As pessoas negras nos livros didáticos e infantis

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Paulo Vinícius Baptista da Silva*

É necessário valorizar o eu-enunciador negro para medidas mais efetivas na mudança e atualização via discursos antirracistas

As formas de hierarquia dos discursos brasileiros operam nos livros didáticos e de literatura infantil, ao longo da história, com duas notáveis formas de hierarquia racial. A mais importante é o estabelecimento da pessoa branca como padrão de humanidade. A normatividade branca opera para uma naturalização da hegemonia branca em todas as situações de poder da sociedade. Como representante da espécie, pessoas brancas podem participar em qualquer espaço social e onde há acúmulo de bens materiais ou bens simbólicos, discursos que atuam para a supremacia branca quase unânime. As pessoas negras e indígenas mais que sub-representação a norma foi o silêncio, nenhuma ou pouca alternativa de participar das tramas. E quando furado o bloqueio da ausência, os espaços destinados a personagens negras e indígenas nestes discursos foram de subalternidade e estereotipia.

Raramente as hierarquias raciais se manifestam por formas diretas. Via de regra são estas duas características, hegemonia branca e estereotipa relativa a pessoas negras e indígenas que, juntas, atuaram para o discurso racializado dos livros didáticos e de literatura infantis brasileiros. Então, desde o início do século 20 não encontraremos nos livros passagens abertamente racistas que ofendem a negras e negros. É situando as pessoas negras e indígenas em situações subalternas, por exemplo, que esses discursos operam em prol do poder concentrado pelas pessoas brancas.

No entanto, numa resposta muita direta a questão colocada no início deste artigo, podemos afirmar que a representatividade negra em livros didáticos e infantis melhoraram nas duas últimas décadas, muito em função de políticas de valorização da população negra executadas pelas gestões Lula e Dilma. No momento atual estamos acompanhando retrocessos nas políticas, como o impacto das políticas de livros não são imediatos, temos alguns resultados de inércia das políticas adotadas nas gestões anteriores e para os anos próximos a projeção é de aumento de perdas.

Importante observar que estamos tratando de um universo muito amplo de publicações, que correspondem, em volume de venda e em valores, à metade de todo o mercado editorial brasileiro. Vamos então fazer uma discussão em separado, uma relativa a livros didáticos e outra relativa à literatura infantil.

 

Pessoas negras (e brancas) em livros didáticos brasileiros

O tema de pesquisa “negros em livros didáticos” entrou relativamente cedo para a agenda de pesquisa brasileira, com alguns estudos realizados nos anos 1950. Essas pesquisas identificaram que as formas de racismo explícito não eram identificadas nos livros, sendo que as hierarquias raciais se manifestavam por meio da ausência de personagens e temáticas negras e pela definição de espaços sociais subalternos (especialmente trabalho braçal) aos poucos para as raras pessoas negras que participavam nos livros. Após o lapso durante a ditadura militar, que proibia a discussão de desigualdades no geral e desigualdades raciais em particular, no final dos anos 1970, período da abertura, as pesquisas foram retomadas.

Uma pesquisa de Regina Pahim Pinto, da Fundação Carlos Chagas, fez comparação entre livros de língua portuguesa publicados dos anos 1941 a 19751. Em todos os mais de 30 anos analisados as diferenças foram tênues. Mais tarde outra pesquisa fez uma atualização comparando livros publicados entre 1975 e 20032. Os resultados mantiveram-se similares, com as duas bases do discurso racista, sub-representação de pessoas negras e estereotipia, mantendo-se. A análise em tempos diferentes, especialmente a comparação de livros publicados no final dos anos 1970 com os publicados no início dos anos 2000, identificou algumas mudanças classificadas como “epidérmicas”. No período inicial personagens brancas foram 92% (177), no último personagens brancas foram 94% (317) e personagens negras subiram de 15 (8% do período) para 19 (6%), ou seja, a proporção piorou porque tínhamos 11,8 personagens brancas para cada personagem negra e passamos a 16,7 personagens brancas para cada personagem negra em livros distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O número de personagens mulheres negras subiu de 2 no período inicial para 3 no final, mas a proporção se manteve exata, para cada personagem feminina negra as mesmas 26 personagens femininas brancas (52 e 78, respectivamente); personagem negra que estuda foi 1 negra para 36 brancas no período mais remoto e 1 negra para 52 no mais recente e não foi identificada nenhuma personagem negra que tinha algum tipo de laço familiar em livros da etapa inicial, passando para 3 personagens negras e 120 brancas (1 para cada 40) no livros mais recentes. Essas duas formas de desumanização são muito significativas para discutir os espaços sociais à pessoa negra construídos no imaginário, pois, além de ausente e ocupando lugares subalternos e trabalhos braçais, não participa dos contextos escolares e educativos e não tem família, não tem relação com os seus. Ou, de uma forma bastante direta, pessoas negras não estudam e não têm família, nos discursos dos livros didáticos publicados entre 1941 e 2003. Esses discursos alimentaram o imaginário brasileiro e construíram ativamente as formas estereotipadas de expectativas em relação a pessoas negras no país.

Importante aspecto é que esses livros foram comprados e distribuídos pelo maior programa de distribuição de livros do mundo, o PNLD3, política iniciada em 1985, na Nova República, que teve diversos aprimoramentos e para instituir as avaliações de livros nos anos 1990, bastante importantes para a melhoria de qualidade, usou de acordos com os movimentos negros e feministas. Detalhando para o leitor, nos finais dos anos 1980 identifica-se a necessidade de avaliar os livros e o MEC assina acordos de cooperação com movimentos negros e movimentos de mulheres. Avaliação publicada pelo MEC em 1994 traz críticas às ausências de pessoas negras e mulheres em livros didáticos de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências e “Estudos Sociais” para séries iniciais do ensino fundamental. Em 1996 iniciam as avaliações prévias à compra dos livros e critérios relativos à presença de pessoas negras e de mulheres são “esquecidos”.

Ficou definido um critério de exclusão, que livros que tinham discursos racistas ou sexistas deviam ser desclassificados logo no início da avaliação. Como as pesquisas já demonstravam, livros publicados desde a década de 1940 não trazem formas explícitas de racismo. O critério de exclusão foi e é inócuo: nenhum livro foi desclassificado por racismo ou sexismo desde iniciadas as avaliações prévias no PNLD, de 1996 a atualmente.

Na gestão Lula as equipes de coordenação e avaliação do PNLD mantiveram-se as mesmas do governo anterior, mas novidades tiveram impacto nas políticas. A aprovação da Lei 10.639/034 que define obrigatoriedade de ensino de História e Cultura afrobrasileiras e africanas. As políticas curriculares orientadas pelo Conselho Nacional de Educação (com representações dos movimentos negro e indígena a partir de 2003) e as aprovações das Diretrizes Curriculares Nacionais, especialmente as de Educação das Relações Étnico-Raciais (DCN-ERER)5 em 2004 (mas também as demais DCN que incorporaram as mesmas premissas). A criação e atuação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad e depois Secadi6), secretaria no MEC responsável pelas “políticas de diversidade” que passou a atuar nas diversas comissões, inclusive as dos livros.

As atuações dessas políticas trouxeram novidades nos editais do PNLD. As exigências como critério de exclusão passaram a citar a necessidade de cumprir a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a LDB7 e especificamente a Lei 10.639/03, o parecer 03/2004 e a Resolução 01/04 do CNE (DCN-ERER). Ficava então explícito para editoras e equipes de produção dos livros a necessidade de cumprir a legislação antirracista aprovada no período. O maior impacto, no entanto, conforme indicam as pesquisas, foi a inclusão de critérios positivos ao invés de simplesmente não ter passagens racistas. No edital do PNLD 2008 incorporam-se a exigência que os livros devem: promover positivamente a imagem de pessoas negras e indígenas, da cultural afrobrasileira e dos povos indígenas, abordar as relações étnico-raciais e dos povos indígenas, abordar a temática de gênero e promover positivamente a imagem da mulher. Essas indicações de abordagem positiva para pessoas negras, indígenas e mulheres foram incorporadas também em fichas de avaliação de algumas disciplinas e tiveram impacto nos discursos dos livros nos anos seguintes.

