Bell Hooks (1952-2021)

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Por MARILÉA DE ALMEIDA*

Considerações sobre o pensamento e a obra da intelectual norte americana

Sem sombra de dúvida, Bell Hooks foi uma das mais importantes intelectuais da atualidade. Desde a década de 1980 até 2021, ela publicou mais de 30 livros em que, por meio de uma linguagem acessível, expressa um pensamento complexo, avesso às formulações simplistas. Uma produção que denuncia, sem subterfúgios, as atávicas conexões entre imperialismo econômico, supremacia branca e patriarcado. Suas obras são referências para adensarmos nossa compreensão de como as dinâmicas de raça, classe e gênero se exprimem nas práticas culturais, acadêmicas, subjetivas e cotidianas.

Diante de uma pensadora tão singular, perguntamos: de que forma os temas de suas análises e seu estilo narrativo foram sendo construídos em sua trajetória intelectual? Angulada por essa questão, neste verbete descrevo de forma panorâmica a vida e a obra de Bell Hooks, especialmente no que tange à sua trajetória intelectual e aos processos pelos quais ela se torna Bell Hooks. Para tanto, o verbete está dividido em três partes. A primeira percorre aspectos biográficos, focalizando sua relação com o conhecimento, espaço escolar e o ambiente universitário. A segunda articula a obra de Bell Hooks com a emergência, nas décadas de 1970 e 1980, dos feminismos negros. A terceira parte descreve temas e abordagens que são recorrentes em seus livros como crítica à práxis pedagógica, crítica à produção cultural, reflexões sobre espiritualidade, amor e autoestima e as dinâmicas de raça, classe e gênero.

 

Trajetória escolar e acadêmica

Gloria Jean Watkins é o nome de batismo de Bell Hooks. Ela nasceu em 1952, em Hopkinsville, uma pequena cidade segregada do estado de Kentucky, no sul dos Estados Unidos. Ela cresceu em uma família de classe trabalhadora: seu pai era zelador e sua mãe dona de casa. Além dos pais, ela foi criada com cinco irmãs e um irmão. A escolha do pseudônimo Bell Hooks é uma homenagem à sua bisavó Bell Blair Hooks, conhecida dentro da família pela sua coragem de dizer a verdade. Uma mulher de língua afiada, sem papas na língua. Quando Bell Hooks começa escrever, ela adota o nome da bisavó como uma forma de reivindicar esse legado, já que desde a infância Hooks também gostava de expressar suas ideias.

Nascer mulher negra no sul dos Estados Unidos, na década de 1950, em um contexto de segregação racial e em uma família de domínio patriarcal, significa vir ao mundo em um tempo e um espaço, nos quais as oportunidades de existência para mulheres negras estavam limitadas ao trabalho doméstico (seja dentro ou fora de casa), casamento e filhos. Em termos profissionais, garotas que gostavam de ler e estudar, como Hooks,  poderiam ser professoras. Em Wounds of Paisson: a writting life (1997), livro de memórias que narra sua relação amorosa com a escrita, Hooks conta que ser professora naquele contexto significava optar por uma vida celibatária. O magistério era visto como algo quase sacerdotal.  A mulher que optava pela carreira de professora renunciava à vida amorosa e à vida sexual.  De um modo geral, as meninas não eram estimuladas a desenvolver o intelecto, já que, conforme afirmava o pai de Bell Hooks, “os homens não gostam de mulheres que falam o que pensam” (HOOKS,1997). Quando criança, por ser uma menina que expressava seus pensamentos, Hooks costumava ser punida no ambiente familiar.

“Para construir a minha voz eu tinha que falar – e falar foi o que fiz – lançando-me para dentro e para fora de conversas e diálogos de gente grande, respondendo a perguntas que não eram dirigidas a mim, fazendo perguntas sem-fim, discursando. Nem preciso dizer que as punições para esses atos discursivos eram infinitas. Elas tinham o propósito de silenciar – a criança, mais particularmente a menina. Se eu fosse um menino, eles teriam me encorajado a falar, acreditando que assim, algum dia, eu poderia ser chamado para pregar”. (HOOKS, 2019a, p. 32)

Se no espaço familiar seu intelecto era observado com desconfiança e muitas vezes era alvo de punições. Foi na escola segregada, onde estudou durante a infância, que Bell Hooks encontrou professoras negras que valorizavam sua inteligência. Ela conta que para aquelas professoras, a boa educação não estava ligada à mera transmissão de conteúdos e a preparação dos estudantes para o exercício de uma profissão (HOOKS, 2020, p.23). Ao contrário, Hooks experimentou uma formação que incentivava simultaneamente o intelecto e o compromisso com a justiça social, especialmente a igualdade racial.

“Naquela época, ir à escola era pura alegria. Eu adorava ser aluna. Adorava aprender. A escola era o lugar do êxtase – do prazer e do perigo. Ser transformada por ideias novas era puro prazer” (HOOKS, 2013, p.11)

A partir da adolescência a relação de Bell Hooks com a escola transforma-se. A escola deixa de ser um lugar onde ela se sente potente. Isso ocorre quando ela  passa a frequentar uma escola dessegregada. O que isso significa?

Nos Estados Unidos, entre 1876 e 1965, nos estados do Sul existiam as chamadas “Jim Crow”, leis que oficializaram o sistema de segregação racial,  separando negros e brancos nos assentos de trens, nos bebedouros, nas escolas. Era chamada a doutrina do separado, porém “igual”. Tudo isso servia para manter as pessoas negras em posições subordinadas, negando-lhes acesso a níveis razoáveis de educação e emprego. O movimento pelos direitos civis, protagonizado pelo movimento negro estadunidense, teve início nos anos de 1950 e sua luta colocou fim nas legislações segregacionistas, o que levou à implantação de uma série de ações afirmativas para população negra estadunidense (CASHMORE, 2000, p.505-508).

Nesse contexto de transformações, Bell Hooks frequenta o High School, dessegregado. O período é narrado por ela como um período de profunda tristeza, já que os estudantes negros sofriam um racismo sistêmico dentro do espaço escolar.

“Durante a profunda tristeza dos meus anos de adolescente, era frequente eu me ver em uma aula de História, no fim da tarde, chorando silenciosamente. Ao meu redor, estudantes e professor fingiam não notar. O ensino médio havia sido dessegregado recentemente. Para alcançar esse objetivo, estudantes negros eram forçados a se levantar mais cedo que o de costume e ir de ônibus para escola “branca”, onde seríamos amontoados no ginásio e obrigados a esperar que os estudantes brancos chegassem e entrassem na escola primeiro. Pela lógica da supremacia branca, era assim que se mantinha a paz. […] Não era de se espantar, então, que, em uma sala de aula só de pessoas brancas, com apenas dois estudantes negros, ninguém quisesse reconhecer meus sentimentos, meu sofrimento” (HOOKS, 2020, p. 128-129).

A escola  transformou-se  no lugar que minava a sua autoestima intelectual.

Em 1970, com dezoito anos de idade, Hooks ingressa na Universidade de Stanford, na Califórnia, para estudar Língua inglesa. No espaço universitário, ela também encontra um ambiente hostil para pessoas negras, especialmente para as mulheres, conforme detalha:

“Precisamos de mais relatos autobiográficos da primeira geração de estudantes negros que ingressaram em escolas e universidades predominante brancas. Imagine como é ter aulas com um professor que não acredita que você é totalmente humano. Imagine como é ter aulas com professores que acreditam pertencer a uma raça superior e sentem que não deveriam ter de se rebaixar dando aulas para estudantes que eles consideram incapazes de aprender. Em geral, sabíamos quais professores brancos nos odiavam e evitávamos suas aulas, a menos que elas fossem absolutamente imprescindíveis. Como a maioria de nós chegou à faculdade na esteira de uma poderosa luta antirracista por direitos civis, sabíamos que encontraríamos aliados nessa luta – e, de fato, encontramos. Notadamente, o machismo confesso de meus professores era mais duro que seu racismo velado”  (Hooks, 2020, p. 24).

No auge do movimento feminista, em 1973, Bell Hooks finaliza a graduação e, em 1976, conclui o mestrado em inglês na Universidade de Wisconsin-Madison. Em 1983, após anos lecionando e escrevendo, finda seu doutorado em Literatura  pela Universidade da Califórnia, com uma tese sobre Toni Morrison intitulada Keeping a hold on life: reading Toni Morrison´s fiction.  Como professora universitária, ela atuou em várias instituições: Universidade do Sul da Califórnia, Universidade da Califórnia, Yale, Orbelim College, City College de Nova York, entre outras.

