O impasse político militar

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Por JEAN MARC VON DER WEID*

Somente um processo de mobilização popular em grande escala e de forma permanente pode deter a ameaça golpista até 2026

Dez dias após o badernaço na Praça dos Três Poderes podemos começar a analisar a situação política em que se encontra o novo governo do presidente Lula.

Choveram análises muito díspares sobre os eventos e seus participantes, organizadores, financiadores e líderes. Uns apontam para uma complexa trama organizada por Jair Bolsonaro e seus próximos para gerar um estado de caos capaz de provocar uma intervenção das Forças Armadas (FFAA) que dissolvesse o governo atual, anulasse o processo eleitoral que o levou à vitória e trouxesse de volta o capitão. Outros apontam para um complô mais elaborado, tramado pela cúpula das Forças Armadas, visando não a tomada imediata do poder, mas o enfraquecimento do governo e das instituições democráticas, ficando o xeque-mate para um momento posterior.

Em outra linha totalmente diversa, alguns analistas afirmam que o governo controlou habilmente todos os movimentos, evitando um enfrentamento com as Forças Armadas e, ao mesmo tempo, dando espaço para que o badernaço acontecesse sem choques maiores e vítimas, para explorar a repercussão negativa dos acontecimentos na opinião pública. Finalmente, há quem afirme que tudo foi uma sucessão de atos criminosos de uma minoria de fanáticos que contou com falhas de segurança para que pudessem ter lugar.

Reconstruir as motivações de cada um dos atores para fazerem o que fizeram é, em geral, reorganizar razões e atos para justificar uma visão do que fazer no presente e no futuro. Vamos discutir as alternativas de interpretação.

Acho que ninguém duvida de alguns fatos, cada dia mais comprovados por novas revelações. Há uma forte rejeição da eleição de Lula por parte significativa da opinião pública. Jair Bolsonaro não admitiu a derrota e seguiu, tortuosamente, reclamando da intervenção do TSE nas eleições para permitir a vitória de Lula. Os seguidores do energúmeno passaram 70 dias em atos contínuos na porta dos quartéis, pedindo a intervenção militar, primeiro para anular a eleição de Lula e, com o tempo, para reivindicar pura e simplesmente um golpe, levando as FFAA ao poder. Também deveria ser claro que, apesar da simpatia dos militares dos quartéis cercados pelos manifestantes, com direito a discursos de solidariedade ao vivo ou pelas redes sociais, as Forças Armadas não mostraram inclinação para intervir na ordem democrática.

Foram muitas as demonstrações de desagrado com a eleição de Lula, começando com a recusa dos três comandantes em chefe do Exército, Marinha e Aeronáutica em passar o bastão para seus sucessores na presença do novo presidente. Para evitar confrontos, Lula aceitou que os novos comandantes fossem nomeados pelo ex-presidente já de malas prontas para partir para os braços do Pateta e do Mickey. Também ficou claro que as forças de segurança do governo do Distrito Federal eram cúmplices dos manifestantes, com a PM assistindo ao ensaio geral do badernaço no dia da formalização da vitória do Lula pelo TSE, no 12 de dezembro.

A tibieza, para não chamar de cumplicidade do governador Ibaneis Rocha no lidar com os acampamentos de conspiradores, mostrou de que lado ele estava alinhado. Mais ainda quando ele afrontou o novo governo federal, nomeando o notório bolsonarista raiz Anderson Torres, delegado da PF e Ministro da Justiça de Bolsonaro, para ser seu secretário de Segurança.

As manifestações dos fanáticos bolsonaristas estavam em processo de esvaziamento, abaladas pela atitude pusilânime do energúmeno depois da derrota. Isto não os impediu de radicalizar suas atitudes, um movimento tipico de quem perdeu a iniciativa política e busca recobrá-la pela violência. A posse de Lula, apoteótica em todos os sentidos, e realizada em total paz em todo o país, reforçava esta percepção. No entanto, nas redes sociais, a extrema direita neofascista, em processo de descolamento de seu líder, chamava a uma manifestação nos dias 8 e 9, em Brasília e em todo o país.

