O que quer Antonio Risério?

Imagem: G. Cortez
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

O articulista da Folha e a difusão convicta de posições racistas

every opinion is also a hiding place, every word also a mask” (Friedrich Nietzsche).

“Pode-se notar que tal literatura floresce nos momentos mais característicos de crise político-social, quando a separação entre governantes e governados se faz mais grave e parece anunciar eventos catastróficos da vida nacional” (Antonio Gramsci).

“– Vou te dizer, eles estão tomando conta, é só o que se vê na TV hoje, crioulos [negros] vendendo sabonete, pasta de dente, automóveis, em todo o lugar é crioulos [negros] que não acaba mais […] [Walter Breachway – Organização Ku Klux Klan] – Há pouco tempo atrás esses filhos da puta não estavam na TV […] vou ter que admitir a cozinha é o lugar deles […] [Ivanhoe Ron – Organização Ku Klux Klan] – Para nós hoje em dia não sobrou mais nada, não pode falar nada, não pode falar isso, não pode falar aquilo seja educado, nem pode falar mais que são de cor […][Walter Breachway – Organização Ku Klux Klan]” (Spike Lee, Infiltrados na Klan).

O poeta, romancista e antropólogo Antonio Risério se tornou há algum tempo um leitor “importante” dos debates acerca das questões raciais, sobretudo no Brasil – se tornou na verdade em um adversário convicto da luta dos negros contra o racismo cruel que os atinge cotidianamente. Suas últimas intervenções foram tratando do que ele nomeou como sinhás pretas da Bahia, texto corroborado e mobilizado pelo jornalista Leandro Narloch,[1] e agora abordando o racismo negro: “o racismo preto antibranco”. E que afirma “ninguém querer saber”.

Mas o que quer Antonio Risério ao propor observação de que negros são, igualmente, racistas como os brancos, o racismo reverso? Quais são as implicações da afirmação do poeta e antropólogo que é preciso “olhar”, também, com “microscópios” o, suposto, racismo negro, tal como se olha o racismo branco?

O núcleo substantivo do argumento do texto de Risério é que negros podem sim, e são tendo em vistas diversas circunstâncias recentes, racistas. Mas como ele sustenta essa formulação?

Nosso poeta recorre a exemplos históricos e ocorrências factuais para demonstrar o racismo negro antibranco, ou simplesmente o racismo contra o branco. Ele cita pela ordem: “Coloring the News, William McGowan” e ataques de pretos contra brancos no metrô de Washington; “idosos brancos atacados no Brooklyn”; “no Michigan rapazes pretos curraram moça branca”; em “Crown Heights em 1991 pretos gritavam Heil Hitler para judeus”; “o boicote preto a armazéns de coreanos no Brooklyn”; “Marcus Garvey era admirador de Hitler”; e sigamos nosso poeta com paciência, a “Frente Negra Brasileira de 1930 elogiava Hitler e Abdias Nascimento era integralista”; “o Black Lives Matter pede a morte dos judeus”; “Yusra Khogali, mulata sudanesa, diz Risério, tem ímpetos de assassinar brancos”. É isso mesmo, não estamos a ler o Wikipédia com a entrada “racismo negro nos últimos 500 anos” – sim, estamos a ler o artigo de um antropólogo que se propõe a ser antagonista de talento às lutas contra o racismo.

Se tais eventos ocorreram de fato ou não, se Risério os retirou do seu contexto, se ele interpretou equivocadamente todos esses casos, e se ele é estudioso ou não do que fala não nos importa. Isso cabe exclusivamente a ele; e ademais está escrito, dito e publicado. (Ironizando van Middelaar que diz ter escrito em defesa da invasão do Afeganistão nos anos 2000 quando tinha apenas 28 anos, Perry Anderson comenta que não podemos culpar Tocqueville por ter escrito Democracia na América com a mesma idade. Diferente de van Middelaar em seu tempo, Risério é um homem velho.)

Lateralmente Risério astuto que é e escrevendo uma peça retórica polêmica não se esquece de dizer que é um clichê a posição dos movimentos negros e suas figuras quando afirmam ser descabido o racismo reverso uma vez que povos pretos não tem instrumento de poder – econômico, político-estatal e simbólico para exercer exploração, opressão, discriminação cultural e esmagamento psíquico. Voltarei a esse tema à frente.

A questão fundamental é que Antonio Risério escreve um texto com qualidade teórica, intelectual e argumentativa duvidosa no mínimo. O seu desejo inconfesso talvez de se “colocar” como “voz” pseudo-eloquente de setores da elite/burguesia branca e da classe média conservadora (que “entende” a competência como branca e de que vida é meritocracia) limita as colocações que avança. Simples raciocínios lógico-históricos são suficientes para averiguarmos as fragilidades do artigo de Risério: será que um escravo ou um grupo de escravos na Grécia antiga, em meio a toda a cultura das castas, mesmo ofendendo alguns deles estaria sendo preconceituoso e opressor, e se o fosse qual o resultado de um escravo ou grupo de escravos ofenderem e até praticarem violência contra aqueles setores na Ática?

Ou vamos supor, contemporaneamente, que em uma escola 15 adolescentes praticam o bullying contra um único jovem que responde acuado, ofende e até pratica ato de agressividade contra um ou dois ou três membros daqueles 15, estaria esse jovem praticando bullying reverso ou sendo preconceituoso, racista, a depender da ocasião? Mas e o contrário? Será que um jovem alto, padronizadamente belo, branco, loiro de olhos azuis, abdômen perfeito, herdeiro de uma família tradicional na mesma escola ao passar por situações inconvenientes e mesmo de “bullying” perpetrados por 15 ou 20 adolescentes teria a mesma consequência social e psíquica? Suponhamos que a Prússia de Bismarck (1815-1898) fosse tratada ao seu tempo pelos outros estados alemães com desprezo e preconceito, do que isso resultaria no arranjo político e para a história prussiana em si naquele momento, sendo ela a mais importante, poderosa e decisiva região do Império Alemão de então?

É mais do que evidente que são momentos hipotéticos aleatórios reunidos. Antonio Risério se não tivesse sua consciência reificada – nos termos de George Lukács uma mente que assalta a razão, típico de intelectuais da era da decadência ideológica das classes burguesas – com o anseio de escrever algo que converge (involuntária ou voluntariamente, pouco nos diz respeito…) com o que há de mais pútrido na sociedade brasileira deveria compreender que as relações humanas possuem “determinações [histórico-sociais] da existência” (Marx) – e nessas e a partir dessas adquirem sentidos.

Mas a era da obscenidade não tem fim: nosso poeta conseguiu comparar o Black Lives Matter ao agressivo Estado de Israel. Não, não ficamos loucos, antes o tivéssemos ficado e nos puséssemos a transformar definitivamente a doce sociedade que o poeta tanto ama e apresentar a ele a justiça da Guilhotina ou da fortaleza Pedro Paulo – foi Antonio Risério quem asseverou que “o ódio multicultural-identitário a Israel parece não ter limites” e que “hoje, o Black Lives Matter pede a morte dos judeus em manifestações públicas.” (Caro Risério, suspeito que Israel já possua bons defensores, com um exército tecnicamente preparado e um excepcional serviço diplomático espalhado pelo mundo, não se preocupe: não perca seu tempo bom baiano.)

Quanto ao dogma e clichê, que segundo Risério, perpassa a alegação dos movimentos negros de que não possuímos estruturas de poder para exercermos o racismo reverso o que podemos dizer? Antes vejamos; ele diz em resposta ao suposto lugar-comum: “É uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo”, e mais à frente, “Mesmo que a tese fosse correta, o que está longe de ser o caso, existem já meios para o exercício do racismo negro”.

Aqui Risério não apresenta nem mesmo informações, eventualmente, extraídas do Wikipédia; como já dito não nos importa o grau e/ou nível de conhecimento do poeta sobre o que trata. Ora, o problema de fundo é que Antonio Risério possui posição definida no campo do debate de ideias e no espectro político; se ele as enuncia ou não faz parte daquilo que o Machado de Assis de Roberto Schwarz chamou de desfaçatez de classe. Pois afirmar em um artigo, publicado no maior jornal do país, e muito provável do continente, claramente que “é uma tolice” o fato de negros serem diuturnamente exterminados pela polícia militar de todos os Estados da federação brasileira; que a principal política negra (de esquerda) dos últimos anos, Marielle Franco foi assassinada por sicários paraestatais brancos com nove tiros no centro do Rio de Janeiro (antes da meia-noite de uma quarta-feira); que mais de 80 % do corpo docente de nossas universidades públicas são de pessoas brancas (só para percebermos o que isso significa no departamento de história da Universidade da Califórnia-UCLA, onde dão aulas Robert Brenner, Carlo Guinsburg e Perry Anderson há oito docentes negros, oito, se reunirmos os departamentos de história das três universidades públicas paulistas e as federais que aqui estão é quase certeza que não alcançaremos esse número: e os Estados Unidos é um país segregado, imagine caro leitor e cara leitora o que “é o Brasil então”); que parte considerável de mulheres negras (senhores já de cabelos brancos por vezes) ainda são empregadas domésticas; que meninos negros trabalham horas e horas em deliveries sem nenhum direito sequer; que o sistema capitalista brasileiro foi fundado, desenvolveu-se, reproduziu-se e mantém-se a partir dos braços de milhares de homens negros e mulheres negras; que malgrado o talento de centenas de artistas negros e negras de todas as áreas nossa produção cinematográfica (um país como o Brasil conseguiu até hoje produzir um único grande cineasta negro, Jefferson Dé), dramatúrgica (televisão e teatro) e em artes plásticas está esmagadoramente nas mãos de brancos; e que a elite de todas as áreas (e não desperdice seu tempo Risério com outro texto sobre isso, a maioria da nação negra não quer ser parte da elite), econômica, política, judiciária e cultural é branca – negar tudo isso é de alguém que definitivamente sabe o que quer e sabe o que fala.

No fim de seu texto Risério comenta que as “implicações” do racismo reverso parecerem “óbvias”. Nosso poeta-tartufo não expressa, abertamente o que quer, mas não temos dúvidas disso e das implicações de suas opiniões: é difundir convicta e essencialmente posições racistas, reacionárias, conservadoras e de direita que são contrárias à luta heroica e aguerrida de negros e negras por uma vida melhor. O bom baiano só se esqueceu de que agora nos colocamos de pé – e não mais deitaremos, custe o que custar.

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

 

Nota


[1] Respondi a eles em outra ocasião. Cf. https://aterraeredonda.com.br/leandro-narloch/?doing_wp_cron=1642543023.0001039505004882812500).

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