A nova edição brasileira dos Cadernos do cárcere

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Por LINCOLN SECCO & GIOVANNI SEMERARO*

Comentário sobre a tradução integral on line do livro de Antonio Gramsci

Em 1923 Antônio Bernardo Canellas escreveu um relatório de sua participação no IV Congresso da Internacional Comunista. Fez provavelmente a primeira menção ao nome de Antonio Gramsci, com quem ele debateu em Moscou. O nome de Antonio Gramsci foi citado diversas vezes no Brasil desde então, mas somente na década de 1960 seus Cadernos do Cárcere foram publicados aqui.

Na Itália os Cadernos do Cárcere vieram a lume entre 1948 e 1951. Sob a supervisão de Palmiro Togliatti e Felice Platone reagruparam-se as notas de Antonio Gramsci por grandes temas. Foram seis livros: Maquiavel, o Estado e a Política Moderna; Literatura e Vida Nacional; Passado e Presente; O Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce; O Risorgimento. Além disso, foram publicadas também as Cartas do Cárcere.

Aquela edição estava ligada à chamada via nacional para o socialismo (estratégia do Partido Comunista Italiano no pós-guerra). Agrupar as críticas de Antonio Gramsci a Benedetto Croce e não a crítica a Nokolai Bukharin revelava uma escolha, por exemplo. No segundo caso, seria mostrar um Gramsci que questionava o materialismo soviético, algo incômodo para os comunistas na década de 1950.

A “edição temática” serviu de base para a primeira tentativa de publicação dos cadernos no Brasil na década de 1960, como vimos. A publicação ficou incompleta, entretanto. Em 1975, Valentino Gerratana publicou na Itália os textos na sua “ordem espacial”, ou seja, como eles aparecem nos cadernos originais, embora tivesse persistido a polêmica acerca da ordem cronológica dos textos.

A partir de 1999 Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira publicaram uma versão dos Cadernos do cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. Embora tenha ampliado o conhecimento de textos gramscianos, já que a edição temática ficara inconclusa, a edição brasileira também não é completa e a ordenação dos textos é arbitrária.

No site da Internacional Gramsci Society-Brasil (igsbrasil.org/galeria) encontra-se agora disponível gratuitamente a tradução integral dos Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci, realizada com base naquela Edizione Critica dell’Istituto Gramsci, a cura di Valentino Gerratana.

Padrão consagrado para referências e traduções em várias línguas, a Edizione Critica oferece o conteúdo de todas as anotações manuscritas que Antonio Gramsci registrou entre 1929 e 1935, preenchendo cadernos “miscelâneos” e “especiais”, como ele mesmo os denomina. Com a autorização do Instituto Gramsci de Roma e da Editora Einaudi de Turim, esta tradução em língua portuguesa, promovida pela IGS-Brasil e realizada sem financiamento, com a colaboração voluntária de uma equipe de docentes de várias universidades brasileiras, terá seu lançamento oficial nesta terça-feira, 5 de novembro.

Tendo à disposição a tradução das anotações completas na forma como foram escritas por Antonio Gramsci nos Cadernos do cárcere, leitores, estudantes, pesquisadores e militantes sociais e políticos, poderão ter uma compreensão mais precisa do contexto histórico, político e cultural no qual estes escritos se situam; com acesso às mais diversas áreas de conhecimento exploradas pelo autor, à complexidade do seu pensamento e à intensa trama conceitual que permeia a elaboração da sua impactante concepção política e da sua original visão de mundo.

Além de tornar visível “como trabalhava Antonio Gramsci” nas precárias condições carcerárias, a leitura sistemática dos Cadernos do cárcere revela a metodologia utilizada em suas pesquisas. Percorrendo as anotações carcerárias, tecidos de forma reticular e evoluindo em espiral, descobre-se o “ritmo do pensamento em movimento” (Caderno 11, final do § 22), como o próprio Antonio Gramsci define a dinâmica do seu processo teórico. Por isso, recomenda que ao estudar o pensamento de um autor é preciso buscar o significado autêntico dos seus escritos “em todo o desenvolvimento do trabalho intelectual”, realizando “preliminarmente um trabalho filológico minucioso e conduzido com o máximo escrúpulo de exatidão” (Caderno 16, §2).

Em concomitância com esta recomendação, ao longo das notas, Antonio Gramsci aponta frequentemente critérios para adquirir um método rigoroso de estudo (cf., por ex., Caderno 11, § 15) e meios para se formar uma consistente personalidade dotada de maturidade intelectual, conhecimento poliédrico e atuação nas organizações sociais e políticas.

Quem se dedica, portanto, à leitura integral das suas notas, ainda que enfrente um trabalho demorado, poderá se deparar com uma enorme riqueza de dados e de perspectivas teóricas. Contrariamente à superficial impressão de fragmentação, Antonio Gramsci desenha um projeto de pesquisa lastreado na dialética da história e elaborado no interior do marxismo.

Isso permite elaborar uma visão unitária da realidade, onde as partes se articulam com o todo e a “filologia vivente” dos fatos concretos se vincula a uma concepção orgânica de mundo que entrelaça o local, o regional, o nacional e internacional, uma vez que “a história é sempre ‘história mundial’ e que as histórias particulares vivem unicamente no quadro da história mundial” (Caderno 29, §2).

Ao navegar neste fascinante universo, percebe-se a inseparável conexão que Antonio Gramsci estabelece entre “método de pesquisa” e “método de exposição”, uma vez que a coleta do material de primeira redação registrado nos “cadernos miscelâneos” não é um depósito aleatório de notas, mas um extenso campo de pesquisa e um complexo laboratório de ideias, articulado por objetivos que condensam um significativo acervo de assuntos direcionados a confluir nos temas aglutinadores mais elaborados e sistematizados nos “cadernos especiais”.

Dedicar-se ao estudo dos Cadernos é como ingressar em uma grande escola, de alto nível, aberta a todos. A IGS-Brasil nos brinda com um generoso trabalho coletivo que ainda vai continuar com eventuais ajustes, elaboração das notas com base nas 600 páginas de Note al Testo do Apparato Critico da Edição Gerratana e a oferta de cursos sobre a obra de Antonio Gramsci.

Espera-se, assim, que, posta ao alcance de todos, esta tradução possa incrementar mais a participação ativa de todos os que no Brasil lutam pela construção da nova civilização vislumbrada nos Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

* Giovanni Semeraro é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de Gramsci e os novos embates da filosofia da práxis (Editora Ideias e Letras).

Referência

Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Tradução coletiva. 2024.

Disponível em https://igsbrasil.org/galeria

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