A transparência

Imagem: Kazimir Malevich
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Incomodei

Moça, eu era uma lagartixa.
Eu era aquela que, apesar de útil —
estão todos de acordo nisso —
não merecia compaixão nem elogio.
O que fazia de bom só me serviu
como epitáfio: “Ela comia tudo
que não prestava para nós”. Nem por isso
fui salva da morte antecipada.
Sou mais repulsiva do que os que eliminei.

Minha transparência
incomoda, assim como quando arrasto
a barriguinha cheia de sujeira.
Me acostumei ao ricto de nojo
na cara da família toda quando minha
cauda amarela corria pelos azulejos.
Quis enfatizar a cor, amarela, porque esta
é uma cor infeliz no meu caso: “A merda
está amarela como a de uma lagartixa”.

Por conhecimento mais que divulgado
ninguém ignora que este rabo aqui
podia ser deixado por aí.
Um rabo assim é uma criancinha incerta
do amor dos seus pais. Toda hora teme
ser abandonada, pressente que são seres
distintos entre si, ela e seus pais;
pressente que é um fardo a ser carregado.

Meus olhos são grandes e um pouco verdes,
bem lateralizados, como os de um feto — inspiro
medo porque devo parecer uma forma precoce.
Tudo que é precoce teria saltado para fora
de alguma ordem. Nessa ordem é que se tem
um acabamento natural.
Só depois se é liberado para um passeio
porque aí ninguém que o vir terá medo.

 

Maçaneta

Quantas vezes ficam felizes
quando sou girada,
outras aterrorizados; pressinto o modo
como serei tocada pelos passos:
pesados, céleres ou ressabiados.
Passos fininhos indicam que serei
girada com todo o cuidado,
como se me subornassem
ou me tapassem a boca.
Manuseada com estrondo
transmito indelicadeza, confiança, assalto
ou um desejo despudorado.

Às vezes prego uma peça aos muito ansiosos
e caio na sua mão.
Isso é algo que a uns faz rir,
mas tem quem fique perturbado:
angulada em 90 graus sinistros, a maçaneta
que solta é para ele como um golpe
da vida, do destino,
como se fosse cobra
a casca abandonada.
Não é, não —
é só a risada sardônica que caiu
da minha boca.

 

Associações

A ilustração de uma Bíblia para crianças trazia Jonas
…………………………………………[segurando um lampião dentro da
…………………………………………[barriga da primeira baleia célebre
…………………………………………[de que eu ouvia falar.
Era um anacronismo
num tempo de precária iluminação,
e também um perigo
para o organismo que o hospedava;
mas a luz era aconchegante
e o amarelo se esparramava
pelo vermelho-róseo da galeria,
o pé-direito muito alto,
o estofamento de carne cetácea.

Três dias e três noites —
assim foi determinado.
Melhor que ficar dentro de um barco
era ficar dentro de uma baleia.
Mansa e dotada de outras destrezas,
essa velha companheira sabe lidar
com os acessos do temperamento marítimo.
Ressalte-se que possui a compleição mais sólida —
difícil imaginar uma goteira ou fenda
nessa espessura;
ali capturado, Jonas desfrutava de deliciosa
tepidez calmante, a mais próxima que pode haver
à de uma placenta. Espesso era ainda o silêncio
de fazer inveja a um asceta.

Pensei comigo que devia ser bom
dormir ali, pensei e logo me persignei —
onde já se viu querer ficar trancado
no interior do inferno,
no ventre do inimigo?
(Não, Jonas, aqui não é o ventre de tua mãe.)
Quem gostaria de ficar, como José,
dentro de um poço?
Jonas devia sair,
que fosse logo, que não esquecesse
de seu propósito no mundo, como —
e aí me acudia outra mitologia —
o herói que perde o anel
recebido em sinal do amor obstinado.
Durante parte do conto, a gente
praticamente só esperava que o belo moço
reencontrasse o fio de si mesmo e voltasse para casa
com a ansiedade fresca de quem começa a viver.

Que medo então eu tinha de um dia me esquecer
por longo tempo de alguém por quem sentisse
a ternura mais dolorosa,
de achá-lo sob a neve que eu não conhecia
e imaginava muito mais gélida,
de achá-lo caído na rua por infarto
como ao meu avô eu mesma vi,
na infância mais remota,
sob uma chuva fria e desencantada;
de encontrá-lo velho e ele mesmo de tudo
esquecido,
de mesmo não encontrá-lo,
de chegar miseravelmente tarde.

 

Borba Gato

O que eu sabia de ti? O que eu ouvia?
“Você vai passar perto do Borba Gato e aí
vire à direita”, “É, pois é, moro perto
daquele trambolho.”
Os mais críticos ou os de bom gosto
ou os que fossem um e outro
sempre expressavam isso a teu respeito,
eu não tinha dúvidas, e as fotos tampouco
tinham força pra me persuadir do contrário.

Mas de perto, de perto mesmo
nunca te vi mais gordo, mais alto,
menos ou mais feio que o que me diziam.
Entrevia teu vulto de longe, bem longe.
Talvez eu tivesse evitado mais de uma vez
margear um monumento anódino na avenida
inóspita e absurda — é que me melancolizam tanto
os totens de vidro espelhado…
Era por estes que eu desviava —
por mim não cheiravas nem fedias
em termos de paisagem, bem se diga.
(Exijo tão pouco nesse assunto e nesta cidade,
e mesmo assim ninguém liga.)

Em geral as câmeras te pegaram em contra-plongée,
e, não importa o quanto
se desconhecesse tua altura exata,
com isso naturalmente crescias —
pela primeira vez estavas monumental —,
crescias muito além daquele matinho triste e flagelado
no canteiro da avenida no qual foram te plantar.
Um rabo grosso de fumaça —
o fogo tinha sido atiçado por trás
como às vezes fazem aos gatos —
se expandia para os lados
até virar um halo;
teus pés pisavam em cinzas
mas tu não tombavas.

Via-se que esquentavas como um foguete
prestes a decolar do pedestal
— mas quanto adentrarias
no ar rarefeito? E conseguirias então planar
em trajetória contínua e estável?
Ou a mais pétrea das leis da natureza
logo te subjugaria?
Qual o teu fôlego, foguete?
Como eu o quisera grande,
logo periférico, depois intergaláctico.

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).

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