É interessante notar que esta convocação, quase totalmente escancarada, já não estava centrada em Jair Bolsonaro, mas nas Forças Armadas, e um tanto exasperada pela inércia dos quartéis. O apelo para uma manifestação gigante, com dois a três milhões de pessoas em Brasília, tinha como objetivo forçar a mão dos militares, alguns dos quais já estavam sendo hostilizados como capituladores: Hamilton Mourão, os comandantes das forças, os quatro generais membros do alto comando do Exército acusados de melancias (vermelhos por dentro) por terem se oposto a “sair no pau”, tal como proposto pelo general Augusto Heleno no dia da derrota eleitoral.

As ambições dos que convocaram as manifestações eram claras, acho eu. Queriam provocar o caos a partir do badernaço, e a intenção de invadir os prédios símbolo dos três poderes era explícita. As mensagens enfatizavam o momento do “tudo ou nada”, da ocupação dos prédios até os militares se mexerem, da disposição de “matar ou morrer”. Apelos para os CACs virem com seu armamento de guerra foram frequentes nas redes, o que mostra a disposição para o confronto radical.

Qual a origem desta convocação? Os líderes bolsonaristas foram bastante discretos e não se expuseram diretamente. Até agora nenhum peixe grande caiu nas redes da PF ou do Xandão. Três deputados do baixíssimo clero, nunca antes mencionados como lideranças desta ala fanática, e alguns influenciadores já rotineiros nos seus procedimentos foram identificados como conclamadores do badernaço, mas sequer a porra louca da Carla Zambelli ou qualquer dos zerinhos e muito menos o energúmeno se manifestaram. Razões táticas? Medo? Ou tudo isto ocorreu por fora de sua influência direta? Os financiadores, até agora, também são inexpressivos enquanto poder econômico. A indicação dos depoimentos é o agronegócio como fonte financiadora, mas quando se chega aos nomes, não achamos sequer um “velho da Havan” ou outro ricaço brincando de golpista.

Os fatos apontam para uma enorme confluência de fatores que permitiram que o badernaço acontecesse, mas é menos claro que tudo tenha ocorrido dentro de uma estratégia arquitetada rigorosamente envolvendo as forças capazes de, concretamente, dar o golpe.

Anderson Torres, claramente, preparou a paralisação da PM do DF, com a colaboração de Ibaneis Rocha e dos comandantes, e com a simpatia dos policiais. Por outro lado, as outras forças encarregadas de proteger os palácios, em particular as que devem proteger o Planalto, foram dispersadas e paralisadas pelos seus comandos, em particular o general que chefia a Guarda Presidencial. As guardas, defendendo o Congresso e o STF, sempre foram mais simbólicas do que efetivas para conter os baderneiros. Isto tudo permitiu que os cerca de cinco mil manifestantes chegassem aos seus alvos e parassem para a destruição do patrimônio público.

Em muitas mensagens mandadas pelos participantes, eles aparecem gritando “tomamos o poder” e “só sairemos daqui com a intervenção das Forças Armadas”. Ingenuidade. Tomar um prédio não é tomar o poder e os palácios da Esplanada não são como a Bastilha de 1789. Ou o palácio de Inverno do tzar em 1918. Mesmo nesses casos as invasões tiveram mais impacto simbólico do que efetivamente uma tomada do poder.

Foram muitos os casos de oficiais das Forças Armadas (mais da reserva do que da ativa) participando do badernaço e alguns, inclusive o comandante da Guarda Presidencial, ajudando os manifestantes. Mas isto não é o mesmo do que uma intervenção das Forças Armadas. As tropas ficaram nos quartéis, embora tenham colocado os blindados na porta do QG para impedir a ação da Força Nacional e da tropa de choque da PM (tardiamente mobilizada) que tentavam prender os manifestantes que fugiam da repressão na Esplanada.

