As ideias de Joe Biden

Dora Longo Bahia, Paraíso – Consolação (projeto para a Avenida Paulista), 2019 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (24 peças) - 29.7 x 21 cm cada
image_pdf

Por SIMON TISDALL*

Para muitos à esquerda, a perspectiva global de Biden não representa tanto um novo amanhecer quanto um retorno às políticas lideradas pelo establishment de Washington

De todo modo, Joe Biden já é velho nos caminhos do mundo. Como vice-presidente de Barack Obama, ele conheceu todos os grandes atores internacionais. Como presidente do comitê de relações exteriores do Senado, ele ajudou a dirigir a política externa dos Estados Unidos.

Depois de quatro anos de liderança maníaca de Donald Trump, os Democratas oferecem uma mão estável e confiável ao leme. O grande objetivo de Biden: uma gloriosa restauração americana, em casa e no exterior.

Mas sua longa experiência é uma faca de dois gumes. Para muitos à esquerda, a perspectiva global de Biden não representa tanto um novo amanhecer quanto um retorno às políticas lideradas pelo establishment de Washington da era pré-Trump.

Aqueles esperando por uma ação radical em assuntos urgentes, como a crise climática e a desigualdade global, ou no confrontamento de líderes autoritários ‘fortões’, podem acabar desapontados.

Caso ele vença, dizem os apoiadores de Biden, a América estará de volta no controle da direção do mundo. O funcionamento normal voltará. Os críticos de Biden dizem que ele não é mais do que a mera sombra de seu antigo chefe – um político cuidadoso e centrista como Obama, mas sem a sua visão.

De todo modo, quem Biden escolher para ocupar os cargos de secretário do estado, conselheiro de segurança nacional e secretário de defesa poderá ser crucial.

A pressão dos progressistas do partido Democrata, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren, empurrou Biden para a esquerda durante a campanha.

As crises gêmeas, sanitária e econômica, causadas pela pandemia do coronavírus também deslocou suas ideias. Ele agora fala em ‘reimaginar’ as relações da América com o resto do mundo.

Se suas perspectivas realmente mudaram, o tempo dirá. E quanto a toda sua experiência em política externa, é claro que o foco primário de Biden, se eleito, será doméstico.

Escrevendo à revista Foreign Affairs no começo deste ano, ele dispôs uma “política externa para a classe média” cuja prioridade principal era “permitir que os Americanos sejam bem-sucedidos na economia global”.

Fortalecendo os Estados Unidos internamente era um pré-requisito para a restauração da liderança global, ele disse. Suas prioridades eram claras.

A ideia de que a América pode e deve liderar internacionalmente, e que Trump se ‘abdicou’ dessa tarefa está, sobretudo, marcada a ferro em Biden, uma cria da guerra fria.

Essa assunção de soberania é hoje desafiada por aqueles que acreditam que a liderança Americana pós 1989 e pós 11 de setembro – e particularmente suas intervenções armadas em outros países –, não serviram nem aos Estados Unidos nem ao mundo. Eles apontam para o Iraque – uma guerra que Biden defendeu.

“Se você gostava da política norteamericana de segurança nacional antes de Trump estragar tudo, então Biden provavelmente é seu cara” escreveu o historiador Andrew Bacevich, ex-coronel do exército. “Instale-o no salão Oval e a cega perseguição da ‘dominância em nome do internacionalismo’ será retomada”.

Bacevich argumenta que o estabelecimento de políticas externas – decisões sobre sancionar Cuba ou o Irã, por exemplo – devem ser retiradas das mãos da elite política, e devem ser publicamente debatidas e democratizadas.

O approach de Biden é mais tido ao tipo ‘de cima para baixo’. Para ser justo, ele diz que reconstruirá alianças, cultivará o multilateralismo e sempre tentará a diplomacia em primeiro lugar.

Mas a preocupação de que seu grande projeto poderá vir a ser uma tragédia, anunciando um retorno ao arcaico e arbitrário excepcionalismo norte-americano, persiste.

Clima e Saúde

Trump abandonou o Acordo de Paris no ano passado; Biden prometeu retornar imediatamente, comprometendo os EUA com o atendimento das metas para o aquecimento global através do corte nas emissões de gás de efeito estufa. Em Julho, ele anunciou um plano de quatro anos e 2 trilhões de dólares para investir em uma vasta gama de soluções climáticas e em um esquema separado para descarbonizar o setor elétrico até 2035. Sobre a pandemia, Biden disse que os EUA novamente se juntarão à Organização Mundial da Saúde e retomarão seu financiamento. Ele propôs uma coalizão liderada pelos EUA para coordenar a procura por uma vacina e novos tratamentos para a Covid-19.

Democracia e Valores

Biden diz que o mundo está preso em uma batalha entre democracia e autoritarismo – e que os Estados Unidos devem estar na vanguarda. “Como uma nação, temos que provar ao mundo que os EUA estão prontos para liderar outra vez –  não apenas com o exemplo de nosso poder, mas também com o poder de nosso exemplo”, ele escreveu à Foreign Affairs. Ele diz que convocará uma “cúpula global da democracia”, no seu primeiro ano de mandato, “para renovar o espírito e o propósito partilhado pelas nações do mundo livre”. Ele jurou garantir que a presidência dos EUA será, outra vez, vista como uma defensora de eleições livres e abertas, da independência judiciária, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.

Reino Unido e Europa

Homem orgulhoso de suas raízes irlandesas, Biden se opõe a qualquer desfecho para o Brexit que comprometa o acordo Good Friday ou ameace a paz na Irlanda. Mesmo que tais preocupações sejam dissipadas, um rápido acordo de livre troca entre os EUA e o Reino Unido, como prometido por Trump, provavelmente se mostrará difícil de realizar. Dado o claro estilo ‘trumpiano’ de Boris Johnson em sua política populista de direita, espera-se que Biden apele a Berlin e a Paris, em vez de Londres, como parceiros principais nas questões europeias. Como Obama, ele é a favor de uma União Europeia forte e unida que faça causa comum com os EUA. Biden pode ser o coveiro que finalmente enterrará a ‘relação especial’.

China

Apesar de que Trump o acuse do contrário, Biden diz que será duro com a China, citando suas ameaças a Taiwan, suas práticas mercantis ‘injustas’, seu hábito de ‘roubar’ a tecnologia e a propriedade intelectual das empresas americanas. Para fazê-lo, ele propõe “construir uma frente unida de aliados dos EUA e parceiros para confrontar os comportamentos abusivoys e as violações de direitos humanos da China – ainda que procuremos cooperar em questões nas quais nossos interesses convergem, tais como a mudança climática, não-proliferação e segurança sanitária global”. Ele tem sido notavelmente crítico ao tratamento de Beijing dos muçulmanos uigures.

Proliferação nuclear

Os planos de Biden de reviver o sistema de tratados de armas nucleares com a Rússia degradou-se durante os anos Trump, começando com uma extensão do tratado New Start de 2010 negociado por Obama. Ele também diz que irá reabilitar o acordo nuclear com o Irã, de 2015, que Trump abandonou, se Teerã cometer-se outra vez à observação de seus termos. Sobre as armas nucleares da Coréia do Norte, ele tem pouco de novo a dizer. No entanto, a modernização do arsenal nuclear norteamericano, iniciada por Obama, parece estar prestes a continuar.

Conflitos

Biden diz que quer revigorar a OTAN e fortalecer as alianças na Ásia; que adotará uma dissuasiva posição face as manobras anti-ocidentais da Rússia; que tentará reviver o processo de paz entre Israel e Palestina, curto-circuitado por Trump; que acabará com o apoio norteamericano à guerra saudita no Iêmen; que acabará com a separação de famílias na fronteira com o México e reformará a imigração; e que suportará a ONU e o direito internacional. Assim como Trump, ele também promete acabar com o que chama de “guerras infinitas”. “Devemos trazer de volta a vasta maioria de nossas tropas das guerras no Afeganistão e no Oriente Médio e definir estritamente nossas missões para derrotar a al-Qaeda e a ISIS”, afirma ele. Outra guerra no Oriente Médio, na Síria, é raramente mencionada.

Diplomacia em primeiro lugar

“Diplomacia requer credibilidade e Trump arruinou a nossa”, diz Biden. “Na condução da política externa, a palavra de uma nação é seu bem mais valioso. Como presidente, eu elevarei a diplomacia ao papel de ferramenta principal da política externa dos Estados Unidos”.

*Simon Tisdall é colunista e editor assistente do jornal The Guardian.

Publicado originalmente no jornal The Guardian.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES