Eleições no Brasil expropriado

Imagem: Lucio Fontana
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Por GUILHERME LEITE GONÇALVES*

Considerações sobre as reorientações políticas das classes médias e populares

Um autocrata entre o triunfo eleitoral e a tragédia governamental

Apesar da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência da república, as últimas eleições confirmaram o enraizamento do bolsonarismo no tecido social e no regime democrático. Ao menos desde 2010, grupos de extrema direita têm investido em redes de militantes e ações coletivas. Não por acaso disputaram a direção dos protestos de Junho de 2013 e passaram a tomar as ruas construindo apoio popular necessário ao golpe parlamentar de 2016 e ao êxito eleitoral de 2018 (Rocha 2019). Se antes a organização política ultrarreacionária era costurada por coletivos e protestos de massas, o governo Bolsonaro atribuiu-lhe o caráter de um projeto autocrático (Singer 2022).

Pelo controle do aparelho estatal, Jair Bolsonaro consolidou posição hegemônica no campo conservador. Sem compromisso com a administração pública, ele criou uma “infraestrutura de mobilização”, na qual decisões governamentais (opostas a conquistas sociais históricas) incitavam o engajamento contínuo com pautas de extrema direita por meio de uso eficiente das redes sociais (Lago 2022). Ao mesmo tempo, encorajou seus seguidores (militares, fundamentalistas cristãos, ultraliberais) com a distribuição de cargos burocráticos. O bolsonarismo tornou-se, assim, uma das forças dominantes do sistema político e social brasileiro.

Esta conclusão é validada pelo resultado das eleições gerais. Em primeiro lugar, políticos de extrema direita, que romperam com Jair Bolsonaro, amargaram duras derrotas. É o caso de Janaina Paschoal, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, os irmãos Weintraub e Luiz Henrique Mandetta. Dentre os desgarrados, foram vitoriosos os ativistas da Lava-jato (Deltan Dallagnol, Sérgio e Rosângela Moro) que, em suas campanhas, voltaram a ser bolsonaristas de primeira ordem (Struck 2022).

O bolsonarismo e seus aliados avançaram no Congresso Nacional. No senado, eles conquistaram 14 das 27 vagas. O Partido Liberal (PL), agremiação de Bolsonaro, contará com a maior bancada. Ele desbancou a direita tradicional: o MDB não terá a maioria dos senadores. A Câmara Alta será ocupada por ex-ministros bolsonaristas, dentre eles, a fundamentalista cristã Damares Alves. O atual vice-presidente Hamilton Mourão também foi eleito (Struck 2022).

Na Câmara Baixa, apesar de considerável avanço de setores de esquerda, houve uma onda reacionária de direita (Struck 2022). O PL também liderou o pleito e elegeu 99 deputados. As bancadas ruralista, evangélica e da área de segurança dobraram. A tendência é que a nova legislatura tenha um caráter neoliberal e contrário a pautas de costumes (DIAP 2022). Embora o alinhamento das forças parlamentares oriente-se de modo mais fisiologista do que ideológico (e a experiência de Lula indique possibilidade de rearticulações), o Congresso eleito em 2022 é “o mais conservador desde 1964” (Souza/Caram 2022).

Por fim, no que se refere ao Executivo, 13 dos 27 governadores eleitos apoiaram Bolsonaro; 10 deles, Lula. Chama a atenção o candidato vitorioso de São Paulo. Ex-ministro bolsonarista, Tarcísio de Freitas teve mais de 2,5 milhões de votos em relação ao concorrente do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad. Com sua vitória, o bolsonarismo tende a ter protagonismo no estado mais rico da federação (Valor 2022).

Nesta conjuntura, a votação do próprio Jair Bolsonaro foi expressiva: cerca de 51 milhões de votos no primeiro turno e 58,2 milhões no segundo. De um turno para o outro, a diferença entre os candidatos caiu de 6 milhões para pouco mais de 2 milhões de eleitores. Comparativamente, Jair Bolsonaro cresceu mais do que Lula em todos os Estados. A variação entre os “novos votos” foi, porém, insuficiente para alterar o resultado, seja porque Lula manteve larga vitória em todos os Estados nordestinos (60% ou até 70% dos votos), seja porque reduziu os danos do Sul e do Sudeste, onde a vantagem de Jair Bolsonaro caiu (Riveira 2022).

Jair Bolsonaro é inequivocadamente uma liderança popular e um fenômeno eleitoral. O balanço de seu governo é, porém, catastrófico. Costa e Weiss (2022) descrevem de modo pontual os resultados alcançados: agravamento da concentração de renda, aumento da pobreza, deterioração da qualidade da educação e saúde públicas, elevada degradação ambiental. O crescimento econômico anual projetado para a economia brasileira entre 2020 e 2022 é de 1,1%, enquanto a média global é de 1,8%. A má gestão da pandemia produziu a tragédia de 700.000 mortos. Casos de corrupção em diferentes áreas (compra de vacinas, educação) e relacionados à família Bolsonaro foram escancarados. Como explicar a discrepância entre a qualidade do governo e o êxito eleitoral? Por óbvio que a resposta baseada em suposto conservadorismo ou irracionalidade da sociedade brasileira é inútil do ponto de vista da complexidade do fenômeno.

Diferentemente, Costa e Weiss (2022) respondem indicando quatro dispositivos de poder que sustentam Bolsonaro: mobilização permanente de sua base radical; espoliação da natureza, do público e dos corpos dos trabalhadores; construção discursiva de identidade popular e cooptação dos setores ressentidos que perderam posição social; e, finalmente, formação de um sistema de medos via manipulação da comunicação e armamento da população, capaz de desestimular o apoio a seus concorrentes.

Tais dispositivos podem ser repensados à luz dos padrões de expropriação ativados na atual fase do capitalismo, marcada pela financeirização, e seu impacto sobre as classes médias e trabalhadoras. Com base nesta abordagem, a pergunta anterior poderia ser reformulada: Por que, não obstante a tragédia governamental, Bolsonaro conseguiu excelente desempenho eleitoral, mas, ao mesmo tempo, foi incapaz de vencer Lula?

 

A longa expropriação entre frustrações e esperanças: direitização das classes médias e popularização da base petista

O regime financeiro de expropriações tem se imposto nas últimas três décadas por medidas de flexibilização do trabalho, austeridade fiscal, desregulamentações, privatizações. A realidade socioeconômica brasileira mudou. Da desindustrialização ao declínio da participação do salário na renda nacional, tudo foi acompanhado de reprimarização da pauta de exportações, diminuindo o progresso tecnológico (Gonçalves/Machado 2018).

A classe trabalhadora, por óbvio, se enfraqueceu; as classes médias também, espremidas pelo recuo das ocupações técnicas (Saad Filho 2014). Por outro lado, engenharias financeiras e altas taxas de juros viabilizaram o enriquecimento acelerado de frações rentistas, bem como sua (inusitada) aliança com a burocracia sindical, em torno do acesso aos fundos públicos e de pensão para convertê-los em ativos negociáveis (Oliveira 2003).

Por mais heterogêneos que sejam, os setores médios têm vivenciado frustrações com esse regime desde 1990 (Gonçalves 2022). Esta dinâmica de desilusão refletiu-se nas eleições presidenciais. Em 1989, Lula, já candidato do PT, teve a preferência dos votos de tais setores em relação ao concorrente eleito, Fernando Collor de Mello, cujo governo, ao congelar poupanças e investir em privatizações, iniciou a marcha das classes médias à pauperização. Nos pleitos de 1994 e 1998, elas continuaram a apoiar Lula, que contava com a maioria dos votos entre os escolarizados e nas faixas de renda de 2 a 10 salários-mínimos. O presidente então eleito Fernando Henrique Cardoso obteve larga vantagem nas faixas extremas e entre os menos escolarizados. A Era Cardoso foi erguida por vasto programa de expropriações do público e das garantias sociais. As novas desilusões converteram-se em votos para Lula em 2002, quando foi eleito com votação maciça das classes médias (Lavinas/Gonçalves 2018).

Várias medidas da primeira Era PT (2002-16) contribuíram para o aumento das frustrações decorrentes da financeirização. Entre elas, destaca-se seu modelo de política social. Conforme Lavinas (2015a: 13ss), enquanto estratégia de inclusão, adotou-se modelo de Welfare que enfatizava a concessão de crédito individual como meio de acesso a serviços essenciais. Paralelamente a isso, houve limitação a recursos, bens e provisões públicas. A título ilustrativo, em 2013 “os gastos com renúncia tributária e previdenciária foram estimados em R$ 218 bilhões, ao passo que saúde e educação públicas juntas receberam R$ 163 bilhões” (Lavinas 2015b).

Este cenário – limitação de serviços públicos e aumento do crédito individual – acentuou a dependência das classes médias e trabalhadoras em relação ao sistema financeiro. Para acessar meios de subsistência sem a prestação estatal coletiva, tais classes se viam atingidas por níveis crescentes de endividamento. Expostas a mercados desregulados, a primeira sensação de empoderamento do crédito transformava-se no pesadelo da dívida.

O sentimento contraditório gerado pelo “empoderamento à primeira vista x dívida a longo prazo” refletiu-se nas eleições presidenciais a partir de 2006. Os votos em Lula e Dilma Rousseff foram diminuindo gradativamente entre os setores médios: desapontados com o rebaixamento social via endividamento e precarização, tais eleitores foram se movendo para a direita (Lavinas/Gonçalves 2019). Ao mesmo tempo, a base da pirâmide, medida por renda familiar de até dois salários-mínimos e entusiasmada com a sensação de melhora graças à inédita inclusão financeira, aderia ao lulismo. Nas eleições de 2018, embora Jair Bolsonaro tenha ganhado nas três faixas de escolaridade, na categoria média e superior as diferenças em relação a Fernando Haddad, ex-candidato do PT, foram mais expressivas. No Nordeste, por sua vez, região caracterizada pela presença maior de segmentos pobres e pouco escolarizados, Fernando Haddad manteve a vantagem elevada que seu partido obteve nas três eleições anteriores (Singer 2021).

Em perspectiva de longue durée, o regime financeiro de expropriação inverteu a base eleitoral petista: a adesão das classes médias, notada entre 1989 e 2002, foi substituída por perfil mais empobrecido nos pleitos de 2006 a 2018. Como visto, tal alternância está vinculada à percepção da inclusão financeira.

Os extratos populares só conseguiram alcançar o que lhes foi historicamente negado, acesso ao consumo, pelas políticas petistas de crédito. É irrelevante discutir se a sensação de melhora é ou não ilusão. Pela abertura ao mercado, sem dúvida os laços sociais são ampliados, mas, ao mesmo tempo, relações que não eram formadas por trocas mercantis passam a sê-las. É a mesma lógica descrita por E. P. Thompson (1966: 212) sobre a acumulação primitiva na Inglaterra: entre “pessimistas” e “otimistas” a respeito das condições das massas na virada do século XVIII para o XIX, o historiador sustentou que a ligeira melhora significou o início da experiência catastrófica da vida capitalista.

Convivendo há mais tempo com o sistema financeiro, as classes médias não se surpreenderam com o acesso ao crédito. Sentiram a catástrofe na forma da dependência ao endividamento para garantir seus meios de reprodução. Esta situação tencionou o dilema clássico das classes médias: entre a atração econômica de se diferenciar dos setores populares e o compromisso com justiça social (Lavinas/Gonçalves 2018). O único meio de estimular sua adesão ao segundo é mostrar os limites dos recursos privados para satisfazer suas necessidades e apresentar as vantagens das provisões igualitárias sob sua relativa prosperidade em relação às classes trabalhadoras.

Como, no entanto, a primeira Era PT não investiu nessas provisões, mas na ampliação do crédito, abandonou os setores médios às expropriações financeiras (Gonçalves/Lavinas 2022). Desiludidos e destituídos de identidade coletiva, eles buscaram por projetos de mercado que reivindicam sua exclusividade e privilégios por meio de políticas de taxa de câmbio desvalorizadas (que barateiam bens de consumo importados), de liberação de fluxos financeiros (para ter acesso a mais créditos em suas carteiras) e de investimento estrangeiro direto (para empregos qualificados e disposição mais fácil a bens de luxo) (Saad Filho 2014). Apesar de seu mal-estar com as expropriações e o endividamento, a classe média, sem nenhuma alternativa igualitarista por parte do PT, só conseguiu ver como solução para suas frustrações com o mercado ainda mais mercado. Por isso, ela se dirigiu eleitoralmente à direita.

 

Autocracia bolsonarista como gestão da sobre-expropriação e expressão da insatisfação das classes médias

Ao longo deste realinhamento de classes, o regime financeiro expropriatório foi tomado pela crise global, iniciada em 2008. O impacto do colapso dos preços das commodities no Brasil foi devastador. No início do governo Rousseff (2011), o crescimento estancou. O PIB despencou de 7,6% em 2010 para 0,1% em 2014. Este cenário desfavorável explicitou a insatisfação das classes médias. Os protestos de Junho de 2013 explodiram e, ao longo dos meses seguintes, se polarizaram entre grupos que criticavam e defendiam políticas de mercado (Gonçalves 2022).

A fórmula anticrise de salvamento do sistema financeiro via austeridade, já adotada por Dilma Rousseff, não poderia ser implementada sem dirimir o potencial de dissenso. A solução foi o golpe parlamentar de Michel Temer (2016): de um lado, superou as incertezas quanto à capacidade do governo petista em fazer valer o ritmo reclamado de expropriações; de outro, por meio de mecanismos repressivos solapou direitos trabalhistas e impôs teto nos gastos sociais por 20 anos. As classes médias tomaram as ruas reivindicando o respectivo golpe.

A blindagem política das expropriações, sobretudo no ritmo e intensidade demandados pela fórmula anticrise hegemônica, exige equilíbrio entre coerção e consenso. Isto só foi alcançado com o êxito de Jair Bolsonaro em 2018, que obteve votação maciça, majoritariamente entre os setores médios. O Bolsonarismo conseguiu elevar o conservadorismo à forma dominante de expressão da insatisfação das classes médias quanto ao seu rebaixamento social, protegendo o sistema financeiro através da criação de falsos culpados a partir de práticas preconceituosas (racismo, sexismo etc.) e do discurso sobre corrupção vinculando-a ao PT (antipetismo) (Gonçalves 2021).

A autocracia bolsonarista mostrou-se bem ajustada às condições impostas pelo mercado financeiro durante a crise, que postulavam por aumento do rigor e da aceitação social das políticas de austeridade. É, portanto, o tipo de governo adequado à implementação e administração da sobre-expropriação. Um modelo político capaz de realizar excedentes expropriatórios. Ele conseguiu uma reforma previdenciária que elevou a idade de aposentadoria das mulheres e o número de anos de contribuição qualificada; a redução agressiva dos gastos públicos em áreas como educação, ciência, saúde e meio ambiente; a autonomia do banco central etc (Gonçalves/Lavinas 2022).

