A revolução e suas distâncias

Arshile Gorky, Agonia, 1947.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HORACIO GONZÁLEZ*

Reflexões sobre a temporalidade revolucionária.

A revolução está detrás de nós. Apresenta-se difusa – não porque seus diversos nomes assim o sejam, mas porque assume as proporções de um mito perante o qual somos erráticos, consciências insignificantes. Porém, se desde um passado de cristal nos olham as efemérides e as estátuas dos revolucionários, também não consideramos o futuro como a clausura do já acontecido. Consideramos ele como uma imprevisibilidade que inclui todas as versões modificáveis de um pretérito que brinca de esconde-esconde com sua atualidade.

No entanto, a palavra revolução – contemporânea ao menos dos quatro últimos séculos, de Cromwell a Cooke –, não tem a fama de sua etimologia (alguma coisa dar voltas sobre alguma coisa), e sim o prestígio de um corte radical na história. Sempre há uma procura do tempo zero, o dia iniciático, a epifania. Por esse motivo muitas revoluções prescrevem desde o começo o corte dos tempos, o que nos discursos habituais chamamos parte águas, virada, mas, na verdade, o que se parte é o tempo. Tempo por água, que, ainda que não se acredite, é um complemento do tempo.

É por esse motivo que a Comuna de Paris remete seu calendário ao da Revolução Francesa e essa remete ao calendário da natureza: o tempo é medido com relação às evidências naturais, as colheitas, o calor, as brumas etc. Não se poderia dizer que a revolução é uma mudança de calendário, e sim uma visão diferente do tempo, uma cisão da temporalidade linear. Adota-se uma outra, circular? Em grande medida sim, mas ansiando a possibilidade de lhe dar “etapas” e “superações”. Assim aconteceu com a Revolução de Outubro, mês trocado para o de Novembro pelos próprios revolucionários, “ocidentalizando” sua concepção calendária, a noção de cronologia para classificar eventos coletivos.

Mas, se a revolução é um momento específico do tempo – no qual se detém utopicamente –, nunca deixa de ser objeto de preparativos frustrados e oportunidades repentinas, florescentes. O revolucionário profissional parece surgir de um momento prévio: a humanidade precisa ver a si própria de um outro modo, um modo daquele que apenas suspeita qual será. Mas a constância do revolucionário profissional o faz ver o tempo de uma maneira estranha, como correlação de forças, sumatória objetiva de energias.

O tempo é uma força que não pode ser medida, por esse motivo a correlação é uma aposta metafórica. Frente a diferentes momentos dessas correlações, a imaginação age supondo que hoje está fraca a vontade do revolucionário e amanhã, ao contrário, será poderoso. Por isso, os documentos e discursos do revolucionário profissional podem ser vistos como contraditórios, mas se revalidam enquanto vai calibrando as diferentes distâncias que estabelece com sua matéria.

Se ver a revolução próxima, queima etapas. Se a ver longe, porque muitas mediações se interpõem, seus discursos falarão de momentos conjunturais, soma de diferentes aspectos, frentismos lotados de coisas e pessoas com as que nunca concordará de todo. Frente ao revolucionário profissional, ergue-se o revolucionário que não sabe de sua força e nem prevê sua atuação. Não é um espontaneísta e nem um intuicionista. Tem algumas certezas sobre o desfiado da história, alcança-o a suposição de um vazio, não regido por hipóteses segundo um tempo linear ou de etapas que obedecem com seu início, a finalização da que a precedeu. É filho de um insuspeito abismo.

A história das revoluções é a história da contraposição do revolucionário profissional e o revolucionário reconstituído e reposto pelo abismo de um tempo imprevisível. Sempre se contou a história desse último à luz da história do primeiro. Talvez tenha um tempo em que se invertam as equações, e o revolucionário “ocasionista”, o homem do impensado, possa narrar o que viu do que poderia ser seu refúgio originário, aquele revolucionário profissional, que, por ser sempre revolucionário, adequou constantemente sua vida às diferentes paredes que, para derrubar, devis sempre medir segundo as diferentes distâncias que elas lhe ofereciam. Era o jogo entre o pedreiro com sua colher de argamassa fixa e o toureiro que calculava sempre, encafifado, um jogo de distâncias sempre diferentes entre ele e seu objetivo que tanto se move, pura vibração animal.

*Horacio González (1944-2021) foi professor titular da Universidade de Buenos Aires e diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Autor, entre outros livros, de O que são os intelectuais (Brasiliense).

Tradução: Silvia Beatriz Adoue.

Publicado originalmente na revista El Ojo Mocho, ano VII, nº 7, Buenos Aires, Primaveira-Verão 2018-2019.

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Renato Dagnino Vanderlei Tenório Henri Acselrad Antônio Sales Rios Neto Mariarosaria Fabris Ronald Rocha Ricardo Antunes Ricardo Abramovay Marcos Aurélio da Silva Bernardo Ricupero Jean Marc Von Der Weid Rodrigo de Faria Carla Teixeira Everaldo de Oliveira Andrade Denilson Cordeiro Daniel Brazil Remy José Fontana Luiz Werneck Vianna Alysson Leandro Mascaro Caio Bugiato José Machado Moita Neto Maria Rita Kehl João Lanari Bo Chico Whitaker Otaviano Helene Kátia Gerab Baggio Tales Ab'Sáber Vinício Carrilho Martinez Ricardo Fabbrini Dênis de Moraes Marcos Silva Dennis Oliveira Matheus Silveira de Souza Andrés del Río Alexandre de Lima Castro Tranjan Elias Jabbour André Márcio Neves Soares Luís Fernando Vitagliano João Carlos Loebens Liszt Vieira José Geraldo Couto Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Costa Luiz Renato Martins João Feres Júnior Mário Maestri Carlos Tautz Eugênio Trivinho Annateresa Fabris José Costa Júnior João Carlos Salles Paulo Sérgio Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo Marilena Chauí Valerio Arcary Gilberto Maringoni Gerson Almeida Salem Nasser Rafael R. Ioris João Paulo Ayub Fonseca Gabriel Cohn Sandra Bitencourt Flávio Aguiar Manchetômetro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Henry Burnett Bento Prado Jr. Tarso Genro Anselm Jappe Luiz Roberto Alves Chico Alencar Antonio Martins Yuri Martins-Fontes Luiz Eduardo Soares Eduardo Borges José Luís Fiori Andrew Korybko Gilberto Lopes Ari Marcelo Solon Celso Favaretto Afrânio Catani Luiz Bernardo Pericás Lorenzo Vitral Benicio Viero Schmidt Luciano Nascimento Fernão Pessoa Ramos José Raimundo Trindade Flávio R. Kothe Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Marques Michael Roberts Fábio Konder Comparato Michael Löwy Slavoj Žižek Marcus Ianoni Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Marcelo Guimarães Lima Michel Goulart da Silva Fernando Nogueira da Costa Francisco Pereira de Farias Leda Maria Paulani Osvaldo Coggiola Paulo Nogueira Batista Jr Leonardo Sacramento Leonardo Boff Eleonora Albano Paulo Martins Armando Boito Boaventura de Sousa Santos Leonardo Avritzer Antonino Infranca Alexandre Aragão de Albuquerque Vladimir Safatle Marjorie C. Marona Eugênio Bucci Berenice Bento Manuel Domingos Neto Jorge Luiz Souto Maior José Micaelson Lacerda Morais Daniel Afonso da Silva Airton Paschoa Julian Rodrigues João Adolfo Hansen Ricardo Musse Juarez Guimarães Jean Pierre Chauvin Walnice Nogueira Galvão Samuel Kilsztajn Francisco de Oliveira Barros Júnior Lincoln Secco Igor Felippe Santos João Sette Whitaker Ferreira André Singer Bruno Machado Priscila Figueiredo Atilio A. Boron Érico Andrade Eliziário Andrade Jorge Branco Celso Frederico Paulo Capel Narvai Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ladislau Dowbor Eleutério F. S. Prado Marcelo Módolo Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ronald León Núñez Rubens Pinto Lyra Claudio Katz Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Fernandes Ladeira José Dirceu Milton Pinheiro Heraldo Campos Lucas Fiaschetti Estevez Thomas Piketty Sergio Amadeu da Silveira Paulo Fernandes Silveira Tadeu Valadares

NOVAS PUBLICAÇÕES