Cartas da Itália – III

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Por LUAN REMÍGIO*

Relato de um estudante brasileiro em Lecce, no sul da Itália, sobre o cotidiano local durante a pandemia do coronavírus

Subitamente lanço os olhos sobre o relógio para saber as horas: devo “descer” o lixo, lembro. À dispensa da casa atribuíram o papel de “quarto de entulho”, abrigando uma diversidade de coisas, algumas deixadas pelo proprietário que não são usadas há tempos, como cafeteira, vasilhas plásticas, panelas, balança, e até mesmo uma cama; outras como, espanadores, vassouras e pás, mais recentes e esporadicamente utilizadas. Lá também estão os quatro “baldes” destinados à coleta seletiva: orgânico (marrom), papel (azul), plástico (amarelo) e o não reciclável (cinza); metal e vidro (verde) são apenas colocas nos sacos e deixados à porta no dia da coleta. Pego o saco amarelo para levá-lo para baixo, é quarta-feira, dia do plástico. Com um lenço de papel, abro a porta do apartamento, chamo o elevador, pressiono o botão do térreo, abro a porta do prédio e o deixo na calçada. Refaço o percurso sempre com o lenço intermediando o contato da minha mão com os objetos. Ao retornar, passo direto para o banheiro da cozinha, jogo o lenço no vaso, dou descarga em seguida lavo as mãos. Meus suprimentos estão no fim, e decido ir ao supermercado no dia seguinte.

***

Acordo um pouco tarde, por volta das dez da manhã. Lembro do compromisso assumido na noite anterior e me coloco de pé. Na cozinha, esquento o leite, coloco a moka no fogo, separo dois pacotes de torrada, creme de avelã com chocolate, e preparo a mesa para o café da manhã com duas xícaras da mesma cor, uma pequena para o café outra grande para o leite. Espalho o creme em quatro torradas e devoro o primeiro pacote, suficiente para primeira refeição. Não me dando por satisfeito, espalho o creme em mais duas torradas, mastigadas e engolidas com mesma voracidade. Vejo as duas torradas restantes, volto os olhos para o que sobrou do leite, e, neste átimo, me dou conta do quanto é difícil controlar a ansiedade. Mas dessa vez consegui, penso, me levanto e deixo a mesa.

Ir ao supermercado é algo que me agrada. Gosto de cozinhar, escolher e, sobretudo aqui na Itália, experimentar, inventar e aprender receitas. Desde que as medidas mais rigorosas por conta do covid-19 foram adotadas, a rotina de todos foi afetada e a maneira de fazer as compras também. Hoje a maioria das pessoas faz compras maiores, não por temer falta de abastecimento, mas para sair menos vezes de casa na esperança de evitar contágio. Para andar nas ruas é necessário ter uma auto-certificação, principalmente para quem tem de se deslocar de casa para o trabalho. Qualquer pessoa pode ser abordada pela polícia, e ter solicitada a auto-certificação, caso esteja na rua sem motivo pode pagar multa ou até mesmo ser preso. Obviamente muitas pessoas não respeitam essas diretrizes, mas quando tu és um estrangeiro e mora do lado da “Questura” (Delegacia) não parece ser prudente desrespeitá-las. Se tu vais fazer compras no supermercado eles até dispensam o documento, mas, caso tu sejas parado, dizem para retornar para casa em seguida. A preocupação de ser contagiado ou contagiar fez com que se redobrasse atenção na limpeza, algo que certamente deixará marcas profundas.

***

Enquanto lavava as mãos, organizo mentalmente os preparativos para minha ida ao supermercado: já havia escolhido a roupa, toda escura para que na volta pudesse jogá-las todas juntas na máquina de lavar; sabão e amaciante já nos depositórios; tênis; mochila; lista de compras; duas sacolas grandes retornáveis; o “saquinho de turista” onde guardo passaporte, “permesso di soggiorno”, cartão e dinheiro; pacote de lenços; deixei minha toalha no banheiro da cozinha; preparei um balde com água sanitária e água da torneira; dentro de um frasco com borrifador, mais da mesma solução; dois panos. Me dei conta de minhas mãos vermelhas sob aquela água morna e as unhas compridas. Decidi, “vou cortar as unhas antes de sair”. Questionei a mim mesmo se aquilo não era exagero, “não”, respondi quase sem terminar a pergunta. No sofá da cozinha, com as pernas abertas, tronco ligeiramente inclinado para frente e cotovelos repousados nos joelhos, iniciei aquele ritual asséptico. Em seguida, com o braço direito alongado olhando fixamente para minhas unhas admirando o trabalho realizado, surgem, desfocados e lentamente ganhando nitidez, meus pés, dedos e unhas. As julgo compridas e as corto também. Ritual concluído, catarse alcançada, me visto e saio em direção ao “Conad” próximo da minha casa provisória.

Ao chegar me deparo com uma pequena fila, comum nesses tempos. Espero minha vez, entro, seleciono as coisas que faltam: sabão para lavar roupas e outro para lavrar louça; torradas, creme de avelã, macarrão, ragu (molho de tomate com carne), queijo, pão, carnes, maionese, cebola, tomates, nove garrafas de água e mais algumas coisas. Felizmente aceitam o cartão, coloco tudo nas bolsas e três garrafas de água na mochila as outras seis na mão e começo o trajeto de volta para casa. Tive de parar e trocar de lado sacolas e as garrafas de água algumas vezes tentando compensar o peso e mitigar o cansaço. Faltando cerca de cem metros paro pela última vez, recupero o fôlego, seguro nas alças das sacolas e vejo o quanto minhas mãos estão ressecadas, vermelhas e feridas por conta do tempo e sua lavagem frequente, “não posso esquecer de usar hidratante”, me cobro. Na calçada do prédio deixo as compras, procuro as chaves no bolso, levanto a cabeça, encaro minha imagem refletida na porta de vidro da entrada, e reprovo aqueles cabelos bagunçados e sem forma.

Giro a chave, entro, subo oito lances de escada no saguão e chamo o elevador. Chego ao meu andar, saio e me preparo para realizar o plano traçado horas antes. Abro e fecho a porta do apartamento sem tocar na maçaneta, deixo as sacolas e água na entrada; tiro os sapatos, com eles nas mãos sigo para a cozinha, abro a porta da varanda e os deixo lá; ainda na cozinha, tiro a mochila das costas, me dispo, jogo as roupas no chão, pego minha toalha e lanço tudo na máquina de lavar. Logo depois, sigo para o banheiro, inerte deixo a água quente bater no meu corpo acreditando que aquilo pode evitar um possível contágio; a temperatura elevada me traz de volta, então lavo meus cabelos e esfrego cada centímetro do meu corpo como se a força aplicada naquela ação fosse proporcional à limpeza.

Saio do banheiro, e enquanto me visto lembro do hidratante “realmente ajuda”, aceito. Seco os cabelos e vou para a cozinha limpar o que fora comprado. Borrifo a solução em tudo o que toquei, mesmo com lenço, e aquilo que não toquei, como as maçanetas da porta de entrada, e com um pano seco tudo; sem esquecer do chão onde minhas roupas ficaram alguns segundos. Levo as duas sacolas e a caixa com seis garrafas para a cozinha, deixo-as no chão ao lado da mesa e as limpo com a solução de água sanitária; repito isso com cada item das sacolas, depositando-os na mesa para, em seguida, guarda-los no armário. Lembro das três garrafas e maionese na mochila, são desinfetadas e têm o mesmo destino do restante das compras. Assim como as compras, as sacolas e mochila passam pelo mesmo processo de limpeza. Por último, volto para a sacada e limpo o sapato. Junto tudo o que foi usado e coloco no balde com água e água sanitária.

Almoço e vou para a cama descansar um pouco.

*Luan Remígio é professor da Seduc-PA, doutorando em filosofia pela Unifesp e intercambista na Universidade del Salento, Lecce, Itália

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