Mas não tiveram uma atitude ofensiva de ocupar a cidade “para restabelecer a ordem” ou mesmo de ocupar a Praça dos Três Poderes. O Comando Militar do Planalto mandou uma unidade bastante diminuta, menos de que uma companhia (117 homens, segundo a imprensa) para ajudar a dispersão dos manifestantes. Fez isso de forma independente ou em contato com o secretário de segurança interventor? Ou com o Ministro da Justiça? O fato é que esta unidade não chegou a entrar em ação.

Segundo informações mais recentes, o comando militar do Planalto “sugeriu” ao seu representante no governo Lula, o ministro da Defesa José Múcio Monteiro, a decretação de uma GLO no território do DF e colocou a tropa em prontidão enquanto esperava a resposta. Múcio levou a proposta a Lula, que teve a clarividência de recusá-la e decretar uma intervenção federal na PM do DF. Esta informação tende a reforçar a ideia de uma cumplicidade das Forças Armadas com os eventos, visando assumir o controle da capital.

Por outro lado, tanto a proposta como a ausência de reação à decisão de Lula mostram que as Forças Armadas ou a parte delas que se envolveu no episódio, o Comando Militar do Planalto, buscou um formato de intervenção dentro da legalidade. Mesmo supondo que Lula tivesse aceitado a proposta, o que isto significaria? O mandato de uma GLO não implica na tomada do poder, embora facilite as coisas no caso de decidirem fazê-lo. Mas obviamente significaria um constrangimento para o novo governo e um aumento da capacidade de pressão dos militares.

O momento mais preocupante destes episódios foi o enfrentamento do Comandante em chefe do Exército e os Ministros da Defesa e da Justiça. O general enquadrou os civis afirmando que não teriam prisões na porta do QG do exército. E o comando do Planalto colocou os blindados na rua. Segundo informações vazadas na imprensa isto ocorreu quando a Força Nacional e os choques da PM procuravam cercar o acampamento para onde tinham refluído cerca de 3000 manifestantes escapando da repressão na Esplanada.

Segundo informações ainda a verificar os três personagens se puseram de acordo em deixar as prisões para a manhã seguinte. Durante a noite metade dos manifestantes abrigados no acampamento tinha desaparecido. É claro que o general estava buscando proteger os militares e seus familiares que estavam entocados e ameaçados de prisão. Entre outros estava a esposa do general Villas Boas, ainda hoje figura muito respeitada entre seus pares. O incidente mostra o grau de comprometimento da oficialidade com estes movimentos de caráter abertamente subversivo. Mas continua mostrando também outra coisa, a consistente decisão de não cruzar o Rubicão e precipitar um golpe. Estão jogando duro com o governo Lula, mas o fiasco do badernaço os coloca na defensiva.

A meu ver, se havia uma intenção de atrair os quartéis para agirem, e acho que esta era a tática adotada, todo o movimento deu chabú. Apesar de toda a simpatia explicita dos quartéis para com os bolsominions manifestantes, mesmo depois do badernaço, não havia nem há uma decisão entre os oficiais superiores para rasgar a constituição e dar um golpe. Se a manifestação não fosse tão diminuta, se chegasse aos cem mil ou mais que se juntaram a Bolsonaro para ouvi-lo se intitular “imbrochável”, no 15 de novembro, os quartéis reagiriam? E se chegassem aos 2 milhões prometidos pelos convocadores?

Sigo achando que não, e isto porque milico não se mobiliza sem um comando unificado e reconhecido. Todo oficial tem medo de dar o primeiro passo e ficar sozinho para enfrentar as consequências. Se entre os comandantes escolhidos por Jair Bolsonaro não havia a disposição da maioria para “partir para o pau”, não seria com os novos comandantes que isto iria acontecer. Chegamos assim ao paradoxo deste episódio: todos os elementos para provocar um golpe estavam no cardápio, menos o essencial, a decisão dos comandos em assumir o risco do golpe.