Entre os anos 1970 e 1980, assim como outras intelectuais e ativistas negras dos Estados Unidos e da América Latina, Hooks presencia, dentro do movimento negro, dominado pelos homens, a negação do machismo, e no movimento feminista, dominado pelas mulheres brancas, a negação do racismo. Essa dupla negação também se expressava nas produções acadêmicas. A indignação sobre o silenciamento das experiências de mulheres negras foi central para que ela definisse seus interesses de  pesquisa.

A esse respeito, em 1981, é exemplar a publicação do seu primeiro livro: E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismo, cuja  pesquisa e escrita foram realizadas durante a graduação. O título do livro recupera a pergunta proferida por Sojourner Truth – abolicionista e oradora – que, no século XIX, defendeu que a todas as mulheres, incluindo as negras, fosse dado o direito de voto, já que na época a discussão incluía apenas as mulheres brancas e os homens negros.  Desse modo, Hooks atualiza o questionamento de Truth para tornar visível em seu trabalho as experiências das mulheres negras durante escravidão, a desvalorização da mulheridade negra, o sexismo do homem negro, o racismo dentro do movimento feminista e o envolvimento das mulheres negras com o feminismo.

 

O pensamento de Bell Hooks e a emergência do feminismo negro

As motivações que levaram Hooks a escrever e publicar seu primeiro livro estão inseridas em um contexto mais amplo de emergência, nos anos de 1970 e 1980, do feminismo negro nos Estados Unidos e na América Latina. Naquele momento, a luta política envolvia simultaneamente a disputa pelos espaços editoriais e acadêmicos.

Na década de 1960, o mercado editorial dos Estados Unidos encontrou  um  novo nicho:  a experiência da mulher negra, focalizando sobretudo no período da escravidão. Vários desses trabalhos, escritos por pessoas brancas, reforçavam estereótipos como, por exemplo, a força da mulher negra, baseada na premissa de que as mulheres negras conseguem contornar o impacto da opressão sexista ao serem fortes.  Segundo Bell Hooks, essa tendência que,  começou no movimento feminista, de romantizar a vida das mulheres negras, refletiu-se na cultura como um todo.  A esse respeito, Hooks afirma que “ser forte diante da opressão não é o mesmo que superá-la” e feministas negras compreenderam que precisavam produzir narrativas outras e ao mesmo tempo recuperar uma tradição feminina negra de análise da realidade.  Sojourner Truth, Mary Church Terrel, Ana Julia Cooper, Amanda Berry Smith, entre outras mulheres que tiveram atuação no passado, tiveram seus trabalhos revisitados pelas feministas negras nos anos de 1970 e 1980, conforme fez Bell Hooks.

Escrever e publicar em formatos variados era parte integrante  da batalha. Destaca-se, na década de 1970, a antologia coordenada por Toni Cade Bambara com ensaios e poesias de autoras como Audre Lorde, Alice Walker, Frances Beale, Carole Brown, entre outras. É importante destacar a publicação, em 1978, do livro Black Macho and Myth of Super Woman, de Michele Wallace. Nesse mesmo período, emerge o Coletivo Combahee River, uma organização feminista negra e lésbica ativa em Boston, com atuação entre os anos de 1974 e 1980. Essa organização entendia o feminismo negro como o movimento político importante para combater as múltiplas e simultâneas opressões que as mulheres negras enfrentavam.

A partir da década de 1980, as publicações seguem em escala crescente.  Destacam-se os trabalhos de: Barbara Christian – Black Women Novelists (1980); Angela Davis – Women, Race & Class (1981); Paula Gidding – When and Where I Enter: the impact of Black Women on sex and Race in America (1984); Alice Walker – In Search of Our Mothers Gardens: Womanist Prose (1983); Barbara Smith – Home Girls: A Black Feminist Anthology (1983); Audre Lorde – Sister Outsider: Essays and Speeches (1984); Guy-Sheftall Beverly – Words in the fire: an anthology of African- American Feminist Thought (1992). A lista é imensa, mas a pequena amostra permite visualizarmos as condições  históricas em que o pensar e o escrever de Bell Hooks está inserido.  Ao longo de suas obras, ela dialoga com essa produção feminista negra. Nota-se que, dos livros mencionados, apenas dois foram traduzidos e publicados no Brasil: Mulheres, raça e classe, de Angela Davis (2016) e Irmã outsider: ensaios e conferências de Audre Lorde (2019).

Em termos de discussão conceitual, a partir da década de 1990, a  noção de experiência torna-se tema central para os feminismos. Isso porque a chamada terceira onda do feminismo, marcada pela reivindicação das feministas negras, latinas e indígenas, entre outras, questionava, sobretudo, a naturalização do sujeito mulher em torno das experiências das mulheres brancas de classe média. A discussão girava em torno de duas questões: quem pode narrar as experiências e o problema a respeito da essencialização dos sujeitos e de suas práticas, ou seja, a ideia de que os sujeitos não precedem às experiências, mas são constituídos por meio de práticas discursivas e não discursivas. (PERPICH, 2010, p. 13-34).  A questão que se coloca é a seguinte: por acaso a experiência da opressão confere uma competência especial sobre o direito de falar da opressão?

Sobre esse debate, Bell Hooks, em Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade, publicado nos EUA em 1994,  realiza  autocrítica  e aponta caminhos sobre os usos da experiência. Para tanto, ela narra que, quando começou a lecionar, ficou grata ao descobrir a expressão “autoridade da experiência” nos escritos feministas. Isso  porque a expressão permitiu que ela narrasse as experiências das mulheres negras, algo que sentia falta desde sua graduação. Hooks sabia que a realidade das mulheres negras estava sendo excluída e que não havia corpo teórico que ela pudesse invocar para comprovar sua alegação. Assim,  Hooks afirma que, na década 1980, quando “ninguém queria ouvir falar da desconstrução da mulher negra como categoria de análise”, a  ideia de “autoridade da experiência” favoreceu que ela ganhasse ouvintes ao publicar Ain´t I a Woman; Black Women and Feminism. (Hooks, 2013, p. 122).  Apesar desse percurso, Hooks reconhece que o termo “autoridade da experiência” pode ser usado com um viés autoritário e essencialista, conforme detalha:

“Hoje me sinto perturbada pelo termo “autoridade da experiência” e tenho aguda consciência de como ele é usado para silenciar e excluir.  Mas quero dispor de uma expressão que afirme o caráter especial daqueles modos de conhecer radicados na experiência. Sei que a experiência pode ser um meio de conhecimento e pode informar o modo como sabemos o que sabemos. Embora me oponha a qualquer prática essencialista que construa a identidade de maneira monolítica exclusiva, não quero abrir mão do poder da experiência como ponto de vista a partir do qual pode-se fazer uma análise ou formular uma teoria. Eu me perturbo, por exemplo, quando todos os cursos sobre história ou literaturas negras em algumas faculdades e universidades são dados unicamente por professores brancos; me perturbo não porque penso que eles não conseguem conhecer essas realidades, mas sim porque as conhecem de modo diferente. […] Esse ponto de vista privilegiado não pode ser adquirido por meio de livros, tampouco pela observação distanciada e pelo estudo de uma determinada realidade. Para mim esse ponto de vista privilegiado não nasce da “autoridade da experiência”, mas sim da paixão da experiência, da paixão da lembrança” (HOOKS, 2013, p. 122-123).

Nesse contexto, era fundamental para o feminismo negro produzir conceitos que tornassem visível a singularidade das mulheres negras. Em 1970, por exemplo, Frances Beale criou o conceito “Double Jeopardy” [Dupla Ameaça] para descrever como as opressões de raça e gênero se mesclam nas experiências das mulheres negras. (BEALE, 1970). Em 1989, a jurista Kimberlé Crenshaw cunhou o conceito interseccionalidade  para descrever as várias maneiras com que raça e gênero interagem formando uma dimensão  múltipla  das experiências das mulheres negras no mercado de trabalho, explorando os vários modos como a intersecção de raça e gênero moldam de maneira estrutural os aspectos da violência contra as mulheres negras. (CRENSHAW,1989). Vale a pena dizer que a abordagem interseccional tem sido usada por mulheres negras há muito tempo, sem que a prática fosse nomeada desse modo. No Brasil, autoras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Helena Theodoro, Sueli Carneiro, entre outras, também chamaram a atenção para a especificidade das mulheres negras, articulando raça, classe, gênero e sexualidade em suas criações conceituais. Apesar de Bell Hooks não usar o conceito interseccionalidade em seus trabalhos, ela segue uma tradição feminista negra de analisar como as dinâmicas de raça, classe e gênero se articulam. Para isso, ela usa a noção imperialist white capitalist supremacist patriarchy [patriarcado imperialista da supremacia capitalista branca].

O percurso realizado até aqui permite visualizarmos que o tornar-se Bell Hooks insere-se em um contexto vigoroso de produção dos feminismos negros.

 

Temas e abordagens recorrentes

Em seus trabalhos, Bell Hooks mostra como as dimensões subjetivas estão articuladas às questões estruturais como racismo, capitalismo, imperialismo, patriarcado. Isso favorece que ela mobilize inúmeros debates. Por isso, é uma tarefa árdua mapear temas recorrentes em sua obra. Desse modo, apenas para fins didáticos, divido sua produção em quatro eixos analíticos:

1 – Crítica à práxis pedagógica

2 – Crítica à  produção cultural

3 – Reflexões sobre espiritualidade, amor e autoestima

4 – Dinâmicas de raça, classe e gênero.

É importante salientar que é comum ela retomar experiências em livros diferentes. Isso para dizer que esses eixos temáticos são encontrados de forma transversal em inúmeras de suas obras. Mas há livros em que Bell Hooks trata especificamente de alguns desses temas.

Sobre a crítica à práxis pedagógica, Hooks realiza essas análises sobretudo  na chamada trilogia do ensino: Ensinando a transgredir: educação como prática de liberdade (EUA:1994/Brasil:2013); Ensinando Comunidade: uma pedagogia da esperança (EUA:2003/Brasil: no prelo pela editora Elefante); Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática (EUA:2010/Brasil:2020). Nesses trabalhos, destaca-se a inspiração  de Paulo Freire em suas reflexões. Repetidas vezes Bell Hooks narra como o seu encontro teórico com o educador brasileiro foi uma espécie de epifania, especialmente quando ela se torna professora. Isso explica-se devido ao seu desejo de construir práticas pedagógicas democráticas que valorizem a diferença, sem fugir dos conflitos, mas fundadas no respeito à dignidade humana.  Isso não significa que Hooks não realize críticas ao sexismo presente na obra de Freire.  A esse respeito, Hooks declarou: “ A presença de Paulo Freire me inspirou. Não que eu não visse um comportamento sexista da parte dele.” (HOOKS, 2013, p. 80)

No que diz respeito à crítica cultural, Hooks aborda a temática  em pelo menos quatro obras. Duas publicadas no Brasil: Anseios: raça, gênero e políticas culturais (EUA:1990/Brasil:2019); Olhares negros: raça e representação (EUA:1992/Brasil:2019). Duas publicadas nos EUA: Art on mind: visual politics (EUA:1995); Reel to real: race, sex, and class at the movies (EUA:1996). Nessas obras, Bell Hooks faz análises contundentes, chamando atenção para a necessidade de descolonizarmos nosso olhar e nosso desejo. Ao mesmo, ela não poupa críticas à indústria cultural, bem como não é condescendente com aquelas produções negras que, em seu entender, reforçam estereótipos. Madonna, Spike Lee, Wim Wenders e, mais recentemente, Beyonce, entre tantos outros, são objetos de suas análises. As lentes analíticas de Hooks estão ancoradas na crítica radical ao imperialismo, à supremacia branca e ao patriarcado. Como crítica cultural, ela ensina que é possível  examinar um trabalho sem destruí-lo, demonstrando que criticar é colocar a produção cultural em perspectiva.

O terceiro eixo temático recorrente nas obras de Bell Hooks diz respeito às análises sobre amor, espiritualidade e autoestima. Sobre o amor destaca-se a triologia: All About Love: New Vision (EUA:2000/ Brasil:2021); Salvation: Black People and Love (EUA: 2001) e Communion: the female search for love (EUA:2002). Sobre a autoestima, ela detalha o tema no livro Rock my soul: Black People and Self-Steem (EUA:2003). A preocupação com a espiritualidade atravessa inúmeros de seus escritos, mas Hooks aborda o tema especialmente nos livros em que trata sobre amor, educação e autoestima. Valendo-se desses três temas, Hooks realiza uma crítica singular sobre os modos de subjetivação capitalistas focalizados no individualismo, no hedonismo e na competição. Amor, espiritualidade e autoestima são abordados como práticas políticas em que o cuidado de si não está apartado do cuidado com a coletividade

O quarto eixo de análise, ou seja, as dinâmicas de raça, classe e gênero, não diz respeito a um tema específico, mas refere-se a uma abordagem que atravessa todos os seus livros; não sendo por acaso que ela cunha o conceito de patriarcado capitalista supremacista branco imperialista [imperialist white supremacist capitalist patriarchy) para descrever como as opressões de classe, raça e gênero estão interligadas.

Em todos os seus trabalhos, Hooks detalha como essas dinâmicas interferem até mesmo em questões subjetivas como na capacidade de expor ideias e criar, nas configurações de feminilidade e masculinidade, nas teorizações feministas e nas relações que estabelecemos com os espaços físicos e subjetivos. São inúmeras obras: E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismo (EUA:1981/Brasil:2019); Teoria feminista; da margem ao centro (EUA:1984/Brasil:2019); Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (EUA:1989/Brasil:2019); O feminismo é para todo mundo (EUA:2000/Brasil:2018); We real cool: black Men and masculinity (EUA: 2004); The will to change: men, masculinity, and love (EUA:2004); Belonging: a culture of place (EUA:2009); Appalachian elegy: poetry and place (EUA:2012); Writing beyond race: living theory and practice (EUA:2013). E os infantis publicados no Brasil: Meu cabelo é de rainha (EUA:1999/Brasil: 2019); Minha dança tem história (EUA:2002/Brasil:2019).

A produção de Bell Hooks convoca a repensar o mundo à nossa volta e as nossas ações. São teorizações construídas rente ao corpo, em que forma e conteúdo estão a serviço das transformações éticas. Ela consegue denunciar opressões sem resvalar para maniqueísmos e essencialismos. Uma prática narrativa que, mesmo tratando de assuntos complexos, convida para a conversa e o para o encontro. Na leitura de suas obras, percorremos caminhos dolorosos e prazerosos dessa encruzilhada que é tornar-se Bell Hooks.

*Mariléa de Almeida é doutora em história pela Unicamp.

Publicado originalmente no blog de ciências da Unicamp.

 

Referências


BAMBARA Toni Cade (ed) . The black Woman: an antology. New York: Washington Square Press, 1970. 

BEALE, Frances. Double Jeopardy: to be black and female. In: The black Woman: an antology. New York: Washington Square Press, 1970, p. 109-122.  

CASHMORE, Ellis. Jim Crow. In: Dicionário de relações étnico-raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000, p. 505-508

CRENSHAW, Kimberle W. Demarginalizing the intersection of race and sex; a black feminist critique of discrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. Legal Forum, University of Chicago, 1989 [1981], p. 139-167.

DAVIDSON, Maria del Guadalupe; YANCY, George. Critical Perspectives on Bell Hooks. New York and London: Routledge, 2013.

Hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia

Bocaiúva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019a.

_____. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo:

Elefante, 2019b. 

_____. Anseios: raça, gênero e políticas públicas. Tradução Jamille Pinheiro. São Paulo: Elefante, 2019c.

_____. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Tradução: Bhuvi Libanio. São Paulo: Elefante, 2020.

_____. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.

_____. Ensinando a transgredir: a educação como prática da Liberdade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013.

_____. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução: Ana Luiza Libâneo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

_____.E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismo. Tradução Bhuvi Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

___. Rock my soul: Black People and Self-Steem. New York: Washington Square Press, 2003.

_____. All about love: New visions. New York: William Morrow, 2000.

_____. Wounds of Passion: a writting life. New York: New York and London: Routledge, 1997.

PERPICH, Diane. “Black Feminism, Poststructuralism, and the Contested character of experience”. In: DAVIDSON, Maria del Guadalupe, Kathryn T. Gines, and Donna-Dale L. Marcano Eds. Convergences: Black Feminism and Continental Philosophy. Albany: State University of New York Press, 2010, p. 13-34.

SMITH, Barbara. Home Girls: a feminist Antology. New York: Women of Color Press, 1983.

 

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