Quando deixamos de entender o mundo

Bernard Meninsky, Esboço de uma natureza morta com uma tigela de frutas em uma superfície plana, Data desconhecida.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por RICARDO ABRAMOVAY*

Comentário sobre o livro recém-editado de Benjamín Labatut

A valorização da ciência é um dos mais importantes pilares da convivência democrática. Isso se deve a duas razões básicas. A primeira é instrumental. É a ciência que abre caminho a inovações tecnológicas que permitem melhorar a qualidade de vida, que se trate da eletricidade, dos antibióticos, das vacinas, da mobilidade, da alimentação, do conhecimento do sistema climático, das interações entre os diferentes componentes da natureza ou dos estudos populacionais.

Mas, independentemente de sua utilidade social, a ciência é decisiva para a democracia por estimular a curiosidade, por contestar verdades estabelecidas e por se apoiar naquilo que as diferentes formas de fanatismo fundamentalista sempre combateram: a dúvida e a crítica.

Dúvida não é iconoclastia, nem a pretensão de que qualquer opinião pode legitimamente contestar aquilo que anos de pesquisa minuciosa conquistaram. É a dúvida que empurra os cientistas em direção àquilo que não sabem. Mas eles só avançam quando, na expressão empregada por Isaac Newton (referindo-se a Galileu e Copérnico), se apoiam sobre os ombros de gigantes, ou seja, quando valorizam os conhecimentos existentes e, ao mesmo tempo, descobrem neles insuficiências que sua curiosidade e suas habilidades tentarão superar.

A crítica científica tem natureza diferente daquela que vem do senso comum. A crítica científica consiste na permanente submissão das premissas, dos processos e dos resultados das pesquisas àqueles que são capazes, por seus conhecimentos especializados, de encontrar seus pontos fracos. Daí a importância dos sistemas de pareceres científicos, das revistas com revisão pelos pares e daquilo que o norte-americano Robert Merton, (1910-2003) um dos maiores nomes da sociologia do século 20, chamou, num texto de 1938, de “ceticismo organizado”.

Mas, além da dúvida e da crítica, a ciência, sobretudo a partir do início do século XX, é marcada por um terceiro elemento: a humildade. Até meados do século XIX a atividade científica (sobretudo a física newtoniana) estava imersa na convicção triunfante em uma espécie de capacidade infinita de conhecer o mundo. Ninguém melhor que o francês Pierre Simon Laplace (1749-1827) exprimiu esta crença.

“Um intelecto que, em dado momento, conhecesse todas as forças que dirigem a natureza e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se este intelecto também fosse vasto o suficiente para analisar essas informações, compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seria presente perante seus olhos”.

O avanço do conhecimento científico derrubou a soberba contida na frase de Laplace. E vem de Benjamin Labatut, um jovem escritor chileno, no livro Quando deixamos de entender o mundo em que a ciência mergulha, ao início do século XX, não apenas na incerteza (“esmigalhando a esperança de todos aqueles que tinham acreditado no universo de relojoaria que a física de Newton prometia”), mas também na evidência de que seus resultados poderiam estar na raiz dos piores ataques à vida.

Quando deixamos de entender o mundo não é um convite ao desespero e ao desalento, mesmo que algumas das mais brilhantes mentes retratadas no livro de Labatut (Einstein, Schrödinger, Heisenberg e tantos outros, com histórias reais ou fictícias fascinantes) tenham por aí descambado, à medida que se espantavam com os resultados de suas próprias investigações. A expressão “deixamos de entender mundo” traz dois alertas fundamentais.

O primeiro é retratado em histórias como a do judeu alemão Fritz Haber (1868-1934), que inventou uma nova forma de fazer guerra, por meio de um gás que, ao ser usado no ataque a tropas francesas e argelinas em 1915, na cidade de Ypres, na Bélgica, dizimou de forma imediata 1.500 soldados. Ao voltar da guerra foi censurado por Clara Immerwahr (1870-1915), sua esposa (a primeira mulher a receber um doutorado em química na Alemanha), por ter “pervertido a ciência ao criar um método para exterminar humanos em escala industrial”.

Haber desprezou a crítica da esposa e as consequências de sua atitude, foram trágicas, como o leitor verá numa das tantas histórias impressionantes que envolvem a reflexão de Labatut sobre a ciência e a atividade científica. O flerte permanente de Labatut com o “delírio” dos mais importantes protagonistas da física contemporânea não compromete em nada o rigor com que ele aborda suas realizações científicas.

O segundo alerta é, de certa forma aquele que o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) dirigiu aos jovens que o ouviam em Munique, em 1919, na célebre conferência A ciência como vocação. Por mais importante que seja a ciência, ela é incapaz de nos dar qualquer pista sobre as questões mais decisivas de nossa existência, como o sentido da vida, o sentido da morte e a orientação sobre como devemos agir.

Ou, como explica o jardineiro noturno, com o qual Labatut conversa no capítulo final de seu livro: “não são apenas as pessoas normais, mesmo os cientistas não compreendem mais o mundo…Considere a mecânica quântica…Ela remodelou completamente nosso mundo. Nós sabemos como usá-la, ela funciona como que por algum estranho milagre, mas não há uma alma humana, viva ou morta, que de fato a entenda”.

O desconhecido e o incompreensível são os principais vetores que alimentam a curiosidade científica. A coerência e a organização da física newtoniana foram substituídas por um conjunto crescente de paradoxos, contradições e dúvidas que a ciência procura conhecer, mas que jamais deixarão de fazer parte do mundo e de nós mesmos. O valor da ciência para a convivência democrática não pode ofuscar o paradoxo de que a ampliação do conhecimento nos põe sempre diante de nossa incapacidade de entender o mundo.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

 

Referência


Benjamín Labatut. Quando deixamos de entender o mundo. Tradução: Paloma Vidal. São Paulo, Todavia, 2022, 176 págs.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES