Por PAULO GHIRALDELLI*
Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
Estamos sob dois grandes fluxos. Se eu não fosse filósofo, e sim cientista ou religioso, diria: duas ordens do destino. Mas para filósofos a palavra destino é muito forte.
Esses dois fluxos buscam nos tragar, um é da ordem da economia e dos investimentos, outro da ordem do trabalho e da vida cotidiana. Em ambos os casos, estamos no interior do regime do biopoder. Com isso queremos dizer que a distribuição de hierarquias já não está mais em um campo restrito, mas nos atinge e envolve em todo o nosso processo de vida, inclusive em um sentido biológico. Falamos abaixo de ambos os fluxos.
O fluxo da ordem econômica anuncia uma possível crise. O processo é bem conhecido. A mais valia relativa diz respeito à intensividade do trabalho, o excedente é filho da velocidade de produção e realização, desse modo, a tecnologia passa a ser um elemento central da acumulação do capital. O capitalismo criou o desenvolvimento tecnológico moderno e este, por sua vez, é um de seus motores loucos mais turbinados. A tecnologia do momento é a Inteligência Artificial (IA). Os investimentos fluem para os empreendimentos em IA.
Isso não tem nada a ver com aquilo que alguns, em desespero, estão dizendo por aí. Não estamos no mundo em que Sam Altman e outros do time dele “convenceram os ricos a investir um bom dinheiro em IA”. Isso é a superfície, o que aparece nos jornais. O capitalismo não funciona por essa via de convencimento. Nem há uma crise de fim de mundo que se possa apontar com certeza. Isso é conversa de alguns tentando dar uma de Zé do Apocalipse para falar do que não sabe. É uma boa tática para aparecer. Fala-se de crise, se ela não vier, todos esquecem, se ela vier, dá-se um salto no picadeiro para gritar “eu não falei?!”. Ninguém sabe o futuro. O que há efetivamente é o corriqueiro no capitalismo: crise pode existir se a bolha que está se formando em torno da IA vier a explodir. Já há condições para se temer isso pois, afinal, o retorno lucrativo que a IA vem dando, e que parece poder dar nos próximos anos, não justifica o tamanho dos investimentos. Mas nem tudo no capitalismo funciona por justificações.
Do modo como os espertalhões anunciadores de crise falam é como se haveria outra opção, mesmo mantendo a lógica do capital. Falam como se as coisas dependessem de executivos das Big Techs. Não há tanta opção assim. Esse é o drama do capital: ele tem de ir para os lugares em que há perspectivas (tanto faz se reais ou ilusórias) de acumulação segundo a tecnologia do momento. O impulsionador do mundo é o capital, mas a isca do capital, criada por ele mesmo, é a tecnologia. O capital funciona como aquele burrinho que tem a cenoura tecnológica pendurada na sua frente e amarrada por uma varinha em sua própria cabeça. Atualmente nenhuma outra tecnologia que não seja a IA promete uma revolução. Então, todos os investidores apostam nela. Soa irracional? Como todos fazem a mesma coisa, isso emerge como a única racionalidade possível.
Na biopolítica atual, segundo a lógica do capital, parece mesmo ser realmente a única coisa que se tem a fazer. A economia americana não tem mais manufatura. As leis de Trump não fazem a manufatura voltar. Subir juros para atrair investimento que, do modo que está amplia a bolha da IA, não está na possibilidade do Fed. Os Estados Unidos estão funcionando na base do desenvolvimento da indústria de ponta, e esta acabou sendo abarcada em inúmeros setores peloS possíveis desenvolvimentos da IA. Não há ganho para os trabalhadores. Os pobres americanos estão mais pobres e a classe média está irritada. Os 20% mais ricos é que estão podendo gastar. Mas é assim, dessa maneira, que está se evitando o naufrágio da maior economia do planeta. Sem a IA, a coisa toda estaria insuportável.
Quem não investir em IA, vai morrer. Quem investir em IA, pode ou não morrer. A segunda opção é a do capital investidor americano. Pode não ser racional por completo, mas é razoável, dizem os executivos uns para os outros. O capital está escutando o canto da Sereia, e não tem o que fazer senão ir direto em direção aos rochedos. Se bater forte, ainda assim, acredita-se que sobra alguém. Quem sobrar, faz a pilhagem dos navios batidos e ainda por cima volta para a Terra e fica de gabolice, dizendo que deu um belo tombo nas Sereias. Posa de Ulisses e, se descuidarmos, dá banho de sangue em alguma faixa de Gaza disponível, só para Penélope ver. Esse processo era conhecido por Marx e foi batizado como “destruição criativa” por Schumpeter. Note o significativo de nosso tempo atual: o assunto dos ganhadores do Oscar deste ano foi justamente este!