Finalmente, é possível dividir os impactos eleitorais de longue durée do regime financeiro de expropriação em três âmbitos. Em primeiro lugar, os segmentos populares migraram em grande parte da direita para o PT em razão das políticas de inclusão financeira que, nos governos petistas, lhes proporcionaram o acesso inédito ao crédito e ao consumo, gerando sensação de melhora social. Em segundo lugar, as classes médias deslocaram, grosso modo, do PT para a direita em razão da experiência com o endividamento, atrelado ao subfinanciamento público. Por último, tais classes desembocaram sua insatisfação na extrema direita. Sem alternativas transformadoras no campo progressista, elas aceitaram valores preconceituosos que criam bodes expiatórios para sua precarização, preservando e, com isso, liberando os autênticos mecanismos que as expropriam. O bolsonarismo é, neste sentido, a solução ótima para a continuidade da reprodução do regime financeiro de expropriação. Ele consegue capitalizar o excesso de frustrações que tal regime produz.

 

Bolsonarismo abalado: crise da Covid-19 e seus efeitos à court terme no eleitorado de classe média

Conforme mostrei em artigo publicado na Revista Rosa, o projeto autocrático bolsonarista foi abalado com a crise da Covid-19 (Gonçalves 2021). A pandemia evidenciou a importância de provisões de saúde pública e do sistema científico. Com isso, o discurso de proteção do outro e da vida readquiriu força no terreno político, enfraquecendo práticas discriminatórias e armamentistas. Ao mesmo tempo, em razão do desmantelamento da economia produtiva, os governos viram-se forçados à criação de medidas de socorros emergenciais para diferentes setores econômicos e sociais. Jair Bolsonaro foi obrigado a adotar um “orçamento de guerra” que flexibilizou o regime fiscal. Também precisou criar um programa de Auxílio Emergencial que cobriu 67 milhões de beneficiários. Transferências monetárias e autorizações de licenças mantiveram as famílias sob algum amparo (Gonçalves/Lavinas 2022).

As políticas de combate à pandemia foram, porém, acompanhadas do negacionismo científico e sanitário. Plasmado por essa visão reacionária, o “orçamento de guerra” foi mal planejado: enquanto os créditos extraordinários aprovados para financiamento de remédios e custeio de leitos não eram executados, a compra de vacinas atrasava. A política econômica de Jair Bolsonaro foi acompanhada de defesa de disciplina fiscal, o que negava o ethos das medidas emergenciais. O curto descanso anticíclico de 2020 foi interrompido com a Emenda Constitucional 109, que realimentou expropriações via austeridade pela criação de um subteto dentro do teto de gastos sociais. O Ministro da Economia Paulo Guedes começou a defender uma Reforma Administrativa para arrochar ainda mais a remuneração dos servidores públicos e retirar seus direitos. No segundo semestre de 2021, o PIB retraiu (Gonçalves 2021).

Os dividendos políticos da pandemia foram péssimos para Jair Bolsonaro. Sua rejeição aumentou significativamente. Ele perdeu antigos aliados políticos, como, por exemplo, as demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sérgio Moro (Justiça). O Supremo Tribunal Federal, acompanhado pelas elites jurídicas, e grandes meios de comunicação (Globo e Folha de São Paulo) tornaram-se abertamente oposições ao negacionismo bolsonarista. O mesmo pode-se dizer de alguns ramos do empresariado.

O projeto autocrático de Jair Bolsonaro de gestão da sobre-expropriação mostrou-se falho para lidar com a crise da Covid-19. Seu modelo de equilíbrio entre violência e legitimidade, eficiente para imunizar a financeirização em relação aos excessos de frustrações, não funcionou eficazmente diante da emergência de novos hábitos, estilos, valores e laços de solidariedade, costurados pelo combate à pandemia. A busca pela promoção da vida não se acomodava ao conservadorismo radical bolsonarista. Ao lado da dissonância, surgiram denúncias de corrupção, justamente sobre compras de vacinas. Jair Bolsonaro caiu em descrédito com determinadas frações do capital e sua desaprovação popular aumentou.