Por exemplo, em livros didáticos de Ciências dos PNLD de 2008 e 2011 ter imagens de corpo negro que ilustram temas específicos de conteúdo relativo ao corpo humano, mulher negra representando cientistas em introdução de livro, imagens de personagens negras em família, de médicos e cientistas negras e negros8. Em livros de Geografia foram mais comuns imagens de personagens negras com relações familiares saudáveis e não se observou a pessoa negra representada como escrava, nem a folclorização da pessoa negra brasileira9. A mudança em relação à escravização nos livros didáticos de História foi captada em pesquisa que percebeu diversidade muito maior de espaços de inserção da população negra, além da escravidão, voltados para espaço escolar, lazer e trabalho10 e uma tese foi intitulada, com o termo “novas iconografias” para acentuar a presença de imagens sobre África e Africanidades além das imagens canônicas da escravidão11.  Outra tese, estudando livros didáticos de Matemática, identificou a presença de abordagem da participação da África como lugar de produção de conhecimento e a presença de pessoas negras em situações de família, embora ainda bastante inferior à de pessoas brancas, 1 personagem negra com relação familiar para cada 3,5 personagens brancas (muito abaixo das anteriores, mas ainda bastante alto)12.

A escuta de estudantes de Ensino Médio captou percepção de novas imagens em livros didáticos de História de pessoas negras para além da  escravidão e inferiorização (Sidnei SOUZA, 2021) e a escuta de estudantes de 9º ano do Ensino Fundamental sobre livros didáticos de História e de Língua Portuguesa captou diversas imagens positivas de negras e negros, relacionadas com a implementação da Lei 10.639/03 que passaram a conviver em paralelo com a ainda normatividade branca e discursos que continuam a prender a pessoas negras em estereótipos.

Sobre o PNLD, as mudanças no edital do PNLD 2022, publicado em 2021, expressam a perspectiva do governo federal na gestão iniciada em 2019. O critério de exclusão de obras que expressam racismo e sexismo foram retirados, ocorreu um debate público sobre isso, mas este critério é inócuo e não interfere nas obras. Os itens relativos à valorização de pessoas negras, indígenas e mulheres foram substituídos por outros mais generalizantes (respeitar todos os brasileiros; promover positivamente as imagens dos brasileiros), uma velha estratégia dos movimentos conversadores de usar perspectivas generalistas de forma a esvaziar as demandas de movimentos sociais identitários. Esses critérios teriam, sim, impacto negativo ao direcionarem para as editoras e suas complexas equipes de produção dos livros que os generalismos e as normatividades branca, masculina, cis-hétero. A somar os interesses econômicos de grupos empresariais nos programas do livro, inclusive de empresários ligados ao MEC e governo federal. De outro lado, verifica-se que as mudanças em programas com esta complexidade são processadas a média prazo, o governo que iniciou em 2019 somente alterou edital de 2021 e os impactos nos livros demorarão ainda alguns anos para serem perceptíveis.

 

Pessoas negras (e brancas) na Literatura Infantil brasileira

Em relação às políticas de distribuição de livros e aos processos editoriais, as distinções são bastante acentuadas entre livros de literatura infantil e livros didáticos. Em relação aos lugares sociais que estabelecem para pessoas negras e brancas as similaridades são muitas.