Todas as teorias mais elaboradas de conspirações envolvendo esta ampla gama de atores citados, parecem fantasiosas. A meu ver, as redes sociais permitiram algo inédito: a mobilização de uma camada de extrema direita ultra radicalizada, mas sem que se identifique o comando de um núcleo estrategista. É quase como uma manifestação de desespero frente à derrota e uma recusa de admiti-la. No entanto, o grau de adesão ideológica da extrema direita está tão ampliado na nossa sociedade, que a “armata brancaleone” marchou para dar o golpe “tabajara”, o golpe dos trapalhões.

Será que Anderson Torres supunha que a tomada do poder ia dar certo? Ou Ibaneis Rocha? O primeiro não se arriscou a assistir ao espetáculo e foi para Miami. O segundo deu para trás no primeiro sinal de resistência, o decreto de Lula ou, talvez mais apropriadamente, ao primeiro sinal de que os quartéis não estavam se mexendo. A própria PM do DF fez uma intervenção dura, a partir do momento em que o interventor nomeado pelo Ministro da Justiça ordenou a ação dos batalhões de choque.

E o que se pode tirar como conclusão deste momento vergonhoso da nossa história? Em primeiro lugar, que o bolsonarismo, com ou sem Jair Bolsonaro, deu um tiro no pé. Queimou a largada, precipitou a crise sem segurança de poder conduzi-la até provocar o resultado desejado. E agora estão expostos à ação da lei. E, justiça seja feita, se alguém não vacilou em “partir para o pau”, este alguém foi o Xandão. Com a PF em ação, o MPF e até a PGR cobrando a conta do badernaço, o bolsonarismo cai na defensiva e vai ter que pagar.

A reação política de Lula foi cirúrgica e eficiente. Além da intervenção na segurança do DF, Lula mobilizou a representação dos três poderes para reagirem em uníssono contra a intentona. E aproveitou para reunir todos os governadores, inclusive vários bolsonaristas de carteirinha, para condenar, também em uníssono, a afronta aos poderes da República. O efeito sobre a opinião pública foi detectado por uma pesquisa do DataFolha, indicando a rejeição de 93% aos atos do domingo da vergonha.

O mais importante, entretanto, não é a refrega com os bolsonaristas, seus líderes e financiadores, embora seja muito importante para dar o exemplo e desencorajar outras aventuras. O essencial é o papel das Forças Armadas nisto tudo e na relação destas com o governo de Lula. Alguns dirão que tudo isto é parte do mesmo problema, que as Forças Armadas são bolsonaristas, assim como as PMs e a PRF (e parte da PF). Acho que não é bem assim. Que a oficialidade das Forças Armadas seja de direita e até de extrema direita, e que tenham tido identidade (sobretudo a coronelada) com Jair Bolsonaro, não se pode discutir. Mas outra coisa é entender como ela se comporta e até que ponto está disposta a virar a mesa.

O histórico de intervenções, manipulações e chantagens das Forças Armadas em relação aos outros poderes é tão longo quanto a existência da República. A chamada tutela nunca deixou de existir, apenas sua intensidade e truculência se amoldaram a diferentes conjunturas. O período mais prolongado de comportamento discreto das Forças Armadas foi o que se seguiu ao final da ditadura em 1985. Este episódio, a saída dos militares do controle direto do poder civil por 21 anos, foi conseguido pelo general Ernesto Geisel em confronto com uma ala mais radical da oficialidade que almejava manter o regime intacto. Geisel usou de sua autoridade como comandante supremo das Forças Armadas e enquadrou o seu ministro da Guerra e vários comandantes de regiões militares. Depois disso, ele dissolveu os DOI-CODI e espalhou os torturadores por embaixadas e consulados para afastá-los tanto das conspirações, como da atenção de uma opinião pública que ia, aos poucos, recuperando seu exercício crítico.

