A nova estratégia de segurança nacional de Donald Trump

Imagem: Jon Parry
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Por RICK LANDGRAF*

A prioridade máxima desloca-se para as próprias fronteiras, reordenando o poder global a partir de um nacionalismo que é, ao mesmo tempo, econômico, espiritual e hemisférico

1.

A nova Estratégia de Segurança Nacional foi divulgada e causou um grande impacto. Não se trata apenas da mais recente declaração pública de princípios, ambições e prioridades que norteiam a política externa dos Estados Unidos. Em vez disso, assemelha-se a um manifesto para um projeto americano radicalmente diferente.

É mais restrita, mais partidária, mais voltada para dentro e mais personalizada do que qualquer uma de suas antecessoras. Abaixo, apresentamos dez pontos importantes para a compreensão de como os Estados Unidos enxergam seu papel e sua posição no mundo.

Primeiramente, a estratégia é explicitamente sobre este presidente e não sobre os Estados Unidos como um todo. A maioria das estratégias de segurança nacional ao menos tenta apresentar os Estados Unidos como um todo coeso e deixa a política interna de fora. Esta, em vez disso, coloca a divisão partidária e o próprio presidente no centro das atenções.

Ela apresenta o “segundo mandato do presidente Donald Trump” como uma expansão de seu primeiro mandato – uma “correção necessária e bem-vinda” – que começou a “inaugurar uma nova era de ouro”.

Chama Donald Trump de “O Presidente da Paz”, “aproveitando sua habilidade de negociação” para garantir pessoalmente uma “paz sem precedentes” em oito conflitos ao redor do mundo, incluindo o fim da guerra em Gaza com todos os reféns sobreviventes devolvidos às suas famílias. Ao fazer isso, o documento mescla estratégia nacional e campanha política.

Isso é importante porque, quando uma estratégia de segurança nacional eleva o presidente ao papel de protagonista em vez do país, ela confunde a linha divisória entre estratégia institucional e mensagem política. Isso altera a forma como os aliados avaliam a confiabilidade, como as agências interpretam as diretrizes e como os adversários avaliam a continuidade para além de uma única pessoa.

Em segundo lugar, restringe o propósito americano aos “interesses nacionais essenciais” e rejeita explicitamente a ordem liberal pós-Guerra Fria que os Estados Unidos construíram e lideraram. A estratégia define política externa como “a proteção dos interesses nacionais essenciais” e afirma que esse é o “único foco” do documento.

Critica as “elites da política externa americana” por buscarem a “dominação americana permanente do mundo inteiro” e por vincularem os Estados Unidos ao “chamado ‘livre comércio’”, ao globalismo e ao “transnacionalismo”, que supostamente enfraqueceram a classe média americana e corroeram a soberania. Enquanto as estratégias anteriores envolviam o poder americano na linguagem da promoção da democracia e da ordem baseada em regras, esta é marcadamente diferente.

Ela redefine liderança e poder por meio de coerção, bilateralismo e alinhamento transacional. Esta é uma América que não está necessariamente se retirando do cenário mundial, mas consolidando seu poder por meio de intimidação e negociações.

2.

Em terceiro lugar, a imigração é elevada à condição de principal problema de segurança nacional. O texto declara, sem rodeios, que “a era da migração em massa deve terminar” e que “a segurança das fronteiras é o elemento primordial da segurança nacional”.

Ele enquadra a migração em massa como um fator impulsionador da criminalidade, da desestruturação social e da distorção econômica e defende um mundo onde os Estados soberanos cooperem para “impedir, em vez de facilitar, os fluxos populacionais desestabilizadores” e controlar rigorosamente quem admitem. Na prática, isso faz do controle de fronteiras e da fiscalização da imigração o foco central da política de segurança nacional, e não apenas uma preocupação entre muitas.

Isso tem consequências graves para o posicionamento das forças militares, a diplomacia e a alocação de recursos. Se a segurança das fronteiras é a prioridade máxima, então as missões no Indo-Pacífico, na Europa e no Oriente Médio ficam subordinadas à fiscalização hemisférica. Mais do que uma mera mudança retórica, essa estratégia reordena a hierarquia de ameaças e perigos.

Em quarto lugar, um “Corolário Trump” à Doutrina Monroe coloca o Hemisfério Ocidental em primeiro lugar e implica um realinhamento da postura de força global. A estratégia afirma que os Estados Unidos “afirmarão e farão cumprir um ‘Corolário Trump’ à Doutrina Monroe” para manter o Hemisfério Ocidental livre de “incursões estrangeiras hostis ou posse de ativos-chave”, garantindo, ao mesmo tempo, estabilidade suficiente para prevenir a migração em massa e proteger as cadeias de suprimentos críticas.

Não está claro como a América Latina se encaixa no plano, se como uma região parceira externa ou dentro de um perímetro de segurança expandido dos EUA. O texto prenuncia um “reajuste de nossa presença militar global”, afastando-se de teatros de operações considerados menos centrais e direcionando-se para contingências hemisféricas.

Há uma hierarquia rígida de regiões: as Américas em primeiro lugar, com a Ásia, a Europa e o Oriente Médio explicitamente importantes, mas agora competindo com uma prioridade hemisférica oficial. Essa é a lógica da Doutrina Monroe reaproveitada para controle demográfico e nacionalismo econômico.

3.

Em quinto lugar, a proteção da cultura americana, da “saúde espiritual” e das “famílias tradicionais” é apresentada como um requisito fundamental de segurança nacional. É aqui que as influências do nacionalismo cristão e do vice-presidente se tornam mais evidentes.

O documento insiste que a “restauração e o revigoramento da saúde espiritual e cultural americana” são pré-requisitos para a segurança a longo prazo e vincula isso a uma América que “valoriza suas glórias passadas e seus heróis” e é sustentada por um “número crescente de famílias fortes e tradicionais” que criam “crianças saudáveis”. Assim, a América é retratada como defensora dos chamados valores tradicionais, enquanto a Europa carece de “autoconfiança civilizacional e identidade ocidental”.

A linguagem do documento não se limita à típica menção superficial a valores e coesão social das estratégias de segurança nacional anteriores. Ele redefine cultura e família como questões explícitas de segurança nacional, o que traz a política cultural interna para o domínio da tomada de decisões em segurança nacional.

Em sexto lugar, a estratégia eleva as guerras culturais a uma lógica orientadora para a segurança nacional, e o faz por meio de uma retórica que trata as disputas ideológicas e culturais como questões de consequência estratégica. O documento denuncia a Diversidade, Equidade e Inclusão como uma fonte de deterioração institucional e apresenta isso como um problema de segurança nacional.

No entanto, o argumento não se limita à política de pessoal. Ele se expande para um esforço mais amplo de definir coesão cultural, identidade política e até mesmo mudança social como indicadores de confiabilidade estratégica. Isso fica mais claro na seção europeia, onde a estratégia sugere que alguns aliados estão se afastando devido ao que descreve como liderança política falha, insatisfação pública com a política em relação à guerra na Ucrânia e supostas fragilidades estruturais na democracia europeia.

O texto também especula sobre mudanças demográficas e culturais na Europa como forma de questionar se os futuros governos compartilharão as visões americanas sobre suas alianças. A estratégia não fundamenta essas afirmações. Em vez disso, usa-as para insinuar que o alinhamento cultural é essencial para a parceria estratégica.

O que emerge não é uma avaliação tradicional da capacidade ou da vontade política dos aliados, mas sim um teste cultural de confiabilidade geopolítica. Governos europeus considerados insuficientemente responsivos à opinião pública são retratados como supressores de impulsos democráticos legítimos. Suas divergências políticas com Washington são apresentadas como evidência de uma deriva cultural ou ideológica mais profunda.

A estratégia, portanto, trata os debates políticos internos nas democracias aliadas como assuntos de escrutínio americano, ao mesmo tempo que insiste no estrito isolamento da política interna americana da influência estrangeira. Essa assimetria revela uma visão de mundo na qual a política cultural se torna um instrumento de diplomacia.

Ela posiciona os Estados Unidos para julgar a ordem interna de seus parceiros pela ótica da compatibilidade ideológica, em vez da capacidade institucional ou dos interesses compartilhados. Ao fazer isso, a estratégia incorpora a guerra cultural à gestão de alianças e trata as narrativas culturais internas como ferramentas estratégicas, e não puramente políticas.

4.

Sétimo, o escudo antimíssil “Cúpula Dourada” é identificado como um objetivo estratégico. A estratégia prevê “defesas antimísseis de próxima geração – incluindo uma Cúpula Dourada para o território americano” para proteger os Estados Unidos, seus ativos no exterior e seus aliados. Esta é uma visão ambiciosa de defesa antimíssil em camadas para o território nacional, que vai muito além do foco tradicional na proteção limitada contra estados rebeldes.

