Líderes incompetentes matam

Dora Longo Bahia, Rio Doce, 2016 - Acrílica sobre linho, 300 x 500 cm
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Por THE NEW ENGLAND JOUNAL OF MEDICINE

A realidade é que a maior crise sanitária da nossa época está sendo administrada por líderes políticos perigosamente incompetentes

O New England Journal of Medicine é uma das mais prestigiosas publicações médicas do mundo. Fundada em 1812 e pertencente à Sociedade Médica de Massachussets, EUA, é também a mais antiga revista da área. Publicar nela um artigo completo engrandece sobremaneira o currículo de todo e qualquer pesquisador.

O editorial que reproduzimos abaixo é uma rara manifestação política da revista, a qual habitualmente se mantém à parte de polêmicas político-eleitorais. Tal fato, por si só, já revela a gravidade do momento médico-sanitário pelo qual passam os EUA, e a total inadequação da resposta governamental ao desafio colocado pela pandemia causada pela COVID-19. Não por acaso, situação em muito similar à vivida pelo Brasil.

Luiz Augusto Marcondes Fonseca, médico
Pesquisador colaborador
Instituto de Medicina Tropical, USP

Líderes incompetentes matam

A Covid-19 gerou  uma crise que  pôs à prova as lideranças no mundo todo. Sem dispor de boas opções  para combater este novo vírus, os países foram obrigados a fazer escolhas difíceis. Aqui nos EUA nossos líderes não passaram no teste: foram confrontados com uma crise e a transformaram numa tragédia.

A magnitude deste fracasso é espantosa. De acordo com o  Johns Hopkins Center for Systems Sciences and Engineering (um coletivo de pesquisa dentro do Depto de Engenharia Civil e de Sistemas da Univ  Johns Hopkins), os EUA são os líderes mundiais em casos e em mortes por Covid-19, ultrapassando de longe países muito mais populosos, como a China. A taxa de mortalidade nos Estados Unidos é mais do que o dobro da canadense,  quase 50 vezes maior que a do Japão, um país com uma população idosa e vulnerável e quase 2000 vezes maior que a de países com renda baixa ou média, como o Vietnam. A  Covid-19 é um desafio esmagador e muitos fatores contribuem para sua gravidade, mas há um fator que podemos controlar: a forma como nos comportamos, e nos EUA temos nos comportado muito mal.

Sabemos que poderíamos ter-nos saído melhor. A China, diante do primeiro surto, após um atraso inicial, optou pela quarentena e isolamento social rígidos. Essas medidas foram severas mas eficazes, basicamente eliminando a transmissão no próprio local onde o surto se iniciou; atingiu-se assim  uma taxa de  mortalidade de 3 por milhão, bastante menor que a taxa de 500 mortes por milhão verificada nos EUA. Países que têm  intercâmbios muito maiores com a China, como Singapura e a Coréia do Sul começaram logo a aplicar intensivamente testes diagnósticos, junto com o rastreamento agressivo dos contatos  e o isolamento adequado e tiveram surtos relativamente pequenos. A Nova Zelândia usou essas mesmas medidas; explorando também suas vantagens geográficas (é formada por duas ilhas)  chegou quase a eliminar a doença, o que permitiu limitar o tempo de isolamento e  voltar a um nível de abertura social pré-pandemia.  De modo geral,  as democracias obtiveram resultados superiores em muitas ordens de grandeza aos dos  EUA.

Porque os EUA lidaram tão mal com esta pandemia? Nós falhamos em quase  todos os momentos. Já tínhamos sido amplamente prevenidos há muito tempo, mas quando a doença afinal chegou fomos incapazes de aplicar testes diagnósticos eficazmente e até de fornecer os equipamentos de proteção mais elementares aos profissionais de saúde e ao público em geral. Continuamos muito aquém do nível desejável de aplicação de testes diagnósticos; o número absoluto de testes aumentou substancialmente, mas o índice mais útil é o número de testes por pessoa infectada e neste ponto estamos atrás de lugares como o Cazaquistão, o Zimbabwe e a Etiópia, países que não possuem nem de longe a nossa infraestrutura biomédica ou nossa capacidade produtiva. Além do mais, nossa falta de ênfase  no desenvolvimento de soluções acarreta grande atraso na verificação dos resultados dos exames, tornando-os inúteis para o controle da doença.

Apesar de nossa preferência por um enfoque tecnológico, a maioria das intervenções eficazes não são complicadas.  Apesar disto, os EUA instituíram medidas de quarentena e isolamento de maneira  tardia e inconsistente, muitas vezes sem nenhum esforço para implementá-las e depois que a doença já tinha atingido substancialmente diversas comunidades. Em muitos locais nossas regras de distanciamento social foram tímidas, na melhor das hipóteses, e o relaxamento das restrições ocorreu bem antes de ter havido controle adequado da doença.  Em boa parte do país as pessoas simplesmente não usam máscaras porque nossos líderes declararam expressamente que as máscaras são ferramentas políticas e não medidas eficazes para o controle da infecção. O governo investiu apropriadamente no desenvolvimento de vacinas mas ao mesmo tempo emprega uma retórica que politiza esse processo de desenvolvimento e gera  desconfiança.

Os EUA entraram nesta crise contando com imensas vantagens. Além de dispormos de uma tremenda capacidade produtiva, temos um sistema de pesquisa biomédica que é admirado no mundo todo. Temos enorme expertise em saúde pública, políticas de saúde e biologia básica e historicamente temos sido capazes  de transformar essa expertise em novos tratamentos e  medidas preventivas. A maior parte dessa expertise está situada em instituições governamentais; no entanto nossos líderes preferiram ignorá-la e até mesmo menosprezar os experts.

A resposta dos líderes da nação à crise foi sistematicamente inadequada. O governo federal de modo geral transferiu a responsabilidade aos estados. As respostas dos governadores variaram, não tanto de acordo com o partido a que pertenciam, mas segundo a competência de cada um; entretanto, sejam quais forem as respectivas competências, os governadores não dispõem dos mesmos recursos que Washington. Em vez de utilizar esses recursos, o governo federal preferiu sabotá-los. O Center of Disease Control and Prevention (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) que já foi  líder mundial no enfrentamento de doenças tem sido sacrificado e vem sofrendo com erros  dramáticos em sua políticas e no planejamento da aplicação de exames diagnósticos.  O National Health Institute (Instituto Nacional de Saúde) teve um papel chave no desenvolvimento de vacinas mas vem sendo excluído de decisões cruciais. A Food and Drug Administration (órgão que fiscaliza alimentos e medicações) tem sido vergonhosamente politizada, parecendo responder antes a pressões administrativas do que a  evidências científicas. Nossos atuais líderes têm promovido um descrédito no governo e na ciência que se estenderá muito além de seus mandatos. Em vez de se basear em expertise, a administração tem se voltado para “formadores de opinião” e charlatães, que obscurecem a verdade e promovem a disseminação de mentiras.

Vamos ser claros quanto ao custo de deixar de lado até mesmo as precauções mais singelas: um surto que afetou desproporcionalmente minorias raciais exacerbou as tensões relacionadas à desigualdade. Muitas de nossas crianças estão impossibilitadas de ir à escola num período crítico de seu desenvolvimento social e intelectual. O trabalho árduo dos profissionais de saúde, que têm arriscado suas vidas, está sendo desperdiçado. Nossa liderança atual se orgulha de suas realizações econômicas, mas enquanto na maioria dos outros países houve em alguma medida retomada das atividades, nos EUA a extensão da pandemia tem prejudicado a reabertura, resultando na perda de centenas de bilhões de dólares e de milhões de empregos; mais de 200 000 americanos morreram. Algumas mortes pela Covid -19 eram inevitáveis, mas embora seja impossível uma estimativa precisa do excesso de mortes causado pelas políticas governamentais inoperantes, esse número atinge no mínimo a casa das dezenas de milhares, numa pandemia que já matou mais americanos do que qualquer conflito desde a 2ª Guerra Mundial.

Qualquer outra pessoa que estivesse destruindo vidas irresponsavelmente e desperdiçando dinheiro desse modo estaria enfrentando o devido processo legal, mas nossos líderes reivindicam imunidade para suas ações. A eleição que se aproxima vai permitir que os julguemos. Pessoas razoáveis podem divergir quanto a posições políticas assumidas pelos candidatos, mas a verdade não é conservadora nem liberal: a realidade é que a maior crise sanitária da nossa época está sendo administrada por líderes políticos perigosamente incompetentes. Não podemos permitir que eles conservem seus empregos e continuem causando a morte de milhares de americanos.

The New England Journal of Medicine – N ENGL J MED 383;15 NEJM.ORG  8 OUTUBRO 2020

Tradução: Francisco J B de Aguiar, médico.

 

 

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