua pequena xícara:

– […]Pois olhe vou lhe pagar um cafezinho no botequim. Quer?

– Pode ser pingado com leite?

– Pode, é o mesmo preço, se for mais, o resto você paga.

Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico. Só dessa vez quando lhe pagou um cafezinho pingado que ela encheu de açúcar quase a ponto de vomitar mas controlou-se para não fazer vergonha. O açúcar ela botou muito para aproveitar. (LISPECTOR, 1995, p. 50)

Se Glória é “criada na carne”, a de carnes fartas, Macabéa é a que quase nada come a que não desperta o apetite de ninguém, ao abandoná-la, Olímpico lhe diz:

–Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me desulpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você está ofendida?

– Não, não, não! Ah, por favor quero ir embora! Por favor me diga logo adeus” (LISPECTOR, 1995, p. 78).

Suzana Amaral, tão atenta ao uso da comida como elemento de composição da personagem, não incorpora ao seu filme uma cena em que Olímpico mastiga pimenta malagueta, no primeiro encontro com Glória, para mostrar logo quem manda. Seria bom ter visto essa relação entre comida e gênero, mas no filme Olímpico não é o cabra macho que mastiga pimenta e supera a miséria, tornando-se, como é indicado num sumário narrativo no romance, deputado e desmontando a ironia inscrita em seu nome, em que a referência ao Olimpo contrasta com o “de Jesus”, sobrenome dos que não têm o nome do pai no registro.

Suzana Amaral reserva um destino diferente a Olímpico, ou melhor, um destino mais previsível, que ignora a complexidade e a diversidade de destinos dos migrantes nordestinos pobres na cidade grande, cuja realização mais extraordinária é a do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que sai do interior de Pernambuco pra São Paulo de pau-de-arara, e é eleito três vezes para governar este país injusto.

O mais perto que Olímpico chega desse futuro improvável, mas possível, é numa cena, espécie de homenagem a Glauber Rocha de Deus e o diabo na terra do sol e também de Terra em transe, em que ele faz um discurso inflamado em uma praça quase vazia, assistido apenas por Macabéa e uma mendiga, que o aplaude, prometendo resolver os problemas do Brasil, de Cajazeiras (terra de Marcélia Cartaxo) a Brasília. Mas o heroísmo de Olímpico de Jesus encerra-se aí. No final, ele continua perdido e só, “numa cidade toda feita [também] contra [ele]”.

Há ainda outra sequência que gosto de pensar como uma homenagem ao cinema de invenção. Trata-se de um momento em que Macabéa e Olímpico estão em um lugar ermo, sem nenhum atrativo, num dia de passeio, sob um viaduto, e subitamente ele a levanta e simula um voo de avião. Os sons do riso se confundem com o barulho do trem e Macabéa voa. Vejo nesse momento muito bonito um diálogo com Sganzerla, de Copacabana, mon amour. Corpos insubmissos em liberdade, assim como na dança de Maca com o lençol- parangolé, no quarto.

Goiabada com queijo

Antes de terminar essa sobremesa amarga, quero deixar algumas imagens de doçura, difícil, mas ainda doçura, que Clarice e Suzana nos convidam a saborear e que se prolongam em minha memória, depois da travessia dessa história “soco no estômago” sobre personagens que sentem uma “leve fome permanente”.

No fim do filme, Macabéa usa um vestido azul vaporoso, similar a um vestido de noiva (final feliz do cinema industrial) e corre para os braços do homem (estereótipo do mocinho) que a atropela. Ainda que na imaginação, ou num delírio final da morte, ela vive o final do cinemão a que ela assistia, quando tinha algum dinheiro. Esse final parece refazer, de algum modo, a circularidade encenada no livro, cujo início é “Tudo no mundo começou com um sim” e cujo fim é a palavra “Sim”.

Figura 4

     Fonte: Filme A hora da estrela, de Suzana Amaral

Macabéa é uma das personagens mais desconcertantes que conheço. Desmonta o que sabemos sobre o outro, sobre nós, sobre o mundo, sobre a invenção da alegria. Ela, “capim ralo”, sabe inventar um mundo pra viver: ouvindo um rádio emprestado, cantando, indo ao cinema, se encantando com as palavras, e, numa celebração comovente da liberdade e do ócio, acordando mais cedo no domingo: “pra ficar mais tempo sem fazer nada” (LISPECTOR, 1995, p. 20).

Maca, que amava goiabada com queijo, “única paixão na sua vida” (LISPECTOR, 1995, p. 20), parece nos dizer que nós também devemos imaginar modos de fazer o Brasil sair para sempre do mapa da fome e ter mais dias de goiabada com queijo para todo mundo. Dias de mais felicidade: “Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes” (LISPECTOR, 1995, p. 25).

*Susana Souto é professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Publicado originalmente no livro SEDLMAYER, Sabrina, CLIMENT-ESPINO, Rafael e ANDRADE, Luiz Eduardo (orgs.). Comer com os olhos: comida cultura cinema. Autêntica, 2023.

Referências


A hora da estrela. Direção Suzana Amaral e Alfredo Oroz. São Paulo. Produtora Rais Fil-

mes. Embrafilme. 1985. Filme completo disponível em: https://www.you-tube.com/watch?v=MBxAMJvSip0

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 222-234.

CASTRO, Josué. Geografia da fome. O dilema brasileiro: pão ou aço. São Paulo: Todavia, 2022.

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 23. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

Notas


[i] “A edição de 2023 do relatório  [O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), publicado hoje em conjunto por cinco agências especializadas das Nações Unidas] revela que entre 691 e 783 milhões de pessoas passaram fome em 2022, com uma média de 735 milhões. Isso representa um aumento de 122 milhões de pessoas em relação a 2019, antes da pandemia de COVID-19”. Disponível em https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/en/c/1644602/.

[ii] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ykPcZqaq2U0.

[iii] O tema da migração já foi amplamente analisado. Ver Migrantes nordestinos na literatura brasileira, de Adriana de Fátima Barbosa Araújo. Curitiba: Appris, 2019.

[iv] Entendida aqui a fome não como desconforto momentâneo que será satisfeita, mas como problema social, derivado da profunda desigualdade brasileira, quadro em que, no caso dessa narrativa, estão também inseridos, em especial, as personagens Macabéa, Olímpico de Jesus e as Marias.

[v] A canção de Noel Rosa intitula-se “Pra que mentir?” e a de Caetano Veloso, “Dom de iludir”.

[vi] Olímpico remete ao mundo grego, indica força, mas sua condição severina é reforçada pelo sobrenome, de Jesus: “– Olímpico de Jesus Moreira Chaves — mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai.” (LISPECTOR, 1995, p. 60).

[vii]No Cine Sal, cujo texto integra este volume.

[viii] Bebida que já foi abordada no Cine Sal com muito humor por Sabrina Sedlmayer, a partir do instigante filme Como Fernando Pessoa salvou Portugal, de Eugêne Green (2018).


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