A guerra civil dos Estados Unidos

Patrick Heron, Cinco discos, 1963
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Por MARCELO BADARÓ MATTOS*

Prefácio do livro recém-editado de Karl Marx e Friedrich Engels

“Assim como a guerra de independência americana do século XVIII fez soar o alarme para a classe média europeia, a guerra civil americana do século XIX fez soar o alarme para a classe trabalhadora europeia” (Karl Marx, O capital).

A afirmação de Karl Marx, no “Prefácio” da primeira edição de O capital, estava longe de ser um simples argumento de retórica. Ao longo do livro, em vários momentos Marx faz referências à centralidade da escravidão para a “acumulação primitiva” de capital e à importância de sua abolição para a luta da classe trabalhadora, em escala transnacional. No capítulo “A assim chamada acumulação primitiva”, especificamente dedicado ao tema, lembrou que “Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi seu método de acumulação primitiva […]. Em 1730, Liverpool empregava 15 navios no tráfico de escravos; em 1751, 53; em 1760, 74; em 1770, 96; e, em 1792, 132”.

Karl Marx percebeu, porém, que a conexão entre a produção capitalista inglesa e a escravidão no Sul dos Estados Unidos se prolongou para além do período da acumulação primitiva, ganhando novas dimensões após a Revolução Industrial. Ressaltando as faces mais cruéis da exploração do trabalho infantil, de um lado do Atlântico, e da escravidão africana, de outro, explica: “Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sans phrase do Novo Mundo”.

Destacando quanto a permanência da escravidão paralisava o movimento da classe trabalhadora nos Estados Unidos, Marx afirma que a abolição, conquistada pela Guerra Civil, destravou a luta pela redução da jornada de trabalho para oito horas e, em uma das mais famosas passagens do Livro I de sua obra mais importante, foi taxativo: “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”.

Entretanto, a reflexão sistemática de Marx (e Engels) sobre a Guerra Civil Americana, como demonstram os escritos reunidos nesta coletânea, é anterior à publicação de O capital e contemporânea à irrupção e desenvolvimento do conflito. O espaço de manifestação mais regular e sistemático das posições de Marx e Engels sobre a Guerra Civil e a questão da escravidão foi seu “jornalismo científico”, como se pode acompanhar na primeira parte deste livro.

Atuando desde a década anterior como correspondente do New York Daily Tribune, Marx acompanhou os aconte- cimentos desde o início e foi um dos primeiros a se posicionar de forma incisiva a favor do Norte e destacar que o conflito decorria fundamentalmente da questão da escravidão. Já no primeiro artigo apresentado nesta coletânea, publicado pelo jornal de Nova York em 11 de outubro de 1861, Marx desmontava os argumentos reiterados pela imprensa britânica, que teimava em afirmar que a guerra nada tinha a ver com a escravidão, e lembrava que, embora o governo da União tivesse sido extremamente paciente na tentativa de evitar o conflito e continuasse a desviar-se do tema da escravidão, o Sul confederado “[c]onfessou lutar pela liberdade de escravizar outras pessoas, uma liberdade que, a despeito dos protestos do Norte, afirmou ter sido ameaçada pela vitória do Partido Republicano e a eleição do sr. Lincoln à cadeira presidencial”.

Em diversos outros artigos para aquele jornal estadunidense e para o periódico Die Presse, publicado em Viena, Marx voltou a tratar do tema da escravidão como central não apenas para a compreensão da Guerra Civil Americana, mas também para a política de classe do proletariado em escala internacional.

Nos primeiros artigos escritos sobre o tema, sua maior preocupação foi desfazer os argumentos que procuravam justificar o levante dos estados confederados do

Sul, em nome de uma presumida resistência liberal a tarifas restritivas impostas pelo governo da União, sob pressão dos estados do Norte. A questão central que levara à guerra, Marx não tinha dúvidas quanto a isso, era a necessidade vital, para os grandes proprietários escravistas do Sul, de reproduzir o sistema em que baseavam seu poder de classe nos novos territórios. O autor voltaria a isso no artigo “A guerra civil norte-americana”, o primeiro que publicou em Die Presse, em 25 de outubro de 1861, para concluir categoricamente que “todo o movimento residia e reside na questão da escravidão”.

