Por LUIZ RUFFATO*
Introdução do autor ao livro recém-lançado
No dia 3 de março de 1926, alguns espantados habitantes de Cataguases assistiram, nas dependências do Teatro Recreio, à histórica exibição de um dos primeiros longas-metragens brasileiros, Na primavera da vida, de Humberto Mauro e Pedro Comello. O fato, de tão inusitado, despertou imediatos entusiasmo e interesse da nascente indústria cinematográfica sediada no Rio de Janeiro.
Em 1927, Tesouro perdido, início da trajetória individual de Humberto Mauro, conquistou o título de melhor filme nacional daquele ano. Também em 1927, Cataguases conheceu outra ousada iniciativa, a fundação de uma revista literária, intitulada Verde, que encampava as propostas estéticas vanguardistas do grupo paulista que promoveu a Semana de Arte Moderna de 1922.
O chamado Ciclo Cinematográfico de Cataguases contaria ainda com outros dois longas-metragens, Brasa dormida e Sangue mineiro, antes de Humberto Mauro se mudar, em 1930, para a então capital da República, onde desenvolveria carreira de sucesso – Ganga bruta, de 1933, é sempre citado entre os 20 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. No total, foram 11 longas-metragens, mais de 100 curtas- metragens, documentários e semidocumentários, além da participação em produções de outros diretores como fotógrafo, argumentista, roteirista e ator. A extensa batalha de Humberto Mauro pelo cinema nacional encontra-se ricamente documentada, e seu pioneirismo, destacado, de maneira inquestionável, por pesquisadores e estudiosos do Brasil e do exterior.
O mesmo não ocorre em relação à Verde. Empreendimento relevante na divulgação e consolidação do modernismo, a revista, até hoje, não teve sua importância devidamente assimilada, e exígua é a bibliografia a respeito. Editada, com interrupções, entre 1927 e 1929, Verde merece apenas referências ligeiras nos manuais de história da literatura, apesar de, à época, ter sido prestigiada e louvada pelos maiores nomes do movimento.
Em 1932, Mário de Andrade, em balanço comparativo entre Verde e A Revista, de Belo Horizonte, acena com um saldo bastante positivo para o periódico de Cataguases: “Os dois grupos mineiros, o de Belo Horizonte e o de Cataguases, se distinguem enormemente como psicologia coletiva. O de Cataguases, certamente não pôde apresentar figuras de valor pessoal tão notável como Carlos Drummond de Andrade na poesia e João Alphonsus na prosa. Porém teve uma realidade muito mais brilhante, e principalmente uma ação muito mais interestaduana e fecunda. No fundo, os artistas de Belo Horizonte eram muito mais capitalistas do que poderiam supor. E de fato o grupo se dissolveu no individualismo, e teve apenas a função burguesa de nos apresentar pelo menos dois escritores de grande valor. O grupo de Cataguases não produziu quem se compare com esses, mas com a revista Verde conseguiu a um tempo centralizar e arregimentar o movimento moderno no Brasil, coisa que a Revista de Belo Horizonte não conseguira. […] A Verde chamava às armas, ao passo que a Revista nomeava generais.[i]
Francisco Inácio Peixoto, um dos principais integrantes do grupo Verde, conta que, em encontro durante o I Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo, em janeiro de 1945,[ii] Oswald de Andrade insistiu com ele sobre a importância de Cataguases para o grupo paulista: “Me causou uma surpresa danada quando o Oswald [de Andrade] – que eu julgava inacessível – me fez essa revelação do bem que nós tínhamos feito à turma de São Paulo com a nossa adesão aqui. Eu ainda perguntei: – Você está brincando, Oswald. – Não. Estou falando sério. Você não calcula o que representou para nós esse movimento de Cataguases. E eu passei a acreditar”.[iii]
Também Mário de Andrade destacou a relevância do movimento Verde:
Existe influência do tal escritor paulista sobre os moços de Cataguases como existe influência dos moços de Cataguases sobre esse escritor paulista. Maior do que imaginam, muito maior. E mais elevada principalmente, não se resumindo a uma simples e desimportante aceitação de cacoetes gramaticais. Essa influência recíproca foi a bonita das amizades sinceras, carteadeiras, cheias de sinceridade, até brutas, certas feitas. Foi isso que o mundo pôde ver e não gozou. Porém o que o mundo não viu e podia ver é que também o escritor paulista andou muito estudando os criadores de Verde. Catou neles os boleios sintáticos e as vozes populares que essa rapaziada foi a primeira a registrar, e quando a ocasião chegou, andou tudo empregando nos escritos dele”.[iv]
No entanto, as tentativas de análise da revista Verde esbarram sempre em um lugar-comum: Cataguases é um “fenômeno inexplicável”, e esse argumento, repetido à exaustão, descerra um véu sobre o assunto. Pouco a pouco, a Verde tornou-se uma espécie de exotismo literário.
Já em 1929, em artigo publicado em O Jornal, do Rio de Janeiro, Tristão de Athayde se perguntava, pasmo: “Por que enredos da Providência Divina foi nascer à beira de um riacho chamado Meia-Pataca […] um grupo de poetas interessantes que hão de deixar uma certa marca no momento poético que estamos vivendo?”.[v][vi]
Os próprios membros do grupo Verde contribuíram para elevar o fato à categoria do incognoscível, como Francisco Inácio Peixoto, respondendo questionário de José Afrânio Moreira Duarte: “Cataguases sempre foi, e agora mais do que nunca, um equívoco”;[vii] ou Henrique de Resende,[viii] em entrevista a Walmir Ayala: “Verde foi um milagre. E os milagres não se explicam!”;[ix] ou, ainda, Rosário Fusco, em entrevista a O Pasquim: “A Verde é folclore e os seus representantes, um episódico (embora pra Cataguases, lisonjeiro mas não identificado) equívoco”.[x]
Para tornar tudo ainda mais confuso, em depoimentos eles minimizaram a importância socioeconômica da cidade e amplificaram o significado de suas próprias atividades – tornando assim, por contraste, a ideia de “fenômeno” ainda mais verossímil.
Guilhermino César, por exemplo, na abertura do Festival de Cinema de Gramado (RS), em 22 de fevereiro de 1978, afirma: “Imaginem um aglomerado urbano cortado por um rio de 80, 100 metros de largura, com a ponte metálica fabricada pelos ingleses, duas praças com dois nomes ilustres que nós chamávamos “a praça de cima” e “a praça de baixo”, para simplificar as coisas, e umas cinco ruelas.
Eis Cataguases. Habitantes na década de 20/30, a vaidade local dizia 5.000 – mas as estatísticas diziam 3.500 habitantes. E nessa cidade de 3.500 habitantes, deram coisas espantosas para o tempo, o lugar e o ambiente cultural”.[xi]
Ora, a cidade não possuía, em 1927, nem 3.500, nem 5 mil habitantes, mas 16 mil apenas na sede do município, distribuídos em 1.300 casas construídas em 30 ruas, servidas de rede de água e esgoto e iluminação elétrica, economia baseada na indústria têxtil, variado comércio, invejável sistema educacional e ligação direta com o Rio de Janeiro pela estrada de ferro[xii] – só para termos uma ideia, à mesma época, Belo Horizonte contava com 110 mil habitantes.[xiii]
Daí estabelecerem-se raciocínios estrambóticos, como este, de Heitor Martins: “Quase inacreditável para os dias de hoje que nos idos de 20 e poucos formou-se na pequena cidade de Cataguases, no interior de Minas, um grupo sério de artistas jovens, umbilicalmente ligados ao movimento modernista de 22. Foi algo mais espantoso ainda do que, por exemplo, apenas se surgisse hoje um grupo, mais ou menos consciente do ponto de vista artístico, de teóricos concretos em qualquer cidadezinha do litoral e com pouco mais de 5 mil habitantes”.[xiv]
Por outro lado, exageraram a relevância de suas iniciativas. Recuam o início do contato com as novas ideias estéticas modernistas a 1923 ou 1924, e citam a divulgação de poemas “futuristas” nas páginas de jornais como O Estudante, Mercúrio, O Eco e Jazz-Band, todos em circulação entre 1926 e 1927, quando basta uma simples consulta a esses periódicos para nos depararmos com textos ainda vinculados ao simbolismo, ou, pior, ao mais descabelado romantismo, podendo-se, deles, referendar o que o redator do jornal Cataguases disse sobre O Estudante: “pode ser lido por toda a gente sem receio, mesmo pela donzela mais pudica”.[xv] Como exemplo, destaco a primeira das quatro quadras encontradas na capa do jornal Jazz-Band, número único lançado por Rosário Fusco em 28 de agosto de 1927, menos de um mês antes do início da publicação da revista Verde: “‘Elsa Zignago’//Até parece um bibelô de França/ essa pequena fina e esquisita…/Com ares de menina e de criança/dentre todas da escola é a mais bonita”.[xvi] As outras três quadras seguem na mesma toada…
Portanto, com essas duas vertentes complementares – a depreciação do meio em que viviam e a exageração de suas virtudes individuais –, criou-se quase uma lenda de que em Cataguases, nos anos 1920, ocorreu, como afirmou Francisco Marcelo Cabral, uma “espantosa empresa literária sem nenhuma justificativa sociológica”,[xvii][xviii] tese corrente mesmo entre os estudiosos.
Ora, se partirmos do pressuposto de que o surgimento da revista Verde em Cataguases – e também do ciclo cinematográfico, contemporâneo ao movimento literário – é um “fenômeno inexplicável”, jogaremos por terra a concepção de que a História é o conjunto de ações humanas, determinadas por uma gama infinita de componentes, seja de ordem econômica, social, política, moral ou estética, ou, conforme Georg Lukács: “A existência e a essência, a gênese e a eficácia da literatura só podem ser compreendidas e explicadas no quadro histórico geral de todo o sistema. A gênese e o desenvolvimento da literatura são parte do processo histórico geral da sociedade. A essência e o valor estético das obras literárias, bem como a influência exercida por elas, constituem parte daquele processo social geral e unitário mediante o qual o homem se apropria do mundo por meio de sua consciência”.[xix]
Assim, neste ensaio, proponho uma reflexão sobre como se engendraram as circunstâncias que tornaram possível a existência, numa pequena cidade do interior de Minas Gerais, de um movimento literário vanguardista com importante papel no desenvolvimento e na consolidação do modernismo brasileiro.
De que forma, em meados da década de 1920, Cataguases deixou de ser um ponto indistinto no mapa do Brasil para se transformar em centro irradiador das ideias novas. Ou, como afirma Guilhermino César: “nosso movimentinho, à semelhança do que sucedeu, por igual, em outros lugares, na mesma ocasião, prenunciou [19]30, fomentando inquietações que iriam desembocar num largo estuário literário e político”.[xx]
*Luiz Ruffato é escritor. Autor, entre outros livros, de O verão tardio (Companhia das Letras).
Referência
Luiz Ruffato. A revista Verde, de Cataguases: contribuição à história do Modernismo. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 190 págs.
Notas
[i] ANDRADE, Mário de. Cataguases. In: Táxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. p. 550.
[ii] ROMANELLI, Kátia Bueno. A Revista Verde: contribuição para o estudo do modernismo brasileiro. 1981. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1981. p. 197-198.
[iii] PEIXOTO, Francisco Inácio. Vivo em Cataguases, fora de Cataguases.
Totem, Cataguases, 5 abr. 1979. [s.p.].
[iv] ANDRADE, Mário de. Influências. In: Táxi e crônicas no Diário Nacional, p. 81
[v] ATHAYDE, Tristão de. Provincialismo poético. O Jornal, Rio de Janeiro, p.
[vi] , 10 fev. 1929.
[vii] DUARTE, José Afrânio Moreira. Palavra puxa palavra. São Paulo: Editora do Escritor, 1982. p. 62.
[viii] Ao longo da vida, Henrique de Resende se manteve indeciso entre usar como prenome, para assinar suas obras, Henrique ou Enrique. Para não causar confusão, ao longo deste ensaio usarei apenas a forma Henrique de Resende.
[ix] AYALA, Walmir. Henrique de Resende: um eco da semana de 22. Revista Cultura, Brasília, ano 2, n. 5, jan-mar. 1972. p. 94.
[x] WERNECK, Ronaldo; BRANCO, Joaquim. Rosário Fusco: “O escritor brasileiro é um supercamelô”. O Pasquim, Rio de Janeiro, n. 351, p. 12, 19-26 mar. 1977.
[xi] CÉSAR, Guilhermino. Uma palestra cinematográfica. In: WERNECK, Ronaldo. Kiryrí rendáua toribóca opé: Humberto Mauro revisto por Ronaldo Werneck. São Paulo: Arte Paubrasil, 2009. p. 64.
[xii] Ver o capítulo “O café e o algodão”.
[xiii] MATOS, Ralfo Edmundo S. Evolução urbana e formação econômica de Belo Horizonte. Belo Horizonte: UFMG; Cedeplar, 1992. p. 16.
[xiv] DEPOIMENTOS sobre a “Verde”. Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, ano II, n. 19, 7 jan. 1967. p. 2.
[xv] CATAGUASES. Cataguases, 26 set. 1926, p. 2.
[xvi] Apud MENEZES. Amizade “carteadeira”: o diálogo epistolar de Mário de Andrade com o Grupo Verde de Cataguases, p. 433.
[xvii] CABRAL, Francisco Marcelo. Não desapaixonado. Totem, Cataguases, n.
[xviii] , 5 abr. 1979. [s.p.].
[xix] LUKÁCS, Georg. Introdução aos estudos estéticos de Marx e Engels. Tradução de Leandro Konder. In: KONDER, Leandro (Org.). Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 13.
[xx] CÉSAR, Guilhermino. Os verdes da Verde. In: VERDE. São Paulo: Metal Leve, 1978. [s.p.]. Edição fac-similar.