Terrorismo fiscal e totalitarismo financeiro

Umbo (Otto Umbehr) (1902–1980), Mistério da Rua, 1928.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO KLIASS, MARIA ABREU, FABIANO A. S. DALTO e DANIEL NEGREIROS CONCEIÇÃO*

O terrorismo fiscal reside na ameaça ao Estado com o objetivo de impedi-lo de dar condições mínimas de liberdade para seus cidadãos e suas cidadãs

No último 14 de março, completaram-se cinco anos do assassinato de Marielle Franco, sem que se tenham descoberto os mandantes do crime. Em discurso incisivo, o Ministro da Justiça afirmou que vivemos tempos parecidos com os europeus de um século atrás, em que sentimentos eram mobilizados para criar uma unidade em torno do ódio.

Tomando como ao menos parcialmente coerente esta avaliação de Flávio Dino, temos a apontar que, se o diagnóstico a respeito das relações sociais mobilizadas em torno de afetos está correto, já a solução institucional estatal vem sendo outra. Nos últimos anos, ao invés de um Estado totalitário, tivemos uma realidade em que o ódio e o medo foram mobilizados para criar um véu do abandono genocida nas relações entre Estado e sociedade.

Se examinarmos bem, com a desorganização sistemática das políticas sociais em plena pandemia, a eliminação de restrições que impediam a dizimação de povos indígenas, o estímulo ao armamento da população e exclusivamente ao empreendedorismo individual, somadas à ausência de políticas de promoção e garantia de empregos formais, vivemos um tempo bastante peculiar. Talvez algo muito mais próximo ao estado de natureza formulado por Thomas Hobbes, em meados do século XVII, do que aos Estados autoritários, fascistas ou nazistas da primeira metade do século XX.

No caso brasileiro, se sobrevivemos aos últimos anos, foi graças a uma estrutura estatal, composta por servidores públicos, que teimou em funcionar, a despeito de todo projeto de desmonte a ela aplicado. Tal projeto tentou derrubar as pilastras vivas e institucionais de uma mínima estrutura democrática, que institucionalmente se traduz em separação de poderes executivo, legislativo e judiciário, e a realização de eleições periódicas consideradas legítimas, com a inclusão de toda a população a partir de uma certa idade.

Este é o pacto democrático mínimo alcançado por diversos países na primeira metade do século 20, que foi ameaçado nos últimos anos em alguns lugares no mundo e, de forma contundente, no Brasil. Conseguimos, com muito esforço e de forma bastante disputada, salvar esse arranjo. Para que nossa sociedade se organizasse em torno da defesa dessa democracia mínima, uma ilusão teve de ser duramente perdida: a de que as instituições democráticas estariam garantidas.

Afastado, ao menos temporariamente, o perigo de perda de nossa democracia formal, temos agora de dar um segundo passo. Em artigo anterior, inspirados em uma entrevista de Ernesto Raúl Zaffaroni,[i] invocamos o conceito de totalitarismo financeiro, relacionando-o com o medo mobilizado pelo mercado. Pois agora vamos analisar o papel que o terrorismo fiscal tem nesse totalitarismo. No texto anterior, destacamos que, para haver totalitarismo, não é necessária uma economia planificada. Neste texto, vamos sugerir que um Estado fraco é palco propício para um terrorismo fiscal e, em consequência, uma espécie de totalitarismo de mercado.

Os debates envolvendo a política econômica brasileira atual giram em torno da estrutura legal de finanças públicas – o arcabouço fiscal – que substituirá o chamado “teto de gastos” instituído ainda no governo Temer e desrespeitado sem problemas – ainda bem – pelo governo Bolsonaro. Apesar dos fins eleitoreiros, precisamos ter a coragem de dizer que foi a desobediência de Jair Bolsonaro ao teto de gastos que impediu que a população brasileira vivesse uma situação ainda mais famélica e desesperadora do que aquela pela qual passou. O orçamento secreto e o Auxílio Brasil foram práticas espúrias do ponto de vista da transparência e da impessoalidade dos gastos públicos, mas ao menos contribuíram para que houvesse algum grau de despesa pública para atenuar as dificuldades vividas pela grande maioria da população.

Após a aprovação da PEC da Transição ao Congresso Nacional, o governo está obrigado a apresentar até agosto próximo uma lei complementar tratando do chamado “arcabouço fiscal”. Esta é, aliás, a condição prevista na Emenda Constitucional nº. 126 para que se torne efetivo o fim do novo regime fiscal e o teto de gastos. Não sabemos ao certo o que será proposto depois de negociado internamente na equipe liderada por Lula. Mas de acordo com as indicações do ministro Fernando Haddad, teremos algum tipo de combinação de responsabilidade social com a responsabilidade fiscal.

A julgar pelas manifestações de representantes do financismo nos grandes meios de comunicação, qualquer proposta que não mantenha a essência do teto de gastos será considerada insuficiente e “irresponsável” fiscalmente. O clima de chantagem e ameaça deve ser retomado a partir de divulgação da proposta do governo e assim será também ao longo de sua tramitação nas duas casas do Parlamento. Alguns “especialistas” já tratam a matéria pelo apelido de “âncora” fiscal e não de arcabouço fiscal, pois a ideia é realmente a de segurar a possibilidade de elevação de gastos no fundo do oceano com fortes cabos de aço.

Buscando contribuir para o debate, o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD) lançou, em nota pública,[ii] contribuição para o desenho de um novo arcabouço fiscal. Nela, estão valorizados os instrumentos de planejamento previstos na Constituição brasileira de 1988 – o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Orçamento Anual – com a defesa do estabelecimento de “metas” de gastos em vez de teto de gastos.

Para assimilar essa contribuição, é necessário que se perca uma segunda ilusão em torno da relação entre Estado e democracia. A memória imediata de nossa história republicana associa planejamento com períodos autoritários – Estado Novo e ditadura militar –, fazendo às vezes parecer que instrumentos de planejamento governamental sejam amarras em face da espontaneidade social. Afirmamos que não o são. Ao contrário, o estabelecimento de metas planejadas cria transparência e pontos de debate democrático em torno dos quais agentes estatais e sociais possam dialogar, discordar, reivindicar e, no limite, rejeitar.

Sem planejamento, tem-se a possibilidade do oportunismo contingencial que dá aos mais fortes economicamente possibilidades mais amplas de negociarem, chantagearem e, no limite, ameaçarem. Não é a estabilidade do mercado que o governo deveria almejar, mas a segurança do cotidiano da vida dos cidadãos. E, para isso, vêm as metas de gastos, de acordo com as capacidades estatais dos governos e, como já indicou o economista André Lara Resende,[iii] até alcançar o pleno emprego.

Não se trata de defender um Estado que joga dinheiro de um helicóptero, em cenas que remontam a filmes em que o Batman – defensor da ordem – tem de defender Gotham City do cruel – e inconsequente – Coringa. Ao contrário. Embora não haja limites financeiros para a realização de pagamentos por um Estado criador de moeda, certamente deve haver limites funcionais para que as consequências dos gastos não sejam indesejáveis.

Porém, se é aceitável que bancos e empresas privadas “grandes demais para quebrar” sejam resgatadas pelo Estado sempre que estão ameaçadas de insolvência para evitar que suas quebras tenham consequências desestabilizadoras para a economia como um todo, como não pode ser muito mais justificável que o governo gaste o suficiente para prover direitos fundamentais da população com bens e serviços públicos e guiar a economia ao pleno emprego, com respeito ao limite inflacionário da economia?

O resgate às pressas de bancos e empresas privadas que quebram financeiramente e ameaçam a estabilidade do mercado é que não deveria ser feito com a frequência com que acontece. Se há pressão para que recursos públicos sejam garantidos para pagamentos de dívidas a juros altos, esse verdadeiro terror praticado contra cidadãos e cidadãs é que deve ser evitado. Neste sentido, o Estado não pode ser conivente ou agente auxiliar de quem efetivamente pratica o terror.

A defesa seletiva dos porta-vozes do mercado financeiro do gasto público irrestrito apenas para remunerar a riqueza aplicada em títulos públicos revela a natureza mesquinha e desonesta de suas recomendações para o governo. Para tais agentes, a estrutura democrática mínima, com mecanismos fiscais severos de controle dos gastos públicos do Estado é o cenário ideal. É o caminho para a garantia de que eles, na condição de especuladores e rentistas nacionais e estrangeiros, continuem dormindo tranquilamente.

Mas nós sabemos onde isso pode levar. Se a estrutura política não for capaz de promover economicamente aquilo que ela promete na inclusão pelo voto, não há abstração democrática que sustente valores humanitários. Se economicamente predominar o “cada um por si”, por que alguém expropriado/a continuamente pelas dívidas impagáveis – de acordo com as próprias regras dessa estrutura financeira estatal – se comprometeria com a mesma estrutura, que é mantida por eles próprios?

O terrorismo fiscal reside justamente na ameaça ao Estado com o objetivo de impedi-lo de dar condições mínimas de liberdade – a de não ser expropriado financeiramente de modo contínuo – para seus cidadãos e suas cidadãs. Garantir essa liberdade, para além do direito à vida, é o que dá a mínima legitimidade a um Estado que se pretende democrático.

*Paulo Kliass é doutor em economia pela UFR, Sciences Économiques, Université de Paris X (Nanterre) e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

*Maria Abreu é professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

*Fabiano A. S. Dalto é diretor de pesquisa do IFFD e Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

*Daniel Negreiros Conceição é diretor presidente do IFFD e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ.

Notas


[i] https://aterraeredonda.com.br/mercado-e-totalitarismo-financeiro/

[ii] https://iffdbrasil.org/index.php/2023/03/13/nota-publica-n-1-em-defesa-de-um-regime-de-planejamento-fiscal/

[iii] https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/02/11/andre-lara-resende-a-camisa-de-forca-ideologica-da-macroeconomia.ghtml


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Liszt Vieira Eliziário Andrade Luiz Renato Martins Boaventura de Sousa Santos Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fábio Konder Comparato Ari Marcelo Solon Fernão Pessoa Ramos Leonardo Sacramento Ricardo Abramovay Antônio Sales Rios Neto Mariarosaria Fabris Vinício Carrilho Martinez João Sette Whitaker Ferreira Alysson Leandro Mascaro Antonino Infranca Henri Acselrad Benicio Viero Schmidt Francisco de Oliveira Barros Júnior Vanderlei Tenório Carla Teixeira Leda Maria Paulani Vladimir Safatle Ronald León Núñez Francisco Pereira de Farias Mário Maestri Tales Ab'Sáber Remy José Fontana Samuel Kilsztajn Lorenzo Vitral Paulo Martins Caio Bugiato João Feres Júnior Tadeu Valadares Otaviano Helene Eugênio Trivinho Valerio Arcary Carlos Tautz Annateresa Fabris João Paulo Ayub Fonseca Marcus Ianoni Salem Nasser Lincoln Secco Érico Andrade André Márcio Neves Soares Heraldo Campos Leonardo Avritzer José Luís Fiori Eugênio Bucci Luiz Bernardo Pericás Eduardo Borges Rubens Pinto Lyra Jean Pierre Chauvin Paulo Sérgio Pinheiro Matheus Silveira de Souza Gabriel Cohn Marcelo Guimarães Lima Francisco Fernandes Ladeira Bernardo Ricupero Flávio Aguiar Manchetômetro Walnice Nogueira Galvão Marcos Aurélio da Silva Elias Jabbour Dennis Oliveira Marilia Pacheco Fiorillo Eleonora Albano Kátia Gerab Baggio José Dirceu Berenice Bento Anselm Jappe Juarez Guimarães Andrés del Río Everaldo de Oliveira Andrade Luis Felipe Miguel Igor Felippe Santos Luiz Marques João Adolfo Hansen Luiz Eduardo Soares Chico Alencar Alexandre de Freitas Barbosa Thomas Piketty Bruno Machado Marilena Chauí Jorge Luiz Souto Maior Celso Favaretto Gilberto Maringoni André Singer Ricardo Musse Sandra Bitencourt Flávio R. Kothe Eleutério F. S. Prado Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Nogueira Batista Jr Dênis de Moraes Leonardo Boff Paulo Capel Narvai Marjorie C. Marona Luiz Werneck Vianna Slavoj Žižek Chico Whitaker Osvaldo Coggiola Marcos Silva José Costa Júnior José Raimundo Trindade Jorge Branco Daniel Afonso da Silva Daniel Costa Henry Burnett Yuri Martins-Fontes Ladislau Dowbor Rodrigo de Faria Antonio Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Fernandes Silveira Valerio Arcary Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luís Fernando Vitagliano Andrew Korybko Ronaldo Tadeu de Souza Fernando Nogueira da Costa Bento Prado Jr. Gerson Almeida Atilio A. Boron Michael Roberts Maria Rita Kehl Denilson Cordeiro Rafael R. Ioris Ronald Rocha Armando Boito José Micaelson Lacerda Morais José Machado Moita Neto Claudio Katz Julian Rodrigues Airton Paschoa Luciano Nascimento Gilberto Lopes Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Brazil Manuel Domingos Neto Celso Frederico Michel Goulart da Silva Ricardo Antunes João Carlos Loebens Ricardo Fabbrini Tarso Genro Priscila Figueiredo Sergio Amadeu da Silveira Milton Pinheiro Luiz Roberto Alves Renato Dagnino Alexandre de Lima Castro Tranjan João Carlos Salles Michael Löwy Marcelo Módolo Luiz Carlos Bresser-Pereira José Geraldo Couto Afrânio Catani João Lanari Bo

NOVAS PUBLICAÇÕES