Na verdade, trata-se de uma mudança doutrinária. Se interpretada literalmente, implica compromisso industrial e investimentos imensos. E qual é a contrapartida? Projeção de poder reduzida? Um exército menor? Qualquer tentativa de defesa antimíssil abrangente desestabiliza a lógica estabelecida da dissuasão nuclear. Persegui-la suscitaria preocupações em Moscou e Pequim de que Washington busca uma vantagem de primeiro ataque.

Oitavo, o projeto de longa data de aumentar a partilha de encargos com os aliados evolui para uma transferência de encargos, ancorada na promessa feita pelos países da OTAN na Cúpula de Haia, em junho de 2025, de gastar 5% do PIB em defesa. Embora as estratégias anteriores tenham solicitado aos aliados dos Estados Unidos que fizessem mais, esta eleva a situação a outro patamar.

“Os dias em que os Estados Unidos sustentavam toda a ordem mundial como Atlas acabaram”, afirma, e destaca um “Compromisso de Haia” segundo o qual os países da OTAN “comprometem-se… a gastar 5% do PIB em defesa”, um padrão que, segundo o governo, os aliados endossaram e que agora “devem” cumprir. Isto é mais do que uma mera pressão e tem implicações para a coesão da aliança. Trata o cumprimento como uma condição para obter apoio político. Se imposto, desencadearia graves choques orçamentais e políticos em toda a Europa e noutros lugares.

5.

Em nono lugar, há uma doutrina mais incisiva de afirmação da soberania, aliada à suspeita em relação às instituições internacionais. Os princípios da estratégia enfatizam a “primazia das nações” e prometem resistir às “incursões que minam a soberania das organizações transnacionais mais intrusivas”, prometendo “reformar” essas instituições para que “auxiliem, em vez de dificultarem, a soberania individual e promovam os interesses americanos”.

Também alerta contra tentativas estrangeiras de “manipular nosso sistema de imigração para formar blocos de votação leais a interesses estrangeiros dentro do nosso país”. Ao enquadrar a política da diáspora como uma ameaça à segurança nacional, a estratégia obscurece a fronteira entre contraespionagem e competição política interna, uma medida sem precedentes em estratégias de segurança nacional anteriores.

As afirmações sobre soberania no texto expõem um duplo padrão: não se deve mexer com os Estados Unidos, mas o governo de Donald Trump não vê problema algum em se intrometer nos debates políticos internos de aliados, principalmente da Alemanha.

Por fim, o nacionalismo econômico e a reindustrialização ocupam o centro da estratégia de segurança, e não a periferia. O documento considera o fortalecimento da força industrial americana como “a prioridade máxima da política econômica nacional”, com uma base manufatureira robusta descrita como essencial tanto para o poder em tempos de paz quanto em tempos de guerra.

Promete reequilibrar o comércio, assegurar cadeias de suprimentos críticas em um espírito hamiltoniano, para que os Estados Unidos “nunca… dependam de qualquer potência externa” para insumos essenciais de defesa ou econômicos, e posicionar o setor energético como um dos principais motores de exportação. A política industrial, as tarifas e os controles da cadeia de suprimentos, portanto, não são dissociados da estratégia.

Pelo contrário, são instrumentos centrais da diplomacia, em pé de igualdade com as ferramentas militares tradicionais. É aí que residem as contradições. A reindustrialização impulsionada por tarifas exige gastos federais maciços, enquanto a estratégia também demanda um orçamento de defesa ampliado. E “nunca depender de qualquer potência externa” é materialmente impossível em alguns setores, como precursores farmacêuticos, cobalto e terras raras, sem remodelar os mercados globais.

Em conjunto, essas conclusões apontam para uma estratégia de segurança nacional que funde a política econômica e de imigração “América Primeiro”, uma doutrina hemisférica assertiva e objetivos políticos internos em uma única estrutura organizadora.

Dito isso, não está claro o quanto isso importa na prática. Todos os princípios apresentados na estratégia já foram mencionados anteriormente pelo presidente e seu círculo íntimo. Tanto para aliados quanto para adversários, o choque não reside apenas nas políticas específicas, mas na mensagem de que os Estados Unidos agora enxergam sua segurança de uma maneira mais personalizada, voltada para dentro e mais restrita do que antes.

*Rick Landgraf é jornalista. Edita o portal War on the rocks.

Tradução: Artur Scavone.

Publicado originalmente no portal War on the rocks


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