O processo de redemocratização (“lenta, segura e gradual”) controlado pelos militares teve uma falha capital: ao “perdoar” toda a chamada “tigrada” junto com a anistia aos militantes de esquerda, o sucessor de Ernesto Geisel, o general João Figueiredo, deixou na incubadeira o ovo da serpente da repolitização das Forças Armadas. Afastados do poder executivo, os oficiais ficaram curtindo o rancor pela repulsa da sociedade ao seu papel autoatribuído de salvadores da pátria.

A constituição de 1988 teve inúmeras decisões, cujo objeto era definir o lugar das Forças Armadas na sociedade, mas mesmo em recesso de atuação política explicita, os militares conseguiram a redação ambígua do artigo 142, o que lhes permitiu, até hoje, se apresentarem como um quarto poder da República. E o fantasma da ameaça militar esteve presente durante os debates da Constituinte. Os senadores Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas, recebendo uma delegação do Movimento Feminino Pela Anistia, que reivindicava a inclusão dos suboficiais e praças nas medidas de compensação por sua cassação pela ditadura, responderam com a frase “vocês querem a volta dos urutus?”.

A atuação política da oficialidade veio num crescendo desde a eleição de Lula e, sobretudo, no governo de Dilma Rousseff. Atos de rebeldia, confrontos com o executivo, ordens do dia defendendo a ditadura, tudo isso foi engolido a seco pelos governos de esquerda, para evitar uma crise com os militares. Com o golpe que derrubou Dilma Rousseff, a politização se acelera e as intervenções dos oficiais superiores vão se tornando mais abertas, até chegarmos ao twitter do general Villas Boas, enquadrando o STF e levando à prisão do Lula.

No capítulo seguinte temos a decisão do “partido militar” de apoiar a estrela crescente do fascismo, o ex-capitão terrorista, afastado do exército sem uma expulsão “para não desgastar a força”. Os militares acreditavam que poderiam enquadrar o capitão e nisso eles se deram mal. Foi o capitão quem enquadrou os generais, afastando os que não se submeteram aos seus desejos. Mas a “classe” dos oficiais estava satisfeita com o presidente que contratou 8 a 10 mil inutilidades para cargos no executivo, abençoou-os com uma aposentadoria mais que confortável, enquanto o resto do país passava por arrocho, promoveu um reordenamento da carreira com aumentos substanciais em proventos e ainda os brindou com gastos nos caros brinquedinhos que simulam as guerras que nunca travam (navios, aviões, tanques, …). A oficialidade teve ganhos materiais imensos, para os da ativa e os da reserva e, de lambuja, viram o seu discurso ideológico de direita virar a narrativa dominante, senão na sociedade, pelo menos no poder.

Para o “partido militar”, o lado ruim do episódio Bolsonaro foi a sua total incapacidade de governar, que produziu uma gestão desastrosa, como nenhuma outra na história do país e talvez de qualquer país. O preço pago foi a volta de Lula, do PT e da esquerda. Um resultado amargo que a generalada põe no colo do energúmeno. Não é casual que os generais tenham sido arredios aos apelos de Jair Bolsonaro para uma intervenção militar após a derrota nas urnas. Além de considerações de caráter tático e conjuntural, pesaram as restrições ao personagem pelo qual eles teriam que se arriscar.

Por outro lado, na oficialidade média e baixa, o prestigio de Jair Bolsonaro parece intacto. O período desde a queda de Dilma Rousseff, viu este setor se envolver cada vez mais em política e de forma cada vez mais explícita, via redes sociais. Ao se envolverem com as redes bolsonaristas, estes oficiais passaram a comprar as narrativas que justificavam tudo o que Jair Bolsonaro fez ou não fez. Muitos cursaram as aulas do astrólogo travestido em ideólogo da extrema direita, Olavo de Carvalho. O “mito” de pés de barro, para esta malta, continua vigente. E nisto eles estão em rota de colisão com seus superiores, os generais, sobretudo os mais graduados.

Toda esta horrenda bagunça nas Três Forças faria Ernesto Geisel chorar de desespero e lamentar não ter passado o rodo na tigrada quando teve a oportunidade. O exército profissional sonhado pelo general simplesmente se dissolveu em facções políticas cada vez menos respeitadoras da sacrossanta hierarquia militar.

Os episódios de domingo passado, o badernaço de Brasília, têm algo a ver com este imbróglio das Forças Armadas. Não há qualquer dúvida, como já foi visto no começo deste artigo, que militares de várias origens tiveram um papel nos eventos e poderiam ter ainda mais nos seus desdobramentos.

Descartemos os casos de participação individual de oficiais da ativa ou da reserva e discutamos as intervenções ou omissões de unidades do exército. O comandante da Guarda Presidencial, o comandante do QG do Exército em Brasília e o general do Comando Militar do Planalto tiveram suas digitais claramente impressas nos ataques aos palácios, na proteção aos golpistas e na tentativa de capitalizar os eventos. Por outro lado, todos os comandos das Três Forças ficaram em total silêncio, quando todo o país se manifestava condenando a intentona.

Na hora de responsabilizar estes personagens como vai agir o governo? Flávio Dino foi mais que prudente ao tratar deste ponto em suas entrevistas, dizendo que não pode prejulgar o que está ainda sendo investigado. Mas quem vai investigar os oficiais mencionados? Em princípio, a esdrúxula legislação brasileira indica que só militares podem julgar militares e, portanto, apenas o STM pode fazer isso. O STM foi rápido em montar um IPM (Inquérito Policial Militar) para julgar um obscuro oficial da reserva que participou da intentona e ofendeu a generalada pelo twitter. Mas, até agora, não há um IPM visando avaliar as responsabilidades do Exército nos eventos.

Lula pode agir política e administrativamente, cobrando este inquérito através do ministro da Defesa, mas não consigo imaginar o Múcio Monteiro apertando o comandante do Exército. E muito menos o comandante do Exército promovendo uma investigação sobre a participação de seus comandados no badernaço.

Está no poder de Lula demitir o comandante do exército, se ele se recusar a investigar o papel desta força na intentona. Muita gente na esquerda está pedindo que Lula aproveite a onda de indignação contra os eventos para fazer uma limpeza na oficialidade. Vi citações à demissão de 50 generais na Colômbia, mas não conheço a situação naquele país para poder fazer comparações. O que me parece uma sinuca de bico é o fato de que, quanto menos graduados, mais os oficiais se mostram militantes na extrema direita, bolsonaristas ou não. Promover coronéis ao generalato pode ser um tiro no pé. Ou na cabeça.

Como sair deste impasse? Aplicar a lei com todo o rigor possível ajudaria a colocar na defensiva o bolsonarismo dentro e fora dos quartéis, mas não desarma o golpismo implícito no comportamento da oficialidade. A meu ver, só não houve um golpe após a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas porque os comandos superiores foram contra e a coronelada ficou sem uma liderança unificadora para tomar a iniciativa. Lula vai ter que cobrar dos comandos das Forças Armadas uma despolitização ostensiva dos quartéis, proibindo manifestações políticas da oficialidade seja por qual forma for, redes sociais, ordens do dia, imprensa, conferências. Isto não impede as conspiratas discretas, por baixo dos panos das barracas, mas ajuda a reforçar o princípio da disciplina e da hierarquia.

Admito que não enfrentar a crise agora pode ser apenas o adiamento de uma outra tentativa de golpe para um momento mais favorável, mas não vejo como se poderia resolver esta situação no quadro presente.

Alguns companheiros de esquerda estão apostando no sucesso do governo para desarmar o golpismo. É confiar muito na capacidade de Lula fazer um supergoverno com um quadro de extremas dificuldades. E ignorar a ferocidade do sentimento da malta abduzida pela extrema direita, inclusive entre os militares. A meu ver somente um processo de mobilização popular em grande escala e de forma permanente pode deter a ameaça golpista até 2026. Não podemos cair na esparrela de ficarmos assistindo Lula fazer ou tentar fazer mágicas, enquanto torcemos por ele na arquibancada.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).

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