Conforme demonstrou Kevin Anderson, a perspectiva de Marx era, desde o início, de que a Guerra Civil tendia a ser vencida pelo Norte, justamente porque representava, ainda que Lincoln em seu primeiro mandato pudesse resistir a essa ideia, uma luta que só se resolveria com a decisão do governo federal de pôr fim à escravidão. Por isso, defendeu a necessidade de que a União não apenas proclamasse claramente seu objetivo de lutar pela liberdade dos escravizados, como também armasse batalhões de negros livres e libertos, dando sequência à guerra por um caminho revolucionário.

Foi esse o sentido de um de seus artigos para Die Presse, publicado em 9 de agosto de 1862, em que cobrava uma postura mais incisiva da União: “A Nova Inglaterra e o Noroeste, que forneciam o material principal do Exército, estão decididos a impor ao governo uma guerra revolucionária e a inscrever “Abolição da Escravidão” como lema de batalha na bandeira estrelada. Lincoln hesita diante da pressure from without [pressão vinda de fora], mas sabe bem que é incapaz de resistir por muito tempo”.

E concluía: “Assistimos até aqui apenas ao primeiro ato da Guerra Civil – a guerra constitucional. O segundo ato, a guerra revolucionária, é iminente”.

Essa afirmação do potencial revolucionário da Guerra Civil apareceria também no segundo tipo de material recolhido neste livro: a correspondência entre Marx e seu principal interlocutor político e intelectual, Engels. Como acontecera em outros momentos, Marx respeitava o conhecimento superior de Engels em temas estritamente militares. Aliás, os artigos deste último aqui reunidos concentram-se nesse aspecto da guerra. Contudo, Marx discordou do amigo quando este valorizou a superioridade militar do Sul como fator decisivo no conflito. Em carta escrita dois dias antes da publicação do artigo acima citado, na qual utiliza boa parte do raciocínio expresso nele, explica a Engels que não compartilhava “inteiramente de sua visão sobre a Guerra Civil Americana”. Sua análise enfatizava que a superioridade militar sulista, manifesta até então, era decorrente do fato de os proprietários do Sul se concentra- rem na batalha, deixando o trabalho produtivo para os trabalhadores escravizados. Agora, porém, a pressão para que a guerra assumisse uma perspectiva revolucioná- ria levaria a uma inversão na correlação de forças: “O Norte vai finalmente levar a guerra a sério e recorrer a meios revolucionários, e ainda vai derrubar a supremacia dos estadistas escravagistas dos estados fronteiriços. Um único regimento de negros vai mexer com os nervos dos sulistas”.

Como sublinha Anderson, a referência aos “nervos sulistas” é uma ironia de Marx ao fato de que os briosos oficiais dos estados confederados tremeriam em face de negros livres e armados. Se havia uma maneira revolucionária de conduzir a guerra, ela incluía aqueles que haviam sido escravizados no papel de sujeitos históricos.

Porém, a questão racial, subjacente ao raciocínio irônico presente naquela carta a Engels, assumia contornos mais dramáticos quando se tratava de entender como o racismo atravessava a fronteira de classe e se expressava também na forma como as parcelas de origem europeia da classe trabalhadora estadunidense percebiam nos trabalhadores e trabalhadoras de origem africana potenciais concorrentes no mercado de trabalho. Para que a Guerra Civil pudesse de fato soar o alarme de uma nova vaga revolucionária também na Europa, Marx tinha consciência de que seria necessário superar preconceitos raciais arraigados naquela parte da classe trabalhadora estadunidense e também envolver decisivamente o movimento euro- peu na campanha contra o Sul e a escravidão.

Numa época em que já começava a tratar da questão da independência da Irlanda e das lutas dos trabalhadores e camponeses irlandeses como decisivas para um possível caminho revolucionário na Inglaterra, Marx não vacilava em apontar os limites que a ideologia racista impunha à consciência dos trabalhadores, escrevendo para Die Presse, em artigo publicado em 23 de novembro de 1862, que: “O irlandês vê o negro como um perigoso concorrente. O ódio que os hábeis cam- poneses de Indiana e Ohio sentem pelos negros só é superado pelo ódio que sentem pelos escravocratas. Para eles, são o símbolo da escravidão e da humilhação da classe trabalhadora, e a imprensa democrata os ameaça diariamente com uma invasão de “niggers” em suas terras”.

Por isso mesmo, Marx registra com grande entusiasmo o apoio do proleta- riado inglês à causa da abolição. No início de 1862, destacando os primeiros comícios pró-Norte e pela abolição da escravidão realizados em Londres, Marx louvaria a maturidade da consciência de classe do proletariado britânico. Os trabalhadores da indústria passavam pelas maiores dificuldades, decorrentes da interrupção do fornecimento de algodão pelos estados do Sul. Marx destacava, em artigo para Die Presse, publicado em 2 de fevereiro de 1862, que “a miséria causada pela paralisação das fábricas e pela diminuição da jornada de trabalho nos distritos manufatureiros do Norte, ambas motivadas pelo bloqueio dos es- tados escravagistas, cresce assustadoramente dia a dia”. Reconhecia, porém, que a classe trabalhadora se mantivera firme, por meio de suas associações e manifestações, na defesa pública da neutralidade do governo ante o conflito e no apoio à União e, particularmente, ao fim da escravidão, quando tudo o que o governo britânico e os proprietários fabris do setor têxtil queriam era respaldo social para intervir a favor do Sul.

Encontrando na própria classe trabalhadora inglesa o suporte para as posições que defendera nos primeiros anos da guerra, Marx teria mais espaço para atuar diretamente nesses posicionamentos a partir da fundação da Associação Internacio- nal dos Trabalhadores (AIT), em setembro de 1864. O terceiro conjunto de textos reunidos neste livro tem origem nessa atuação via AIT.

A explícita defesa da abolição pela classe trabalhadora britânica, somada ao conjunto de seus posicionamentos anteriores sobre o tema, explicam porque Marx, quando encarregado de redigir a mensagem inaugural da AIT, em outubro de 1864, diante da Guerra Civil estadunidense e da disjuntiva Sul escravista x Norte abolicionista, não tivesse dúvidas em defender sua posição e registrar a responsabilidade da classe trabalhadora em pressionar os governos da Europa Ocidental para renunciar a qualquer apoio ao Sul escravista: “Não foi a sabedoria das classes dominantes, mas a heroica resistência das classes trabalhadoras da Inglaterra à sua insensatez que salvou a Europa Ocidental de mergulhar em uma infame cruzada pela perpetuação e propagação da escravidão do outro lado do Atlântico.

Abolicionismo e antirracismo caminhavam juntos nos posicionamentos iniciais da AIT, sistematizados pela pena de Marx. O “Regulamento Geral”, adotado naquele mesmo momento inicial, definia-se pela igualdade entre os homens: “Que todas as sociedades e os indivíduos que a ela adiram reconhecerão a verdade, a justiça e a moralidade como a base de sua conduta entre si e para com todos os homens, sem distinção de cor, credo ou nacionalidade”.

*Marcelo Badaró Mattos é professor titular de história da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A classe trabalhadora de Marx ao nosso tempo (Boitempo).

 

Referência


Karl Marx & Friedrich Engels. A guerra civil dos Estados Unidos. Tradução: Luiz Felipe Osório e Murillo van der Laan. São Paulo, Boitempo, 2022, 388 págs.

 

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