Por JULIAN RODRIGUES*
Não basta ganhar a eleição. Eleição é meio, não é fim
Segue quente na militância petista e de esquerda o debate sobre a melhor tática para as eleições de 2022. Há basicamente duas linhas argumentativas esgrimidas pelos que defendem Geraldo Alckmin como vice de Lula. A primeira se constitui – com pequenas variações – ao redor de uma única ideia: “Lula tudo sabe não erra nunca e quem questionar qualquer coisa estará ajudando o bolsonarismo”.
O fenômeno do culto à personalidade, do seguidismo, da canonização em vida de líderes da esquerda não é novo, infelizmente. Trata-se do rebaixamento da capacidade crítica, da elaboração coletiva e da democracia partidária. Muita gente boa saiu defendendo a proposta esdrúxula porque seria a posição de Lula. (que, a propósito, nunca afirmou nitidamente que quer Alckmin como vice). Um surto de acriticidade e puxa saquismo… Lula locuta, causa finita.
A vida anda muito ruim na aldeia, a gente sabe. É preciso fazer de tudo para derrotar o bolsonarismo. Mas, calma: o desespero não é bom conselheiro. Não se derrota o inimigo trazendo um cavalo de Troia para dentro do nosso bunker.
O principal fio argumentativo dos “luloxuxuzistas”: “sem Alckmin não vencemos”, ou “com Alckmin venceremos no primeiro turno”. Na mesma toada: “é preciso alianças”, “Zé Alencar foi vice, agora é Alckmin”, e por aí seguem -, misturando ingenuidade, senso comum, falta de lógica, desprezo pelo programa/estratégia.. Ah, com muitas pitadas de pensamento mágico beirando ao misticismo. Wishful thinking é fichinha…
A crença na ideia de que bastaria trazer um vice do lado de lá para resolver de vez a eleição é sincera, e talvez até majoritária na base petista ( décadas negligenciando a formação política traz consequências). Bem raso, o debate tem se concentrado no aspecto meramente eleitoral. Alckmin traria votos para Lula. Ponto. That´s it. Calem-se infiéis, céticos, descrentes, críticos e que tais.
Político tradicional tucano em descenso, Geraldo teve 4% nas últimas eleições presidenciais e anda escanteado dentro do próprio partido (dominado por Doria). De onde saiu a ideia de que votos conservadores paulistas viriam para Lula se o tucano fosse o vice? Só quem não entende muito de política e nada de São Paulo acredita nisso.
Fico imaginando a cena. Uma senhora distinta dos Jardins, conservadora até a raiz dos cabelos, antipetista radical descobre que seu Geraldo virou vice do Lula. Em segundos tem uma epifania, uma experiência arrebatadora… Chega de PSDB. Nada de votar em Dória, agora é Lula-Alckmin!
O imbróglio de verdade não tem a ver com a coisa eleitoral em si. O que está em jogo é o programa do futuro governo. E até onde poderá avançar. Meter esse tucano-mor dentro da nossa chapa seria uma rendição antecipada aos mercados. Selo de garantia de um futuro governo “responsável”, “comportado”, recuado, obediente ao paradigma neoliberal. Alckmin seria uma espécie de personificação de nova “carta aos brasileiros” (aquela que ficou conhecida como “carta aos banqueiros”).
Pior e mais perigoso ainda: seria meio que consentir antecipadamente com um golpe. Afinal, o queridinho da elite, vice-presidente, estaria pronto para assumir o governo a qualquer momento. Nada aprendemos com o golpe de 2016? A turma esqueceu que Geraldo apoiou o golpe contra Dilma e também o encarceramento de Lula? O tucano paulista não só apoiou a prisão como ainda tirou onda: “ninguém está acima da lei”.
Esquecemos que ele não é somente liberal-conservador, mas um autoritário, por anos chefe da PM mais letal do Brasil? Responsável pelo massacre de Pinheirinho, pela repressão brutal aos movimentos sociais? O cara é inimigo do funcionalismo público e privatista radical.
Outra crença mágica: colocar o tucano de vice diminuiria a resistência da direita, porque tiraria uma peça do lado de lá. Quem disse?? Alckmin tem essa força toda? Nem no PSDB de São Paulo ele manda. Menas, bem menas. É muita ilusão. Os mais sofisticados alegam que Alckmin vice seria “destravar portas”. Ou seja, partem do pressuposto de que só será possível governar entregando um bando de anéis, rebaixando horizontes e se curvando aos ditames do tal “mercado”. No fundo, é esse o centro da questão. Querem colocar desde já uma trava – manietar o futuro governo do PT.
Quase me esqueço. Tem também o argumento paulista. Tirar Alckmin da disputa em São Paulo ajudaria Haddad. Haja desconhecimento. Para começar, não está dado que Geraldo saia mesmo do PSDB (poderia se eleger senador com um pé nas costas). Em segundo lugar, se for mesmo para o PSD de Kassab e disputar o governo (com apoio do PSB de Márcio França) dificilmente Alckmin terá fôlego para derrotar o candidato oficial de Doria e da máquina tucana. O mais provável é que ficaria pelo meio do caminho. Haddad e Rodrigo Garcia tendem a disputar a segunda volta. A saída de Alckmin do pleito não ajuda em nada Haddad. Pelo contrário. Com Geraldo na urna os votos da direita se dispersam mais, aumentando a chance do petista chegar ao segundo turno.
A campanha Lula em 2022 não será repetição de pleitos anteriores. Não vivemos em um período de normalidade democrática. A classe dominante deu um golpe! O neofascismo tem 25% de apoio na sociedade. Ousadia, gente. É totalmente possível construir uma campanha porreta – popular, combativa, pela esquerda, mobilizadora, como fizemos em 1989.
O acúmulo de forças vai se dar justamente no período eleitoral. Alianças com os movimentos sociais, com a juventude, com o povão. Empolgar as massas e criar musculatura para implantar um projeto de mudanças. Desbolsonarizar e desneoliberalizar o país. Governabilidade é apoio social, gente mobilizada nas ruas. Comunicação direta. Disputar ideias, organizar militância, explicar o que está em jogo, enfrentar as elites. Ir para o enfrentamento. Quebrar os ovos para fazer o omelete.
2022 não é 2002. Não tem espaço para o modelinho “peace and love””. O lado de lá não topa nenhum acordo. Prenderam o Lula, derrubaram a Dilma, elegeram Bolsonaro. O que mais precisa para gente entender que não tem conversa? Eles não querem nem piscar pra nós. Alckmin vice não ajuda em nada, pelo contrário, atrapalha. Atrapalha na campanha e atrapalha no governo. Na batalha eleitoral só vai criar ruído, desconfiança e tirar o ânimo dos setores mais combativos, da militância orgânica (como ficaria o PSOL, por exemplo?).
No governo o tal vice tucano seria igual trombolho boicotando as mudanças – além de fator desestabilizador permanente, tipo um plantonista de golpe. Mais racionalidade, turma. Senso crítico. Sangue frio. Não precisamos do “picolé de Xuxu” para vencer as eleições. Nem de entregar a alma ao diabo. Vamos investir em nitidez programática, mobilização social, engajamento militante. e diálogo com as massas – apresentando propostas concretas para resolver os problemas do povo pobre.
Não basta ganhar a eleição. Eleição é meio, não é fim. Queremos transformar o país de verdade. Profundamente. Lutamos por um governo democrático-popular, capaz de mudar a vida do povo.
Julian Rodrigues é jornalista, professor e ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos.