A guerra em curso

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Por TARSO GENRO*

A extrema direita compôs com o Centrão o acordo do “orgulho de sermos párias globais” no mundo devastado pela Pandemia

A guerra está em curso. A extrema direita, aqui no Brasil, aliada com o Centrão precisa dela, a interna e – se for necessário – a aventura extrema de uma Guerra externa, orientada pelos Estados Unidos, pelas mentiras compulsivas do seu Presidente, que – em acordo com o nosso – compôs um acordo estratégico que estupra a nação: o acordo do “orgulho de sermos párias globais” num mundo devastado pela Pandemia, que se reflete num país –o nosso – que arde em chamas tão altas como a intensidade do desprezo pelos pobres, pela academia, pela ciência, pela total destruição dos protocolos das instituições que nos regem como República.

Bolsonaro retraiu-se um pouco no seu fascismo, para segurar-se na flexibilidade dos liberais da sua base, em fila para responder ações penais por corrupção. O seu milicianismo orgânico prepara o seu aggiornamento para a guerra interna e, se for necessário, para jogar nossas Forças Armadas numa guerra pró-Trump contra a Venezuela.

Francisco Louçã no ensaio seminal “Necropolítica, as raízes do mal”, propõe um conjunto de enunciados para a reinvenção da resistência democrática e social – pela esquerda – no contexto da crise econômica global, cujas saídas são conduzidas de forma dominante pelo capital financeiro e seus agentes públicos e privados. Seu ensaio analisa a emergência renovada do “mal”, principalmente pelo fascismo e o racismo, mostrando que “a cultura de ódio é social quando é racial, e é sempre social, mesmo quando não é racial”. E o racismo, acrescenta, “pode ser o seu enunciado mais poderoso, porque mobiliza o recalcado e fornece uma auto desculpabilização dos cúmplices” (pois) “todo o discurso odioso tem por objetivo criar o medo e instalar o impensável”.

Sartre dizia algo parecido, afirmando que os fracassados, os recalcados infelizes, os não privilegiados pelo sistema, ou os privilegiados em busca de identidade, quando levantam a sua cabeça dentro da caterva em que vivem e apontam alguém dizendo “negro”! – por exemplo – querem afirmar que existem dentro da sua miséria moral e se oferecem para participar de um rebanho, que tenha como causa a eliminação do outro como diferente.

Adam Toole, historiador de Cambridge – mostra Louçã – apontou na crise de 2008 as agências financeiras globais “como esquadrões da morte paramilitares”, que detinham a cumplicidade da maior parte das autoridades, para impor políticas de fome, desemprego e empobrecimento de vastos setores do mundo do trabalho, colocando a totalidade do Estado na condição de apêndice das políticas de “austeridade”. Estas políticas, em situação de crises mais agudas – como na crise sanitária atual – precisam mobilizar um discurso “anti-sistema”, para eliminar as resistências da democracia liberal-representativa.

As ideias negacionistas e criminosas exercitadas na Pandemia – portanto – não foram gestadas dentro dela, mas correspondem já a uma profunda mutação no organismo da forma republicana de democracia, que, se antes – na América Latina – era golpeada de “fora para dentro”, passou a ser desmantelada pelo meio da manipulação midiática, das milícias digitais, pela dissolução da força política das instituições do Estado, por dentro do direito formal. Assim, a criminalização indeterminada das lideranças políticas tradicionais devem se tornar cúmplices do fascismo, ou serão arrastadas – inclusive muitas vezes por crimes reais – pelo aluvião de processos penais, que complementam o quadro distópico, onde a exceção e a regra se fundem, como fratura exposta de uma democracia fraquejante.

Trata-se de uma “política de guerra”, que também se revela nas novas formas de operação política pela direita e extrema-direita, no contexto da democracia política, para esvaziá-la de sentido e de representação. A necropolítica – com fundamento na cultura do ódio – passou a ser uma política universal do capital, pela qual ele subordina e “compra” partidos, gera novos partidos e seus centros de inteligência criminosa – em rede – simulando que eles e suas redes não são organizações políticas. O passo decisivo desta inovação autoritária, todavia, foi a subversão da formação da opinião, para a composição das novas alianças, quando os seus operadores não hesitaram em se posicionar – por exemplo – como falsamente “neutros” em relação ao fascismo. Mesmo quando na disputa se chocavam “civilização x barbárie”.

O caso clássico deste cinismo estratégico foi a tese da “escolha difícil”, aqui no Brasil, entre Haddad e Bolsonaro, pois ali as políticas do “mal”, de corte fascista, receberam um passaporte para a legalidade. Mesmo declarando publicamente as suas intenções criminosas, os fascistas foram aceitos para se legitimar “dentro da democracia” e se unirem a um campo, cujas promessas de reformas – fictícias ou reais – precisavam de certa “base de massas”.

A estas massas foram oferecidos o “empreendedorismo” e a “meritocracia”, como espaços possíveis de serem ocupados por todos, quando, na verdade, eles só podem abrigar muito poucos: os sobrantes são a maioria e a sua parte mais visível vende pentes, morangos e panos de prato, nas tristes esquinas do desastre ultraliberal. O país afunda, socialmente, ambientalmente, em termos sanitários e economicamente, mas Bolsonaro não vai se render.

Os complexos relacionamentos entre política e direito, direito e ideologia, na crise atual da democracia liberal, tem precedentes emblemáticos no século passado, flagrados pelo mestre Raúl Zaffaroni no seu artigo definitivo sobre Carl Schmitt, “La única política es la guerra?”.

Nele, Zaffaroni mostra a ideia central do jurista do nazismo, sobre o direito e a política: para Schmitt, a disposição de levar as coisas até o extremo da guerra “é a essência mesma da política”, teoria que deixa “fora da sua definição” o restante das “práxis” políticas vinculadas ao direito e outros conceitos sobre ele. Preso depois da Guerra, Schmitt alega que seus colegas que não aceitaram o nazismo – como o gigantesco Radbruch – eram “políticos” e ele era um “cientista” puro. Foi liberado pelos Tribunais dos vencedores e continuou a sua carreira de jurista autoritário, já pondo a sua “ciência” a serviço de outras guerras.

Qual o movimento ideológico visível, a partir das concepções de Schmitt, retratadas – no presente – nas posições de Trump, Bolsonaro, bem como nos procedimentos dos fascistas de todos os países, com o negacionismo do Covid 19? É o seguinte: quando Schmitt dizia que teorizava como “cientista”, no campo do Direito, é porque ele se negava a usar as premissas filosóficas humanistas para atacar as “políticas de guerra” nazi. Para ele, esta filosofia era decadente – como o próprio humanismo burguês democrático – visão que lhe exigia erigir – a partir da sua adesão plena ao nazismo- um falso espírito científico e através deste, portanto, promover a falsificação da história real. Assim, Schmitt substituiu a ciência por uma falsificação ideológica apresentada como ciência para esta justificar a “essência da política como guerra”, como Hitler formulava para dar base à “ciência política” nazista e a sua visão do Direito.

A guerra em curso já estraçalha a base de alianças do bolsonarismo e os organizadores do Golpe contra Dilma se separam, se digladiam no ringue dos “impeachments”, se avacalham nas redes e se tornam inimigos mais perturbados, mentalmente, do que na hora da votação da derrubada do Governo democrático da Presidenta Dilma. Agora passam a atacar, não a elogiar, as mães – uns dos outros- esperando alguma orientação do “mito”, que os trata como jumentos disponíveis para carregarem – daqui a pouco – mais uma carga de insanidade na ladeira forjada pelas reformas ultraliberais. Recuso-me a pensar que as Forças Armadas do país estejam satisfeitas com tudo que ocorre, pois isso seria colocá-las no nível do demente que foi expulso da corporação, por duras suspeitas de terrorismo. Vamos unir democracia, república, soberania nacional, rapidamente, antes que passe a oportunidade e a insanidade se aposse, de maneira definitiva, dos destinos da República.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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