Boi no telhado

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Considerações sobre quatro livros que ampliam nossa compreensão do modernismo

A incongruência da conjunção entre boi e telhado encantou os franceses, que nela viram a prova de que o povo brasileiro era surrealista por natureza. Refletiu-se até, surpreendentemente, no nome de um famosíssimo cabaré de Paris, Le Boeuf sur le Toît, que vigorou no seio da boêmia artística, como ponto de encontro das vanguardas. E tudo porque o compositor Darius Milhaud, como veremos a seguir, encantou-se com o título de uma canção brasileira, assim nomeando uma de suas suítes.

A conjunção incongruente era um princípio que os surrealistas franceses empunhavam como bandeira, com base na célebre frase de Lautréamont: “Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”. Salvador Dalí é autor de uma tela em que uma máquina de costura tem posição central, enquanto guarda-chuvas abertos esvoaçam ao redor.

Por isso, apropriaram-se da frase e lhe deram destinações variadas, como mostram dois livros de Manuel Aranha Corrêa do Lago (org.): O boi no telhado – Darius Milhaud e a música brasileira no modernismo francês e Uma outra missão francesa (1917-1918) – Paul Claudel e Darius Milhaud no Brasil.

Tudo tem origem na conjunção, esta feliz e não incongruente, da presença de dois artistas na condução dos negócios estrangeiros da França no Brasil: um poeta como embaixador, Paul Claudel, e um compositor, Darius Milhaud, futuro membro do Groupe des Six, como seu adido.

A peça de Darius Milhaud é uma colagem das partituras de 20 outras peças: em geral canções populares brasileiras, mas com duas inserções de música erudita. O organizador fez o levantamento e fornece a lista: lá estão Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá, aos quais o compositor muito admirava. Costurando as 20 peças há um tema musical da autoria de Darius Milhaud, que chamou o conjunto de “rondó”.

Uma das 20 canções é o “tango” O boi no telhado, da autoria de Zé Boiadeiro, pseudônimo de José Monteiro, sucesso do carnaval de 1918. Ao que parece, não tinha letra, portanto não dá para deduzir de onde veio o título: da cabeça do compositor, do folclore, de uma vetusta cantiga de ninar?

A capa da partitura original traz um boi, vestido de terno xadrez, sentado sobre o telhado de uma casa, examinando outra partitura que segura nas patas dianteiras com um ar muito compenetrado. Quanto à indicação de “tango”, nada a estranhar. Claro que tango não era, mas à época, pouco antes que o samba fizesse sua sensacional irrupção como gênero hegemônico da música brasileira e ícone da identidade nacional, chamavam de tango qualquer canção. Até o grande Ernesto Nazareth compôs muitos deles, pois só não queria que os chamassem de “maxixe”, devido ao estigma que sinalizava esta dança de negros.

O autor desses dois livros publicou ainda um outro sobre o Círculo Veloso-Guerra do Rio de Janeiro, em cujo salão da belle époque já se fazia música de vanguarda antes da Semana de 22. Ali se tocava (pasmem!), não só Debussy e Ravel, mas Stravinski transcrito para piano.

Por aproximação com os três belos volumes, vem à baila o trabalho de Carlos Augusto Calil sobre Mário de Andrade no Departamento de Cultura. Notável iconografia, textos importantes, fotos e documentos, afora estudo introdutório do organizador. Carlos Augusto Calil já nos habituara a livros com edição suntuosa, caprichada, como aqueles em que reeditou e estudou outro modernista, Paulo Prado, autor de Retrato do Brasil e de Paulística. Também reeditou o livro de Alexandre Eulálio sobre Blaise Cendrars no Brasil. Em todos eles encontramos alta qualidade editorial, beleza, pesquisa iconográfica aprofundada. Traços que, para nossa sorte, reencontramos neste que leva o adequado título de Sou um departamento de cultura. São todos modelos de edição, inclusive na opulência da apresentação material, de que Carlos Augusto Calil não abre mão.

Com essas riquíssimas reedições revistas e ampliadas de nossos clássicos do modernismo, Carlos Augusto Calil já entrou para o panteão dos autores incontornáveis no estudo dessa fase de nossa literatura e artes. São imbatíveis na pesquisa. Mas também no bom gosto editorial.

Todos esses livros vão ampliando extraordinariamente nossa compreensão do modernismo.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES