Por RICARDO ABRAMOVAY*
A abundância alimentar é uma ilusão tóxica: nossa mesa está intoxicada por químicos perversos e sustentada por uma monocultura global que troca saúde por lucro e resiliência por fragilidade
A química do sistema agroalimentar
A regulação global de produtos químicos usados em larga escala na indústria e na agropecuária é perigosamente permissiva. Contrariamente ao que ocorre com os produtos farmacêuticos (testados rigorosamente por agências públicas especializadas, antes de receberem autorização de venda), o sinal de alerta para os químicos só é aceso se for provado de maneira irrefutável que eles estão na origem de alguma tragédia.
E como as tragédias em questão não são súbitas e espetaculares, mas cumulativas e discretas, o resultado é uma regulação deficiente diante do uso de ingredientes químicos altamente lucrativos para as corporações que os fabricam, mas cujos impactos sobre a vida social e os serviços ecossistêmicos não entram em sua contabilidade.
Daí o título do relatório que acaba de ser publicado pela consultoria global Systemiq, elaborado por um grupo de 25 especialistas internacionais vindos de áreas como toxicologia e meio ambiente, mas também direito e economia: “Ingredientes invisíveis. Enfrentando os produtos químicos tóxicos no sistema alimentar” (Invisible Ingredientes. Tackling Toxic Chemicals in the Food system).
O que está em jogo é a própria base tecnológica em que repousa parte decisiva dos produtos que compõem a riqueza das sociedades contemporâneas, das frigideiras não aderentes aos retardadores de chamas, passando por vários tipos de embalagens e por componentes hoje indissociáveis da imensidão da oferta agroalimentar.
O trabalho da Systemiq mostra a existência de alternativas aos atuais métodos produtivos, mas que não se materializam, muito mais pelos interesses e pela inércia dos incumbentes do que pela impossibilidade técnica de substituir o que prejudica a saúde humana e os serviços ecossistêmicos por aquilo que a ciência aponta como passível de ser utilizado. Mais que isso, da mesma forma que no caso dos combustíveis fósseis, os custos da inação são muito maiores que os das soluções existentes, embora não necessariamente tão lucrativos para os setores que dominam a indústria.
Os 350 mil produtos químicos e misturas registrados no mundo (entidades novas, das quais uma parcela ínfima foi objeto de avaliação quanto a seus riscos) são agregados, no relatório da Systemiq, em quatro famílias que incidem sobre o sistema agroalimentar.
Os ftalatos são substâncias adicionadas aos materiais para aumentar sua flexibilidade, sua durabilidade (filmes plásticos, embalagens para alimentos, mas também correias transportadoras e tubulações) e são usados largamente na indústria alimentar. Os bisfenóis produzem plásticos duros empregados como vasilhames de bebidas, plásticos reaproveitáveis e, até recentemente, em mamadeiras.
O terceiro componente analisado são as substâncias per e polifluoroalquílicas, conhecidas como PFAS, presentes nos pacotes de pipoca, nos pratos de papel, nas embalagens de fast-food, nas caixas de pizzas e em utensílios não aderentes de cozinha. Por fim, o estudo se volta aos agrotóxicos, cujos impactos sobre a biodiversidade e a saúde humana são bem conhecidos, mas que continuam a ser usados em larga escala. Só nos Estados Unidos há mais de 15 mil ingredientes agrotóxicos registrados. E desde o ano 2000 a capacidade de produção de químicos, plásticos e ingredientes ativos de agrotóxicos quase dobrou.
Estes componentes químicos, que formam a base do sistema agroalimentar contemporâneo, são vetores fundamentais de doenças não transmissíveis, aumentando a incidência do câncer, dos distúrbios reprodutivos, das condições adversas de neurodesenvolvimento e de inúmeras outras doenças metabólicas. O trabalho da Systemiq estima que os custos do emprego pervasivo de ftalatos, bisfenóis, PFAS e agrotóxicos chegam a algo entre US$ 1,4 e 2,2 trilhões anuais, ou seja, 2% a 3% do PIB global ou o correspondente ao lucro das 100 maiores companhias globais listadas em bolsa.
Mas estes custos não são incontornáveis. O estudo mostra não só a existência de alternativas para cada um desses quatro elementos, mas também a racionalidade econômica de sua adoção. O “phasing-out” de 42% dos PFAS na União Europeia até 2030, por exemplo, é estimado em US$ 500 milhões anuais. Já os custos de tratamento das doenças e as perdas decorrentes do uso de PFAS sobem a nada menos que US$ 83 bilhões anuais. O remédio não chega a 1% da despesa com a doença. E isso ocorre com os quatro químicos em que o sistema agroalimentar atual se apoia.
Se é assim, por que motivo a adoção das novas tecnologias que poderiam substituir estes produtos nocivos não é acelerada? A resposta da Systemiq é que “a influência da indústria sobre a avaliação regulatória e a política de gestão de riscos constitui uma barreira para a mudança”. Da mesma forma que no tabaco, nos combustíveis e nos ultraprocessados, os “mercadores da dúvida” proliferam na comunicação da indústria química e são denunciados por organizações da sociedade civil citadas no relatório.
O relatório reconhece o pioneirismo e a liderança do Brasil nas pesquisas sobre bioinsumos (e particularmente biopesticidas) voltados à agricultura. Mas ele mostra a ilusão de considerar que o “phase-out” neste setor já foi realizado. Do ensino agronômico à extensão rural (pública e privada), passando pelos critérios que orientam os financiamentos do sistema bancário e pela cultura que domina as práticas agropecuárias, o que foge dos métodos convencionais é tratado como de alto risco e desestimulado. O que é coerente com a constatação da Systemiq de que as “companhias têm poucos incentivos para promover alternativas que iriam provocar cortes em seu negócio principal”.
Por mais que a agricultura regenerativa tenha se incorporado ao vocabulário das corporações agroquímicas e apesar de muitas delas estarem comprando startups de bioinsumos, elas perseveram no lançamento de sementes cuja alta produtividade é dependente do uso de agrotóxicos. Como se o principal desafio da agropecuária fosse o de aumentar a produção e não o de acelerar a transição para tecnologias que podem regenerar os tecidos socioambientais que, até aqui, os modelos convencionais têm sistematicamente destruído.
O ponto de partida para o planejamento de uma agricultura regenerativa é a suspensão imediata do lançamento de supostas inovações que perpetuam as técnicas atuais e um horizonte temporal para que a intoxicação química atual deixe de ser o componente decisivo do sistema agroalimentar contemporâneo.
Monotonia exacerba os riscos do sistema agroalimentar
É cada vez maior o reconhecimento de que a concentração e a monotonia, muito mais que a escassez, são as principais ameaças à segurança alimentar global. O problema está na pauta de algumas das mais importantes consultorias globais e em parte crescente da produção científica. É um tema geopolítico decisivo que não deveria ser ignorado nas discussões da COP30.
“O sistema alimentar global apresenta vulnerabilidades estruturais, como a alta concentração geográfica da produção, cadeias de suprimento longas e elevada dependência de importações em alguns países, especialmente os em desenvolvimento”.
O alerta da McKinsey (https://shorturl.at/3QUYy), torna-se ainda mais grave à medida que o risco da concentração é ampliado pelos eventos extremos que derivam das mudanças climáticas. Nas condições atuais vão aumentando as probabilidades de crises de abastecimento ou de explosões de preços que reduzam o acesso aos alimentos. E nada indica que a receita convencional de produzir cada vez mais, a partir das tecnologias e dos produtos hoje dominantes, vá ajudar a resolver o problema.
É interessante observar o vínculo que a McKinsey estabelece entre a vulnerabilidade do sistema agroalimentar e sua excessiva concentração em um restrito punhado de produtos. “A dieta humana é altamente dependente de apenas quatro grãos: arroz, trigo, milho e soja”. Esta dependência tem uma dimensão geopolítica fundamental: “60% da produção alimentar mundial, prossegue o trabalho da McKinsey, ocorre em apenas cinco países: China, Estados Unidos, Índia, Brasil e Argentina”.
As exportações alimentares são igualmente concentradas em alguns poucos países, segundo mostra pesquisa publicada na PNAS (https://shorturl.at/JhNd4): Austrália, Argentina, Canadá, Estados Unidos e Brasil. Estes países exportam um quinto da oferta calórica global. E, contrariando o mito de que estas exportações contribuem para reduzir a fome no mundo, o trabalho mostra que elas se dirigem fundamentalmente aos países de maior renda.
Pesquisa publicada na Global Environmental Change (https://shorturl.at/8YAt3) fornece mais um exemplo dos problemas ligados à concentração do sistema agroalimentar: 70% dos impactos do uso agrícola do solo sobre a biodiversidade derivam de apenas treze produtos.
A conclusão do trabalho da McKinsey é que se, por um lado, esta concentração produtiva permite aumentar a produtividade e a oferta, por outro lado “cria vulnerabilidade para o sistema alimentar global, pois alguns poucos eventos climáticos extremos, concentrados geograficamente nestas regiões, podem afetar uma larga porção da produção global”.
Este problema é ainda mais sério quando se constata que países em desenvolvimento como Argélia, Egito, México e Arábia Saudita são importadores líquidos de grãos. São eles os que mais sofrem quando ocorrem crises que afetam o abastecimento vindo do comércio internacional.
Nada menos que 80% da população mundial vivem em países importadores líquidos de alimentos, conforme artigo publicado na revista Science em 2024. Um quarto da produção alimentar do mundo é comercializada no mercado mundial e apenas dez países fornecem o grosso da oferta. Deste total exportado, 25% têm origem nos Estados Unidos e a esmagadora maioria provém de apenas quatro Estados, onde episódios de secas têm se tornado frequentes: Califórnia, Oregon, Washington e Texas.
Os dados da McKinsey são corroborados pelo relatório da Mitsubichi Financial Group Inc (https://shorturl.at/laVtT), o sétimo maior grupo financeiro do mundo, onde se mostra que a cana-de-açúcar, o milho e o trigo correspondem a 40% das colheitas globais anuais e que metade desta produção está concentrada em apenas três países: Brasil, Índia e China.
E conclui: “esta concentração da produção representa também uma concentração de risco climático, à medida que os impactos do clima extremo nestes três países reverberam a jusante na cadeia, atingindo processadores, exportadores e importadores de bens acabados” (p. 16).
Estes riscos são exacerbados pelo fato de muitos dos insumos dos quais depende a produção agropecuária estarem igualmente concentrados em poucos países, acentuando a dependência da própria base tecnológica dos produtores de mercados internacionais. É o caso dos fertilizantes sintéticos dos quais a agropecuária depende: o Brasil, por exemplo, importa 85% dos fertilizantes nitrogenados que consome.
O uso da água no sistema agroalimentar também traz a marca da monotonia. Para analisar este uso, Qinyu Deng, da Beijing Normal University e seus colaboradores estudaram os três países mais populosos do mundo, China, Índia e Estados Unidos que juntos reúnem 41% da população mundial, usam 49% da água azul (as superficiais e as subterrâneas) e oferecem 39% da produção alimentar global.
A irrigação para as colheitas correspondia, em 2015 a 80% da demanda por água azul na China, 95% na Índia e 81% nos Estados Unidos. O que mais chama a atenção em sua pesquisa, publicada na Nature Communications (https://shorturl.at/v0twa), é o vínculo entre o uso de água e a monotonia da oferta agrícola.
Na China, apenas três produtos – trigo, com 20% da demanda por água azul, arroz, com 19% e milho com 15% – consomem mais da metade da oferta de água azul. Os números da Índia são ainda mais chocantes: 29% para o arroz, 26% para o trigo e 14% para a cana-de-açúcar. Nos Estados Unidos o maior consumo é da alfafa (25%) e do milho (22%). Esta concentração não seria tão grave se ela não excedesse os limites além dos quais a disponibilidade de água fica ameaçada: entre 2011 e 2015 a demanda insustentável de água na China aumentou 101%, na Índia 82% e nos EUA 49%.
Propostas para superar a monotonia do sistema agroalimentar global (da qual o Brasil é o epicentro) estão reunidas no livro publicado pela Editora do SENAC “Caminhos para a transição do sistema agroalimentar: Desafios para o Brasil”, organizado por Arilson Favareto, da Cátedra Josué de Castro e por mim.
Escrito pelos participantes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) “Para superar a tríplice monotonia do sistema agroalimentar”, o livro traz seis artigos que abordam a monotonia do sistema agroalimentar na agricultura, na pecuária bovina, na oferta de aves e suínos, no abastecimento e no consumo alimentar, bem como um texto sobre os caminhos da transição.
*Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante). [https://amzn.to/3QcqWM3]
Reunião de dois artigos publicado originalmente no jornal Valor econômico
[https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-adicao-quimica-do-sistema-agroalimentar.ghtml]
[https://valor.globo.com/opiniao/coluna/monotonia-exacerba-riscos-do-sistema-agroalimentar.ghtml].
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