O fruir do tempo: tempo literário e tempo do capital

Martin Disler, sem título, 1981
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Por GUILHERME RODRIGUES*

Narrativas avessas ao tempo da forma mercadoria fazem lembrar que o sujeito que segura o livro não está a produzir qualquer coisa que acumule valor

“[…] o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro.”

Estas palavras que fecham o capítulo XXII do romance Esaú e Jacó de Machado de Assis marcam o que o narrador chama de “salto”, isso é, um movimento de supressão da narrativa, não muito diferente da “transição” do capítulo IX das Memórias póstumas de Brás Cubas, ou do capítulo LIV de Dom Casmurro em que Bento se recusa a contar toda a sua experiência no seminário. Este é um aparato literário, entre outros, em que os narradores de Machado de Assis evidenciam um traço óbvio que talvez não quisesse ser evidenciado por si próprio: trata-se ali de um escritor com uma pena na mão e um certo domínio sobre o livro.

Tal afirmativa metalinguística, contudo, não se encerra aí, tendo inúmeras consequências para a obra. Entre elas, há uma que pode interessar agora para este ensaio, daí que o escritor tem um certo domínio, e não pleno domínio: a escrita do livro implica um leitor do mesmo. Ainda que Brás Cubas o desdenhe desde o prólogo, Bento o trate como ingênuo e o conselheiro Aires o veja de cima para baixo de sua posição intelectual, ele está lá e mais: ele é inserido no próprio livro, na narrativa, como uma das estruturas de significação que estão fundamentalmente presentes. Poderíamos nos recordar como o narrador do Quincas Borba chega ao final de seu romance somente para suspender o significado de seu livro através de uma pergunta que acompanha o leitor durante toda sua leitura: o livro tem este título por causa do filósofo demente ou do cachorro? Tal sentido deve ser dado pelo leitor, diminuído pela distância das estrelas que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia o Rubião.

Veria-se, portanto, como os narradores-escritores de Machado de Assis estão, em verdade, brincando com o sentido do próprio livro, o que implica diretamente um certo falsear do mesmo, forçando, por consequência, uma atenção e uma manipulação do leitor, e produzindo uma certa dificuldade a este que retarda a leitura. Isto, poderíamos dizer, acarreta uma transformação no tempo da leitura: o leitor é forçado a dilatar, retardar, voltar: ler, reler, tresler, como escreve Brás Cubas; fazendo pouco caso do mundo calculado no tempo do relógio. O leitor é forçado à estrutura do livro num jogo que ora avança, ora distende, ora suspende o tempo através das intervenções, das digressões. Veja-se, contudo, que o leitor, diferente do narrador, tem sua materialidade no mundo fora do livro, e sua fruição no capitalismo moderno é muito limitada pela reificação — como já se desdobra argumentativamente pelo menos desde Lukács em sua História e consciência de classe. “O tempo passa, mas o livro permanece. A vida do leitor mede-se em horas; a do livro, em milênios.”[i] A gestão do tempo do capital — que se trata, em verdade, da gestão da vida interior daqueles submetidos à expropriação — retira dos sujeitos a possibilidade de eles se tornarem de fato leitores que integram o processo de significação dos livros. A pessoa que sofre tal expropriação é mutilada de uma possibilidade de integração e atravessamento de um discurso literário que pode ter a capacidade de mudar sensivelmente sua vida psíquica — e, portanto, ter consequências profundas na materialidade do mundo, argumento já feito nos anos 1980 por Antonio Candido em seu célebre ensaio “O direito à literatura”. O que nos interessaria notar é como há um aparato literário que nos parece forçar uma quebra neste processo de subjetivação do capitalismo moderno: a digressão.

Se o romance moderno teria engendrado dialeticamente uma mudança discursiva que se sente no tecido social durante o século XIX, é talvez através de um aparato que não é moderno que ele desconstitui o tempo durante a consolidação da gestão dos minutos no mundo do trabalho do Capital. Um aparato literário como a digressão, veja-se, é utilizado de modo sistemático no épico homérico: os desvios na narrativa marcam a Ilíada e a Odisseia, de modo que o narrador abre veias em sua poesia em direção a outros mitos. Tal prática também não é estranha ao romance antigo, à narrativa medieval românica ou mesmo às formas do romance a partir do século XVI — lembremos de Rabelais, de Cervantes ou mesmo de Jacques, le fataliste de Diderot.

Esta trilha, porém, parece ter sido colocada em segundo plano nas histórias da literatura e nas grandes teorias da narrativa durante o século XX, ainda que desempenhem um papel central na grande forma romanesca da mesma época — basta lembrar a prosa de Woolf, Broch e Proust. Em especial quanto ao romance histórico do tipo de Walter Scott, às narrativas de formação ao gosto do Wilhelm Meister ou aos grandes panoramas sociais da prosa oitocentista do modelo inglês de Thackeray, Austen e Dickens, aquele narrador realista que costura seu tecido de modo mais ou menos linear e distante parece ter assumido um grau de centralidade para as análises da forma da narrativa moderna, e, por consequência, para a maneira como se lembra delas nos manuais de literatura. É o caso, por exemplo, que se deve às interpretações (muitas vezes superficiais) do romance do jovem Alencar, como Lucíola, ou da prosa de Júlia Lopes de Almeida, como A falência. Curiosamente, a teoria do romance desenvolvida por Lukács dá esta ênfase ao contrapor a totalidade da narrativa do herói da Antiguidade à fragmentação desorientada do sujeito moderno, e mais: tal análise parece esquecer como o tempo também sofre uma profunda mudança no que diz respeito a esse sujeito enquanto leitor, que constitui, em suma, uma função literária fundamental, seja na lírica ou no romance moderno. É o próprio Lukács que desenvolve, ao se aprofundar no fenômeno da reificação, que há uma internalização de uma racionalidade do cálculo do tempo no capitalismo moderno, e consecutivamente uma cisão psíquica do sujeito. No caso do entendimento deste como um leitor, o cálculo da leitura se coloca em relação ao tempo de trabalho e o tempo livre — o que é em verdade uma falsa dicotomia na modernidade, na medida em que o segundo existe em função do primeiro: há o descanso para o trabalho.

Neste sentido, o cálculo da leitura (seja ela em páginas, em horas, em períodos) se dá a partir de uma lógica clássica de premissas lineares que acarretam em conclusões positivas — lê-se para tal fim identificado positivamente (em geral, veja bem, relacionado com a produção de um sentido também positivo na vida material do trabalho e da acumulação de capital — seja ele simbólico ou não). Não à toa os livros de autoajuda se estruturam neste modelo (ainda que falseado por premissas enganosas e conclusões mais enganosas ainda), e a indústria cultural tenha produzido sua própria linha de prosa que funciona, grosso modo, como roteiros pré-prontos para adaptações cinematográficas milionárias — o caso Harry Potter talvez seja o mais notável.

É daí que seria o caso de lembrar que existe uma outra forma de narrativa, que plasma o tempo do leitor por lembrá-lo um sujeito implicado pelo livro, não apenas um espectador de imagens espetaculares idênticas a si, como descobriu Guy Debord. Um leitor que integra o livro como operador sensível de um fluxo temporal que não pode ser linear, mas sim múltiplo: ele se arrasta, suprime, salta, se alonga, se torce. No Tristram Shandy de Sterne já há este comentário em uma de suas diversas digressões, quando o narrador-autor destas memórias sugere no último capítulo do volume VI que sua narrativa caminha como na ilustração:

O que dizer, ainda, do capítulo LXXI das Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o defunto autor chama a atenção que

“(…) o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, erram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”

E no capítulo que segue, intitulado “O bibliômano”, o narrador vai justamente trazer um leitor que “lê, relê, treslê” seu livro a procura de um sentido que não encontra apenas nas palavras. Brás Cubas, ironicamente — como é de se esperar —, desloca o sentido para este leitor, e joga o despropósito do livro nele. É claro, como ele mesmo menciona, isso faz “perder outro capítulo”, o que é, enfim, nada mais que natural para este andar dos ébrios. Uma narrativa que entra e sai de si mesma, que puxa o leitor para si, e que, em sua aversão ao envelhecimento, retarda o próprio sujeito que segura aquele exemplar nas mãos.

Tal prática, lembre-se, vai se tornar um motor fundamental na grande prosa do século XX: Clarice Lispector faz d’A hora da estrela um jogo com a escrita de um homem que sequer consegue dar título à sua narrativa, e Proust passa milhares de páginas a tentar descobrir a escrita nos meandros da vida mundana, da paixão e da arte, apenas para ao final redescobrir no Tempo a plasmação narrativa que orienta os símbolos da obra em transformação na memória.

Avesso ao tempo da forma da mercadoria, tal narrativa o desconstitui para lembrar que o sujeito que segura o livro não está a produzir qualquer coisa que acumule valor. Este tempo é apenas a plasticidade fluida de uma não identidade a se formar e deformar, que só pode operar em outro tipo de discurso. Este talvez seja um horizonte de liberdade, em que o sujeito não exista em relação ao tempo de trabalho, mas que, ao invés disso, atravesse um sentido que não lhe é próprio, mas o constitui de alguma maneira, e formando, enfim, uma possibilidade de outro mundo.

*Guilherme Rodrigues é doutor em teoria literária pelo IEL da Unicamp.

Nota


[i] Steiner, George. “O leitor incomum”. in: ____. Nenhuma paixão desperdiçada. trad. M. A. Máximo. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 15.


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