As personagens negras na literatura infanto-juvenil publicada no Brasil até a década de 1920 praticamente não existiam. Na década posterior as personagens negras passaram a ser mais frequentes, mas construídos com personagens apresentando estereotipia e simplificação; associadas a simplicidade, primitivismo, ignorância, meio rural e passado, com características corporais animalizadas13. Uma personagem típica que apresenta tais características é a Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, que figura como protótipo da subserviência, da falta de valor à sua cultura, sendo associada à feiúra, simplicidade e primitivismo, ocupando um espaço reservado de subalternidade. Ao longo da primeira metade do século 20 a produção que circulava era principalmente de livros religiosos, especialmente passagens bíblicas para crianças (grande parte das vezes com ilustrações das personagens com aparência europeia em lugar de aspectos de pessoas do Oriente Médio antigo).

Em pesquisa sobre modelos culturais oferecidos à infância14 na literatura infanto-juvenil publicada entre 1955 e 1975 (universo dos livros depositados na Biblioteca Nacional), observou-se a normatividade branca e a sub-representação de personagens negras em textos e ilustrações; estereotipia na ilustração de personagens negras; associação de personagens negras com profissões socialmente desvalorizadas; menor elaboração textual de personagens negras; associação da cor negra com maldade, tragédia, sujeira; associação do ser negro com castigo e com feiúra; associação com personagens antropomorfizados (não-humanos).

No período entre 1975 e 1995 essas características gerais se mantiveram, com um pequeno acréscimo de algumas personagens negras com certo destaque nas tramas e mesmo com papel de protagonistas, mas sem mudança nas tendências gerais15. A apresentação de personagens negras quase sempre na condição de escravos ou relacionados ao passado escravista tende a perpetuar tal característica. A mulher negra continuou a ser retratada, quase exclusivamente, como empregada doméstica. Outra análise dos anos 1990 também aponta para a invisibilização de personagens negras e o tratamento estereotipado16. Além da desproporção, algumas das obras também trazem outras formas de hierarquização entre personagens brancas e negras. Na literatura infantil publicada entre 1979 e 1989 observou que personagens negras eram tecidas de forma inferiorizada, com associação a pobreza, desamparo e ausência de família, sujeição à violência e enaltecidos por atributos físicos com vistas à saudar a suposta democracia racial brasileira17.

Em pesquisas sobre acervos comprados e distribuídos pelo PNBE em 1999, 2005 e 2008 os resultados foram bastante similares aos de pesquisa anterior. A primeira pesquisa acentua como a identidade racial branca é apresentada como não alvo do processo de racialização, ao passo que as representações de negritude operam para promover um clareamento, promover uma estética branca a personagens negras18. Em outra pesquisa, em análise de livros distribuídos em 2005 foram identificadas 2077 personagens brancas e 448 negras, 6,9 personagens brancas para cada personagem negra, mantendo-se a tendência de sub-representação, com maior número de indicadores de complexidade mantendo personagens negras associadas à subalternidade, ao passo que identificou melhoras no aumento relativo de personagens negras narradoras e com relações familiares. Em outra amostra, desta vez do PNBE de 2008, a proporção foi de 6,8 personagens brancas para cada personagem negra (preta ou parda) identificada nos textos e a pesquisa afirma que “o cotidiano e a experiência da criança negra são alijados do ato de criação das personagens e do enredo dessa literatura19. Estudo mais recente analisou um conjunto de 93 livros de literatura infantil disponíveis em acervos de instituições de educação infantil, coleta de dados em 2016, e os resultado repetiram-se, com hegemonia e maior complexidade de personagens brancas nas capas, ilustrações e textos, nas quais foram observadas 7,0 personagens brancas para cada personagem negra20.  Outra pesquisa mapeou 77 livros de imagem distribuídos pelo PNBE entre 2008 e 2014, identificando personagens negras em 13 títulos, dos quais 5 em que estas não têm participação ativa e em somente 8 as personagens negras participam da narrativa, sendo que alguns destes apresentam estereotipias na construção destas personagens21.

O conjunto de dados disponíveis sobre os diferentes acervos ao longo de décadas, 1955 a 2016, revela mudanças relativamente tênues e manutenção dos aspectos mais marcantes: tomados em conjunto os livros apresentam a pessoas brancas como norma de humanidade, ao passo que pessoas negras têm muito menor participação em número e ainda mantêm-se como personagens com menores alternativas de existência, com menor complexidade, que pessoas brancas.

As pesquisas sobre o impacto social destes discursos são ainda limitadas mas é importante colocar à luz uma pesquisa que buscou captar a leitura de alunas e alunos de ensino fundamental. Crianças de quarta ano do ensino fundamental que entraram em contato com literatura infantil que apresentavam diferentes personagens negras em contextos diversos e com traços valorizados, mas sua representação sobre as personagens foi muito estereotipada, revelaram que nesta idade as representações estereotipadas que circulam socialmente estão já bastante internalizadas e o contato com um livro em específico teve pouco impacto na leitura hierarquizada racialmente pelas crianças22.

A produção de literatura infantil brasileira a partir dos anos 1970 diversificou temas, vozes enunciadoras, formas de produção, autoria. No entanto as mudanças no que se refere, por exemplo, a diversificação de papeis e personagens femininas, pouco atingiu a temática e as personagens negras. Discutindo a criação de personagens negras por autoras brancas, revelou-se como personagens criadas por autoras brancas consagradas têm traços emancipatórias no eixo de gênero, ancoram-se em padrões hierárquicos e estigmatizantes em suas construções de personagens femininas negras23.

Neste período a partir dos anos de 1970 surgem autores de literatura infantil e juvenil sujeitos de enunciação que se afirmam e se querem pessoas negras, com temática, linguagem e busca de público leitor, observo também movimentações importantes. Joel Rufino dos Santos24 publica obras com esta perspectiva nos anos 1970; Geni Guimarães25 nos anos 1980; autoras e autores se tornaram referência, como Julio Emílio Braz26, Georgina Martins, Rogério Andrade27, Heloisa Pires Lima28. Um movimento que inicialmente circulou “às margens” trouxe precursores de um maremoto que se amplia e acentua29. Muito impulsionados pela Lei 10.639/03, ganham corpo e, cada vez mais, reverberam e se expressam as vozes africanas da diáspora que nos compõem, num conjunto de obras que se multiplica ano a ano.

No que se refere ao PNBE, mesmo com esta ampliação da produção de literatura temática africana e afro-brasileira, a incorporação de mecanismos de valorização negra tiveram processo distinto no que se refere à crítica às hierarquias raciais repercutiram de forma muito menos expressiva que no PNLD. Os editais do PNBE e em especial os critérios de avaliação das obras não assumiram as demandas dos movimentos sociais de valorização de personagens negras, indígenas, mulheres ou demais grupos periféricos. O controle da avaliação por grupos de pesquisa que vencia os editais não permitiu que fichas e critérios de avaliação cobrassem dos acervos diversidade. A análise dos editais, dos mecanismos de avaliação, de entrevistas de gestoras do processo de avaliação das obras, deu sustentação à afirmação que o PNBE atuava de forma a manter e difundir hierarquias raciais30.

No ano de 2016 teve o último edital do PNBE. A partir de 2018 passou a integrar o PNLD como PNBE literário. O momento para este programa do livro, no que se refere às relações étnico-raciais, é de contradição e expectativa. De um lado, ocorre um desmonte de estruturas da educação pública pelo governo federal, no que se refere aos programas do livro com interesses corporativos e políticos passando a ter maior influência e os editais públicos para todos os processos e decisões passando a ter menos peso. De outro ao ser incorporado no PNLD os mecanismos de valorização de pessoas negras, indígenas e mulheres passam a orientar a editoras. Como os resultados são a médio prazo avaliações posteriores irão responder e os caminhos das políticas do livro dependem das próximas gestões do MEC.

Quando perguntamos sobre pessoas negras em livros dirigidos a infância, livros didáticos e literatura infantil a resposta é por um lado da complexidade por outra de uma coincidência que, de tanta proximidade entre livros didáticos e literatura infantil, torna-se desconcertante. As formas de estabelecer hierarquias raciais são as mesmas, muito arraigadas e operando com poucas mudanças no longo prazo, desde as décadas de 1940 do século passado em que as pesquisas passaram a acompanhar estes discursos.

Políticas de valorização da população negra e indígena das duas últimas décadas apresentam alguns resultados, mas ainda iniciais e muito parciais. Provável olhando para as obras que são voltadas à valorização do eu-enunciador negro tenhamos uma medida de mudança e atualização via discursos antirracistas. No entanto, quando olhamos conjuntos de obras, bibliotecas, acervos, as mudanças são ainda epidérmicas e este é ponto nevrálgico para o racismo estrutural e estruturante na sociedade brasileira, visto a raça ser uma construção social.

*Paulo Vinícius Baptista da Silva é professor do Programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Publicado originalmente na revista Teoria e debate.

 

Notas


  1. Ver dissertação de Regina Paim PINTO. O Livro Didático e a Democratização da escola. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade de São Paulo/USP, 1981. https://pos.fflch.usp.br/node/40777 e síntese de resultados no artigo A representação do negro em livros didáticos de leitura. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63, p. 88-92, nov. 1987. Disponível em http://publicacoes.fcc.org.br//index.php/cp/article/view/1280/1281 acesso em 11/11/2021.
  2. Detalhes da tese de Paulo Vinicius Baptista da SILVA. Racismo em Livros Didáticos. BH, Autêntica, 2008 e Racismo discursivo e avaliações do Programa Nacional de Livros Didáticos. Intermeio (UFMS), v. 24, p. 6-29, 2007. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/intm/article/view/2553/1790 acesso em 11/11/2021.
  3. PNLD- Programa Nacional do Livro e do Material Didático, coordenado pelo Ministério da Educação (MEC). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=12391:pnld acesso em 11/11/2021.
  4. Texto da Lei 10.639/03 publicado no Diário Oficial da União – Sessão 1 – 10/ 01/ 2003, pg. 1. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/418044/pg-1-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-10-01-2003 acesso em 11/11/2021.
  5. Acesso ao texto integral das Diretrizes Curriculares Nacionais, especialmente as de Educação das Relações Étnico-Raciais (DCN-ERER). Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/diversas/temas_interdisciplinares/diretrizes_curriculares_nacionais_para_a_educacao_das_relacoes_etnico_raciais_e_para_o_ensino_de_historia_e_cultura_afro_brasileira_e_africana.pdf acesso em 11/11/2021.
  6. SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão.
  7. LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
  8. Ana Lucia MATHIAS. Relações raciais em livros didáticos de ciências. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPR:, 2011. Disponível em: https://hdl.handle.net/1884/27890 Acesso em 11/11/2021.
  9. Wellington Oliveira dos SANTOS. Relações raciais, Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e livros didáticos de geografia. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPR, 2012. Disponível em: https://hdl.handle.net/1884/27543 acesso em 11/11/2021. Acesso em 11/11/2021.
  10. Isabella Sacramento da SILVA, Isabella Sacramento da. Rememoração de estudantes negros(as) do ensino fundamental sobre personagens negros em livros didáticos. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPR 2019. Disponível em: https://hdl.handle.net/1884/66028 Acesso em 11/11/2021.
  11. Sidnei Marinho de SOUZA, Sidnei Marinho de. Novas iconografias no livro didático de História: análise e recepção do racismo e antirracismo imagético por jovens do ensino médio. Tese (Doutorado em Educação) UFMG, 2021. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/38155 Acesso em 11/11/2021.
  12. Maysa Ferreira da SILVA. O romper do silêncio discriminatório: O manuseio do livro didático de matemática na perspectiva da Educação para as Relações Étnico-Raciais. Tese (Doutorado em Educação), UFPR, 2020. Disponível em: https://hdl.handle.net/1884/69750 Acesso em 11/11/2021.
  13. Ver pesquisa de Maria Cristina Soares GOUVEA Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v.31, n.1, jan./abr. 2005. Disponível em http://educa.fcc.org.br/pdf/ep/v31n01/v31n01a06.pdf Acesso em 11/11/2021. Também em O mundo da criança: a construção do infantil na literatura brasileira. Bragança: São Francisco, 2004.
  14. Análise da escritora e pesquisadora Heloísa Pires LIMA (1999, p. 102-103) em livro produzido pelo MEC e organizado por Kabengele MUNANGA. Superando o racismo na escola. Brasília: MEC 1999. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf acesso em 09/11/2021.
  15. Realizada pela Fundação Carlos Chagas e coordenada por Fulvia Rosemberg principais resultados publicados em livro da autora, Literatura Infantil e Ideologia. SP: Global, 1984.
  16. Análise da escritora e pesquisadora Heloísa Pires LIMA (1999, p. 102-103) em livro produzido pelo MEC e organizado por Kabengele MUNANGA. Superando o racismo na escola. Brasília: MEC 1999. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/racismo_escola.pdf acesso em 09/11/2021.
  17. Estudo de Maria Anória de Jesus OLIVEIRA. Negros personagens nas narrativas infanto-juvenis brasileiras: 1979-1989. Dissertação (Mestrado em Educação). Salvador: UNEB, 2003.
  18. Pesquisa de Gládis Elise Pereira da Silva KAERCHER. O mundo na caixa: gênero e raça no Programa Nacional de Biblioteca da Escola – 1999. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
  19. Pág.141 da pesquisa de Veridiane Cintia de Souza OLIVEIRA. Educação das Relações Étnico-Raciais e estratégias ideológicas no acervo do PBNE 2008 para Educação Infantil. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPR, 2011. Disponível em: http://www.ppge.ufpr.br/teses/M11_Verediane%20Cintia%20de%20Souza%20Oliveira.pdf acesso em 12/11/2021.
  20. Dados da tese de Rita de Cássia Moser ALCARAZ. Políticas de leitura para a infância no município de Curitiba: o livro como direito à promoção de igualdade racial. Tese (Doutorado em Educação) UFPR, 2018. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/58584 acesso em 12/11/2021.
  21. Estudo de Maria Laura SPLENGER e Eliane DEBUS. Personagens negras nos livros de imagens do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) para a Educação Infantil. ROTEIRO, v. 44, p. 1-20, 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/3519/351964668005/html/.
  22. Dados e análise de Débora Cristina de ARAUJO, Relações raciais, discurso e literatura infanto-juvenil. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPR, 2010. Disponível em http://www.ppge.ufpr.br/teses/M10_araujo.pdf acesso em 12/11/2021.
  23. Tese e livro de Edite PISA. O caminho das águas. Estereótipos de personagens negras por escritoras brancas. SP: EDUSP, 1998.
  24. http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/288-joel-rufino-dos-santos
  25. http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/267-geni-guimaraes
  26. http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/1175-julio-emilio-braz
  27. http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/405-rogerio-andrade-barbosa
  28. http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/272-helosa-pires-lima
  29. A este respeito ver livro e artigos de Eliane DEBUS. A temática da cultura Africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens. SP: Cortez, 2017.
  30. Sobre o PNBE ver a tese de Débora Cristina de ARAUJO. Literatura Infanto-Juvenil e Política Educacional: estratégias de racialização no PNBE. Tese (Doutorado em Educação) UFPR, 2015. Disponível em: http://www.ppge.ufpr.br/teses%20d2015/d2015_Debora%20Cristina%20de%20Araujo.pdf acesso em 12/11/2021. Ver também capítulo da autora: Análise de discursos ideológicos: a atuação do Enfoque Tríplice de Thompson. In: Paulo SILVA; Débora ARAUJO; Wellington SANTOS (Orgs.). Racismo, discurso e educação: estratégias ideológicas. Curitiba: NEAB, 2018, p. 39-77. Disponível em: http://www.sipad.ufpr.br/portal/livros/
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