Passamos agora para o fluxo da ordem do trabalho. Também nesse caso é a IA a protagonista. Aqui, duas linhas de problemas estão em pauta.
Primeiro. Trocando em miúdos, a IA é uma potencialização de algoritmização, já tão usada no trabalho de nosso cotidiano, na vida doméstica, nos deslocamentos pela cidade, na indústria logística, na indústria que se utiliza da robótica, no setor dos cuidados dos mais velhos, na distribuição de energia, nas editoras e serviços policiais. Se há algum campo que escapa da IA que levante a mão! Silêncio e mãos todas abaixadas, exceto a da função uterina, quase! Um efeito às vezes não muito visível disso tudo não é o desemprego, mas a criação do subemprego e uma contínua precarização da vida do trabalhador.
Segundo. Aqui, estamos em algo para o qual Marx dedicou carinho especial, algo próprio do capitalismo: o capital é um produtor de subjetividades, e não só um produtor de si mesmo e de mercadorias. Temos denominado a subjetividade de nosso tempo, os anos pós 1970, de subjetividade maquínica. (1)
A subjetividade maquínica pode ser tomada como uma continuidade da constituição do humano que, na nossa concepção, é antes de tudo um ciborgue. O ciborgue não é um homem com pedaços de máquina incrustadas, mas um simples Adão que ganhou a tarefa de nomear tudo na Terra e, depois, conversar com Eva. O primeiro homem-máquina foi o primeiro homem. Ele produziu a voz humana que, diferente da voz animal, é articulada, ou seja, é linguagem: articula semiótica e semântica, língua e parole. A linguagem é natural e histórica ao mesmo tempo. É produto humano, ou seja, tecnologia, e também dom natural. Somos máquinas.
Desde sempre nossa subjetividade foi afeita ao maquínico. Se hoje podemos chamá-la efetivamente de maquínica é porque atualmente todo processo de envolvimento do homem com a tecnologia foi intensificado e escancarado. Um algoritmo não funciona sozinho. Antes de tudo, ele faz do homem um dos pontos (ou nós) da rede algorítmica. O homem funciona como lugar de passagem dos fluxos informacionais e comunicacionais. Não estamos vivendo só a era do “meio é a mensagem”, mas a época em que “o meio é a massagem” – estranhamente uma massagem descorporalizada. A infosfera é o que mais mostra isso: fluxo de trabalho, linguagem e dinheiro, tudo isso muito bem azeitado e veloz por meio do homem algoritmizado e de algoritmos humanizados. Em ambos os casos, uma proliferação para todo o lado de simulacros. Simulacro como produção e não mera cópia, hiper real que se passa por real exatamente em sua função de exagero. Tudo para ser real é preciso ser exagerado, e não raro o pastiche e a caricatura ganham estatuto ontológico corriqueiro.
Ganha-se em velocidade de cálculo, disposição para se alcançar resultados científicos que seriam impossíveis antes, prognósticos de um futuro de liberdade para todos – inclusive liberdade do trabalho. Do ponto de vista de malefícios ao homem, surge a ampliação da capacidade militar, a descorporalização de atividades, retirando a sensação da jogada. Sem contar que o trabalho se funde ao lazer e vice versa, inaugurando a jornada 24/7. Ao mesmo tempo, transforma o mundo em um campo de espetáculos da mercadoria mais acirrado que aquele do tempo das Grandes Exposições do século XIX e da vinda da TV no século XX: a infosfera é o campo em que a IA mais colabora com a tendência de inflação semiótica e deflação semântica, uma característica do que chamamos de semiocapitalismo. (2) Cada vez mais atuamos por meio de imagens (visuais e sonoras) e menos por disposição hermenêutica. A IA é por natureza avessa às narrativas. Ela é como aquelas pessoas que dizem, ao contrário de Richard Rorty, que narrativa e verdade estão em oposição. Pessoas assim deveriam parar de falar e escrever, esperando falar só quando lhes viesse a Verdade. Deveriam se abster de contar histórias. A IA é assim, como tais pessoas, ela proíbe a hermenêutica mas não sossega em um canto, ela fala pelos cotovelos, mesmo não os tendo!
Agenciamento maquínico é, então, a forma pela qual a subjetividade maquínica se constitui e se põe no âmbito contemporâneo. Trata-se de um tipo de ação agencial que se livra da identidade, o que era, junto da autoconsciência, um dos itens centrais da noção tradicional-moderna de sujeito.
Diante de tudo isso, qual o quadro que poderíamos efetivamente temer, como algo que seria uma real piora da vida para todos?
O pior dos quadros que podemos montar para o horizonte é este: a continuidade desse processo sem que exista uma reflexão coletiva e séria sobre o futuro do trabalho, em termos de seu conteúdo, e ao mesmo tempo vier o estouro da bolha. Atenção aqui: o estouro da bolha não será uma crise da qual não sairão vencedores. Muito menos haverá uma desaceleração da infosfera. Já vimos como crises contemporâneas ocorrem, em 1999, com a falências das “empresas pontocom”, e em 2018, com a “crise dos subprimes”. Em nenhuma delas houve uma parada da vida. Alguém se lembra do nome das empresas que desapareceram? Algum americano se lembra dos parentes que perderam casa? Para uma parada da vida, substancial, é necessário que acrescentemos uma crise a mais, também fruto do capitalismo, e que as três ocorram conjuntamente. Os dois tipos de crises mencionados têm de vir junto de uma sindemia como aquela da Covid. Aí sim, o Zé do Apocalipse poderá ficar satisfeito antes mesmo do colapso climático, que ele está prevendo mais para diante, junto com a volta de Jesus.
É muito azar se todos os três monstros botarem a cabeça para fora juntos, ou em continuidade. Por isso, levantamos todos os dias para, diante da nossa finitude, sempre arregaçar as mangas pelo potencial de infinitude da humanidade.
À guisa de conclusão, chamo a atenção para um detalhe. A definição de IA do filósofo italiano que se dedica ao estudo da IA, Luciano Floridi, lembra algo importante sobre o que é IA: “A IA só executa uma tarefa com êxito se conseguir desconectar a sua realização de qualquer necessidade de ser inteligente ao fazê-lo”. Ou seja: a IA é tomada como tendo algum sucesso se ela faz aquilo que os humanos fazem ou podem fazer, mas que não necessariamente implica em inteligência. Está embutida na compreensão da IA que ela não tem a função de substituir humanos inteligentes enquanto inteligentes. Admite-se nessa concepção, claro, que há tarefas que só a inteligência humana faz e que a IA jamais fará, e se tentar, será economicamente pior. Assim, a IA é um potencializador de humanos em favor da correção ou, como se chama hoje em dia, a curadoria. Os humanos precisam se dedicar mais ao plano do sofisticado e da capacidade de revisar o que a IA faz. Todavia, por que então se fala em desemprego em massa com a IA?
Bem, fala-se assim por conta de se olhar a prática como que reificada. O capitalismo cria um grande número de pessoas trabalhando em situações que não exigem potencialidades humanas, e então, quando chega a IA, essas pessoas, já reduzidas a um trabalho não propriamente humano, são postas fora do emprego. É o capitalismo que provoca, antes da IA, a degradação humana. Mas, mesmo assim, o desemprego em massa não é o futuro. A cada posto de serviço que a IA substitui, outros postos de serviço são abertos. Alguns exigem capacidade humana inteligente, cada vez mais, mas, nesse caso, o capitalismo já fez o que precisava para desqualificar, em termos salariais, tais empregos.
Essa situação acima é a da entrada do Mechanical Turk na Amazon. Trata-se da “Inteligência Artificial Artificial”. Ou seja, serviços de Inteligência Artificial são, em algum momento do processo, delegados aos humanos, pois a IA realmente não pode executá-los. Isso não é uma forma da Amazon enganar algum usuário. Isso é dito pela Amazon. O Mechanical Turk emprega milhares de pessoas no mundo todo. São mal pagos. Mas são necessários. Todavia, aqui vem a ironia histórica. Muitos desses trabalhadores, pressionados pelo tempo e pelos ganhos irrisórios, passaram a usar a própria IA para fazer tais serviços que deveriam ser feitos por eles, pois são serviços que só o humano pode fazer corretamente. A Amazon sabe disso, mas finge não saber. Quando essa bolha do serviço errado estourar, aí a Amazon se manifestará, mas sem muito alarde.
*Paulo Ghiraldelli é filósofo, youtuber e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo 4.0: sociedades e subjetividades (CEFA Editorial).[https://amzn.to/3HppANH]
Notas
- Paulo Ghiraldelli. Capitalismo 4.0 – sociedades e subjetividades. São Paulo-Ibitinga, 2025.
- Paulo Ghiraldelli. Semiocapitalismo. São Paulo-Ibitinga: CEFA Editorial, 2020.
- Luciano Floridi. A ética da Inteligência Artificial. Curitiba: PUCPress, 2024, p. 52.
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