Desde 2021, ele tem operado para reverter este quadro. Costurou alianças com o Centrão, mobilizou intensamente suas bases e chamou protestos de massa para os últimos feriados do Dia da Independência. Além disso, em 2022, o governo Bolsonaro aprovou e implementou pacote de benefícios sociais e subsídios no valor R$ 41,25 bilhões.

Este cenário mostra que, à court terme, a pandemia criou ruídos no interior do regime financeiro de expropriações. Primeiramente, ela promove normas sociais que o questionam, na medida em que demanda aumento de providências das áreas públicas (saúde, seguridade social etc.) em detrimento dos programas de privatização. Além disso, o modelo político autocrático que protege tal regime do excedente de frustrações que ele mesmo gera não consegue funcionar em seu desempenho máximo. Ao falhar em sua prestação de legitimidade (divergência entre convicções conservadoras e valores de sobrevivência), expõe as violências bolsonaristas que, escancaradas, podem ser bloqueadas.

A crise da Covid-19 foi, assim, uma das principais causas da rejeição a Bolsonaro por parte de seus eleitores. Uma primeira avaliação pode associá-la à sua derrota nas recentes eleições. No Sudeste, região marcada por mais escolaridade e uma faixa alargada de eleitores com remunerações médias, o PT obteve 7,7 milhões de votos a mais no atual pleito, se comparado com a votação de 2018. Esta diminuição da vantagem de Bolsonaro tem sido a explicação dada para a vitória de Lula (Couto 2022). Em São Paulo, apesar de ter ficado novamente à frente do PT, o atual presidente perdeu 1,1 milhão de votos nos últimos 4 anos (Sampaio 2022). Em Minas Gerais, ele foi derrotado. Isto sugere que, nas zonas mais urbanas e habitadas por setores médios, houve um retorno de parcela do eleitorado ao PT. Uma parcela, no entanto, que não é suficiente para superar Bolsonaro nesses espaços.

 

Conclusão: uma hipótese sobre as Eleições de 2022 e o alerta de E. P. Thompson ao PT

A hipótese que deixo para refletir sobre este fenômeno é: o efeito à court terme da crise da Covid-19 no projeto autocrático bolsonarista de sobre-expropriações foi responsável por enfraquecer sua aceitação social e eleitoral pelas classes médias, mas não para exaurir seu apelo em tais setores, gerado pelas implicações de longue durée do regime financeiro de expropriação. Sua ampla votação e o êxito de seus aliados foram inegáveis. Ele ainda é uma alternativa política para os déficits de legitimidade e a demanda por violência que expropriações financeiras reclamam.

Os conflitos gerados pela pandemia foram suficientes para eleger Lula, não para anular Jair Bolsonaro. Tais conflitos abrem a possibilidade para projetos universais igualitários, capazes de concorrer com o bolsonarismo pela absorção do desapontamento social estimulado pelo funcionamento do regime financeiro expropriatório. Mas tais projetos nunca foram abraçados pelo PT enquanto governo. Ao contrário, o PT participou da engrenagem de tal regime e contribuiu para produção de insatisfações.

Nesse sentido uma última observação é necessária. A diferença no resultado dos dois turnos da atual eleição no Nordeste mostrou uma ligeira queda de votos no PT, se comparado com 2018 (Folha de S. Paulo 2022). Isto pode indicar a tendência de que segmentos populares estão se movendo do PT para a extrema direita. Já há longo tempo em contato com o mundo do crédito, tais segmentos podem estar passando da fase da sensação de “ligeira melhora” para a “experiência catastrófica” com a dívida. Lula deveria levar o alerta de E. P. Thompson a sério, se não quiser o bolsonarismo ainda mais fortalecido em 2026. Para isso, no entanto, ele precisará se opor às suas velhas políticas que deram centralidade à expropriação financeira e mostrar que os valores emancipatórios emergidos da pandemia são contrários à expansão contínua do mercado.

*Guilherme Leite Gonçalves é professor de sociologia do direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Publicado originalmente em Revista Rosa, vol. 6, no. 2.

Referências


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