Por MIGUEL ENRIQUE STEDILE*
Comentário sobre o livro “Ninguém disse que seria fácil” de Valério Arcary
Os últimos seis anos estão entre os mais árduos enfrentados pela esquerda brasileira. A combinação de derrotas políticas, a ascensão de um governo neofascista e a emergência de uma pandemia global produziu um dos cenários mais complexos e delicados para a luta política. A máxima de Palmiro Togliatti, “quem erra na análise, erra na ação”, se constituiu em uma advertência constante que exigia de organizações e lideranças os máximos cuidados e precisão na elaboração tática.
Felizmente as reflexões de Valério Arcary, agora compiladas no livro Ninguém disse que seria fácil, não podem ser confundidas ou perdidas no tsunami de textos e avaliações, muitas produzidas no calor da hora pelas próprias exigências da luta, outras mais pela exigência em satisfazer os algoritmos das redes sociais, que o período produziu.
Ainda que não tenha sido a motivação original do historiador, o esforço de Valério Arcary resultou no registro histórico das tensões, contradições e angústias da militância neste período. Não do período pandêmico ou do bolsonarismo, mas do que significa militar em um período contrarrevolucionário em que o horizonte do projeto socialista parece distante. Não foram poucos os que sucumbiram ao desânimo, à depressão, à projetos individuais, ao desalento. A eles, o experiente dirigente, responde, sem jamais ser piegas, com a reafirmação da esperança e do compromisso com a emancipação da classe trabalhadora.
O conjunto de pequenos, porém densos e assertivos, textos passa em revista um conjunto de temas que a esquerda tradicionalmente ignora ou pejorativamente relega ao “subjetivismo”, tais como a amizade ou as parcerias amorosas; mas também coloca os dedos nas feridas de questões organizativas, como as finanças, a burocracia, o profissionalismo; combate desvios como a paranoia e as teorias conspiratórias; e reafirma pilares da organização política, algumas vezes ausentes em novas manifestações populares, como o trabalho de base e a atuação coletiva.
Portanto, seu livro é também um convite à reflexão da prática da atual geração de militantes, chamando atenção para dimensões da luta política que nossas tradições anteriores relegaram ou trataram como tabu. Questões como o sacrifício, o estilo da vida, o anti-intelectualismo ou o oportunismo eleitoral são tratados sem melindres, nem rodeios. Sem recorrer a tons moralistas ou se colocar a parte destas tensões. Sem cair na terra arrasada, nem tampouco ao ufanismo, Valério Arcary escreve na justa medida da autocrítica.
Que não se espere um índice ou coletânea de verbetes dos dilemas contemporâneos – outros tantos poderiam ser incluídos. E, ainda que cada texto possua independência, não se recomenda sua leitura aleatória, porque ao fim, formam um conjunto coeso e unitário do significado da profissão de fé ao socialismo neste século.
Sem adotar um tom professoral, o livro é também um legado para a nova e as futuras gerações de militantes para que não incorram nos erros que cometemos, não se percam na multiplicidade de identidades, sem negá-las, nem desanime diante de um período politicamente desfavorável. Afinal, como escreveu o poeta Roque Dalton, ao fim, “custodiamos para ellos el tiempo que nos toca”.
Mas a eles, Valério Arcary relembra que “a ousadia de nos transformar na luta pela mudança política da sociedade é o contrário da acomodação. Exige, em primeiro lugar, uma conexão com a realidade e muita disposição para participar de lutas, mantendo portanto, vínculos saudáveis com a militância de esquerda de outras correntes, porque felizmente não somos os únicos revolucionários; em segundo, requer mente aberta, curiosidade intensa e desejo de aprendizagem sincera, portanto apreço pela teoria e capacidade de admitir os erros sem excesso de dramatização; por fim, demanda um internacionalismo vivo, de quem compreende que o destino da causa socialista não tem fronteiras. E exige a valorização da fraternidade entre nós”.
À eles e à nós, Valério Arcary adverte, porém, que a renovação de quadros na esquerda depende imprescindivelmente de “uma nova onda de grandes lutas de massas”. A nova geração precisa ser formada “a quente” e não “a frio”, numa situação reacionária e defensiva. Construir esta nova onda de lutas de massas é o verdadeiro desafio que perpassa as entrelinhas de seu livro. A sua maneira, Ninguém disse que seria fácil ecoa os versos de Fernando Brant: “Se muito vale o já feito\ Mais vale o que será”. Pois, outros outubros virão.
*Miguel Enrique Stedile é doutor em história pela UFRGS e integrante da coordenação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Referência
Valério Arcary. Ninguém disse que seria fácil. São Paulo, Boitempo, 2022, 160 págs (https://amzn.to/3OWSRAc).
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