Booker T. Washington

Imagem em domínio público. (autor desconhecido)
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Por MÁRIO MAESTRI*

A louvação de B. T. Washington, sob as asas do Partido Democrata, como sempre, é aclimada, em forma atabalhoada, aos já intoxicados ares do Brasil

Booker Taliaferro Washington teria nascido em 5 de abril de 1856, filho de uma mulher escravizada, que trabalhava como cozinheira em uma pequena e rústica fazenda do sudoeste da Virgínia, propriedade de escravista de nome Burroughs. Não temos informações sobre seu pai, que ele sugere ter sido um homem branco morador de uma propriedade próxima. Aos nove anos, Booker T. Washington foi libertado, com sua mãe, Jane, a irmã, Amanda, e o irmão mais velho John, quando da rendição do Sul na guerra civil, em 1865. Ele era o único mulato dos três filhos de sua mãe. [WASHINGTON, 1900, p.5; GLEDHILL, 2020, 76-7.]

Booker T. Washington e sua pequena família mudou-se para Malden, no Kanawha Valley, na Virgínia Ocidental, onde se encontrava seu padrasto e pai de sua irmã mais jovem. Ali, labutou, com seus familiares, como trabalhador braçal, em forno para produção de sal e mina de carvão, entre outras duras ocupações manuais. [WASHINGTON, 1900, p.24.] Apesar da oposição do padrasto, que preferia vê-lo trabalhando na boca da fornalha, Booker T. Washington frequentou a escola elementar, paga, por algumas poucas horas diárias e não assiduamente.

Quando, ao se apresentar na escola, o professor perguntou seu nome, Booker adotou, como sobrenome, o primeiro nome do padrasto, ao ver que “todas as crianças tinham pelo menos dois nomes”. Ao sobrenome, foi agregado, a seguir, um “T”, de Taliaferro, nome que sua mãe lhe teria dado, ao nascer, mas que fora esquecido. Muito logo, devido à necessidade de contribuir ao sustento familiar, passou a estudar à noite, irregularmente, pagando por professores que, não raro, pouco sabiam. [WASHINGTON, 1900, p. 34, 36.]

Escalada para o sucesso

Em 1900, B.T. Washington escreveu suas memórias, Up From Slavery: an Autobiography, quando já se transformara em educador, empresário e ideólogo negro de referência nacional. [WASHINGTON.] No breve livro, produzido pela pena de M. B. Thrasher, host writer branco, um dos tantos escritores de que se serviria em sua vida para produzir seus escritos. Apesar de seu objetivo performático, a autobiografia constitui,valioso depoimento sobre os últimos tempos da escravidão, sobre os tempos da “Reconstrução” postbellum e sobre o advento e reino do despótico apartheid.

Os relatos de Booker T. Washington apresentam cenários duríssimos, no que diz respeito às relações de trabalho, às condições gerais de existência, aos frágeis laços familiares, às esperanças despertadas, e logo defraudadas, pelo período da Reconstrução [1865-1877], conhecidos pela população negra escravizada e, a seguir, livre, no sul dos Estados Unidos. [CLEMENTI, 1974.]

Paisagens sociais e humanas que, como outros relatos de ex-escravizados, contraditam prestigiados trabalhos historiográficos sobre uma escravidão estadunidense quase feliz, onde os trabalhadores escravizados, em negociações incessantes com seus escravizadores, praticamente os conduziam pelo nariz. Narrativas piedosas e fantasiosas, sobre um passado tendencialmente sem contradições maiores, retomadas sem tardança por historiadores brasileiros. [MAESTRI, 2015; GENOVESE, 1988; FLORENTINO & GÓES, 1997.]

E, no relato de Booker T. Washington, trata-se de relatos não produzidos pela pena de abolicionistas ensandecidos ou historiadores esquerdistas raivosos, apresentados sempre com enorme má vontade para com os escravistas, pela atual reabilitação historiográfica da escravidão estadunidense e brasileira. [GORENDER, 2016.] Trata-se, ao contrário, de narrativas de depoente que viveu aqueles anos duros, mas interessado sobretudo em conquistar a simpatia dos senhores da nova ordem sulina, muitos deles, ex-escravista, e dos capitalistas do Norte, para continuar recebendo as doações sob as quais levantou seu pequeno império. Depoimento concordante com os de inúmeros outros cativos que nos deixaram relatos sobre suas vidas. [PARKER, 1998; ARMELLIN, 1975.]

Comendo parágrafos, frases e palavras

A autobiografia de Booker T. Washington foi conhecida, tardiamente, no Brasil, em 1940, sob o título Memórias de um negro, em tradução de Graciliano Ramos que, sendo um radical defensor da economia na narrativa, não cedia à tentação de corrigir a má literatura, tornando-se, assim, de um excepcional ficcionista, em um péssimo tradutor. Ele mesmo confessaria sobre o livro em questão: “O homem vinha direito, umas observações ótimas, de repente se estrepava todo. A todo instante, repetia ideias, usava palavras desnecessárias, fazia círculos de peru. Cortei uma infinidade de asneiras, e ainda ficaram muitas.” [MORAES, apus GLEDHILL, 2020, p. 194; WASHINGTON, 1940, 2020.]

O nosso maior ficcionista reconhece em B. T. Washinton a decisão e a habilidade, assim como seus limitados dotes intelectuais. Sobretudo, a Graciliano Ramos, saído do sertão, onde vigia o coronelismo despótico, que ele jamais deixou de denunciar e combater, como cidadão, como militante político, como ficcionista, horrorizaria a exigência de Booker de que os negros explorados e violentados do sul dos Estados Unidos mantivessem a cabeça gacha e “nas eleições, votassem nas chapas dos seus antigos senhores”, repetindo o voto de cabresto do Brasil oligárquico.

Em Travessias no Atlântico: Reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel Querino, de 2020, a historiadora inglesa Sabrina Gledhill empreende um amplo esforço de recuperação de B. T. Washington. Nesse importante trabalho, aproxima as visões, sobre Booker, de Graciliano Ramos e de W.E.B. Du Bois, o mais incansável militante negro contra o apartheid sulino, por serem ambos comunistas. Aproximação que encheria de orgulho a ambos, ainda que não seja essa a intensão a autora.

Quanto à proposta, en passant, do prefaciador do livro de Sabrina Gledhill, sobre um Graciliano Ramos racista, é melhor deixá-la tranquila, sem comentários, para que morra na sua incongruência, como mais uma conta do rosário sem fim de absurdidades produzidas nos últimos tempos, com destaque para os autores identitários e afins. [GLEDHILL, 2020, p.194, 19.]

Empreendedorismo negro

As memórias de B. T. Washington permitem-nos também penetrar fundo na singular práxis e visão de mundo desse homem negro de vontade de ferro, senso de oportunidade incomum e compromisso inarredável com o seu sucesso. Um protagonista que, por mais de duas décadas, até sua morte, em 1915, e mesmo após ela, destacou-se como pioneiro referencial da proposta de empreendedorismo negro e do integracionismo da comunidade afro-descendente à sociedade sulina racista postbellum.

Lembrando seus anos de trabalhador livre quase criança, Booker T. Washington descreve o terror que lhe causara mourejar na mina de carvão, explorada para suprir as necessidades dos fornos de cal, onde também se empregou. Ele se perdia com frequência nos labirintos dos túneis da mina, onde, muitas vezes, se apagava a luz que portava, mergulhando-o em profunda e tenebrosa escuridão. E os acidentes, devido a explosões prematuras de cargas de pólvora e desmoronamentos eram, assinalava, não incomuns. [WASHINGTON, 1900, p.38]

Foi, entretanto, trabalhando na mina, que escutou dois trabalhadores falarem de escola especial para negros, aberta “em algum lugar” da Virgínia. Para ele, foi como uma anunciação, trazida dos céus, por dois anjos negros, que lhe revelaram a existência de um micro paraíso para negros na terra. “[…]  Resolvi imediatamente ir para aquela escola, embora não tivesse ideia de onde ela ficava, […], ou como iria alcançá-la […].” [WASHINGTON, 1900, p.43.]

Pela mão de sua dedicada mãe, Booker T. Washington se empregou, talvez um ano e meio, como doméstico na moradia do casal Ruffner, nortistas proprietários do forno de sal e da mina de carvão onde, por poucos trocados, ele e sua família suavam. Sob as ordens da exigente e detalhista patroa ianque, por cinco dólares ao mês, pode vislumbrar os hábitos domésticos das classes dominantes brancas nortistas. Exagerando nas cores, pelas razões que veremos a seguir, propôs em sua autobiografia que as “lições” que ali aprendeu lhe “foram tão valiosas […] quanto qualquer educação que recebi […] desde então […].” [WASHINGTON, 1900, p.44.]

Mais que Five Hundred Miles

Em 1872, com possivelmente dezesseis anos, quase sem recursos para uma viagem de quinhentos quilômetros, através de estado em que porejavam, com violência, o racismo e o classismo, Booker partiu para se matricular no “Hampton Normal and Agricultural Institute”. A decisão com que o jovem venceu os múltiplos percalços da viagem até alcançar a escola que via como um quase paraíso, falam de sua força de vontade, criatividade e flexibilidade. [WASHINGTON, 1900,  p. 47-48, 62.]

O Instituto Hampton, escola normal privada para jovens e adulto negros dos dois sexos, fora fundado em 1868, às margens do rio Hampton, na Virgínia, pela Associação Missionária Americana. Ele era dirigido pelo general Samuel Chapman Armstrong [1839-1893], oficial de regimento negro durante a guerra. A instituição assentava raízes nas propostas de abolicionistas nortistas de repartir uma educação elementar que respondesse ao que consideravam serem as necessidade e as capacidades da população libertada. Essas escolas iniciaram suas atividades em forma precária, ainda durante o conflito, à sombra de tropas unionistas dirigidas por oficiais abolicionistas que avançavam vitoriosas nos estados confederados.

O Instituto Hampton, hoje universidade privada para negros, se constituíra quando eram fortes as esperanças de uma “Reconstrução” política e social da sociedade escravista sulina destruída pela força das armas. Com dezesseis anos, após seu arriscado périplo interno através do Estado da Virgínia, Booker ingressou na desejada instituição educacional, um grande prédio de tijolos de três andares, que afirmou ter sido o “maior e mais belo edifício” que jamais vira. Sem tardança, foi engajado como “zelador”, certamente um eufemismo para “faz-tudo”, como forma de pagar parte do custo do ensino, do alojamento e da alimentação. A maior parte da anuidade foi bancada por um dos tantos filantropos, que apoiavam a instituição. [WASHINGTON, 1900, p. 53.]

No Instituto Hampton, Booker T. Washington afirmou ter sido introduzido em hábitos no todo desconhecidos: comer “em horários regulares”, em mesa com toalha e guardanapo; lavar-se em banheira; usar “escova de dentes”; dormir em cama com “dois lençóis”. Propõe que talvez a “lição mais valiosa” aprendida no instituto foi o “banho diário”. [WASHINGTON, 1900, p.58, 60.] Atos quotidianos com os quais certamente se acostumara, mesmo não os praticando, durante seu longo serviço como doméstico da família Ruffner.

Retorno glorioso

 Em junho de 1875, Booker T. Washington concluiu sua formação no Instituto Hampton, qualquer coisa como um curso secundário que o preparava para ser professor de escola elementar. Após seu retorno à casa familiar, em Malden, na Virgínia Ocidental, cercado da admiração da comunidade negra da pequena aglomeração por seu progresso social e cultural, o jovem professor não se deitou nos louros obtidos. Passou a implementar a pedagogia e a visão de mundo aprendidas no Instituto Hampton, com seus professores ianques, que tinham como principais eixos a civilização do negro pelas práticas higiênicas ocidentais; a sua “educação para o trabalho” manual e, consequentemente, a impropriedade de seus anseios pela “educação literária”. Programa que Booker difundiu e implementou com um sucesso inesperado por seus professores nortistas.

Para Booker T. Washington, a “escova de dentes” seria um “agente da civilização” de maior alcance, destacando-se entre os outros hábitos higiênicos. [WASHINGTON, 1900, 76.] Prática de nenhuma importância para emancipar trabalhadores e camponeses explorados, mas excelente para os cuidados dos dentes, como comprova o caso de Antonio Gramsci. O pensador marxista italiano conheceu esse estranho instrumento, pelas mãos da dedicada cunhada, quando seus dentes se encontravam já comprometidos, na prisão, onde produziu seus renomados escritos … sem jamais escovar os dentes! [MAESTRI, 2020, 259, 264, 271.] Não apenas na Sardenha, mas em inúmeras regiões da Europa rural e operária, as escovas de dente eram pouco usadas, quando não desconhecidas, ainda nos anos 1960.

No outono de 1878, Booker T. Washington partiu para estudar, por oito meses, no Seminário de Wayland, em Washington D. C., cidade para onde afluíra importante população negra à procura de melhores condições de vida, após a libertação. [WASHINGTON, 1900, p.90.] Ainda em Washington D.C., aceitou o convite de um “comitê de brancos”, para fazer campanha para a escolha da cidade de Charleston, como capital do Estado da Virgínia, a “apenas oito quilômetros de Malden”, onde ele e a família moravam. Aceitando o convite e o encargo, passou quase “três meses palestrando em diversas partes do estado”. Nesse momento, o jovem professor de escola elementar já era visto, pelas classes dirigentes brancas sulinas, ao menos regionalmente, como um negro educado, inteligente e sobretudo confiável. [WASHINGTON, 1900, p. 93.]

No verão de 1879, com 24 anos, recebeu o convite do general Armstrong, presidente do Instituto Hampton, para ir ali trabalhar como “professor”, “prosseguir alguns estudos complementares” e se responsabilizar por “setenta e cinco” “índios selvagens”, que a escola fora buscar no “Território Indígena”, para uma experiência pioneira. Ele teria, em sua própria avaliação, se desempenhado a contento na espinhosa missão, apesar da resistência dos alunos em “cortar os longos cabelos, deixar de usar cobertores e parar de fumar”. [WASHINGTON, 1900, p. 98.]

Civilizando selvagens

Para Booker T. Washington, era imprescindível que os nativos abandonassem aqueles hábitos, já que “nenhum americano branco jamais” consideraria uma outra “raça” como “totalmente civilizada até que” ela vestisse as “roupas do homem branco”, comesse a “comida do homem branco”, falasse a “língua do homem branco” e professasse a “religião do homem branco”. Uma visão, do mundo da periferia, abraçada ainda hoje por não poucos estadunidenses de todas as cores e pelagens. Ele registra seu receio ao eventual racismo anti-negro entre seus alunos nativos, já que a população do “Território Indígena” teria possuído “grande número de escravos durante a época da escravidão”. [WASHINGTON, 1900, p.98.]

No Instituto Hampton, Booker T. Washington ocupou-se também em uma nova escola noturna, onde os alunos “trabalhavam dez horas durante o dia”, sobretudo na serraria e na lavanderia da instituição, frequentando a “escola durante duas horas à noite”, recebendo, como retribuição pelo muito trabalho, o ponto tempo de instrução, a alimentação e uns trocados. Um desequilíbrio entre o trabalho e a educação que fazia parte do que vivera e aprendera no Instituto Hampton, tido como elemento fundamental no ensino da população negra saída da escravidão. Tratavam-se, portanto, de escolas privadas, não públicas, para negros, financiadas substancialmente com as mensalidades e trabalho dos seus alunos e as doações da comunidade negra e de ricaços. [WASHINGTON, 1900, p.104.]

Em 1881, Booker T. Washington viveu um grande salto adiante, no seu processo de avanço profissional e social. Naquele ano, por indicação do general Armstrong, foi escolhido para dirigir uma escola normal e industrial para jovens negros, de ambos os sexos, proposta feita por “alguns cavalheiros do Alabama”, no frigir dos ovos, um ex-escravista,  reconvertido em comerciante e banqueiro, George W. Campbell, e um ex-escravizado, Lewis Adams (1842-1905), que progredira como artesão livre, já que aprendera “três ofícios durante os dias da escravidão”. [WASHINGTON, 1900, p.121; DU BOIS, 2021, nota 83.]

A escola, privada, seria aberta em Tuskegee, aglomeração do Alabama, de uns dois mil habitantes, no Black Belt, “Cinturão Negro”, onde, em algumas regiões, a população afro-descendente superava a branca, em quase seis para um. A enorme densidade populacional negra devia-se à fertilidade das terras escuras regionais, que se espraiam nos estados do Sul, daí a denominação de Cinturão Negro. Ele ensejara, quando da escravidão, a compra maciça de legiões de trabalhadores feitorizados, duramente explorados pelos plantadores escravistas. [DU BOIS, 2021, nota 204; WASHINGTON, 1900, p.108.]

Vida dura de homens quase livres

Em Tuskegee, antes de aplicar-se à organização da escola, Booker T. Washington viajou pela região, conhecendo as condições de vida duras e miseráveis da população negra agora livre. Ela era comumente explorada como meeiros e arrendatários de pequenas parcelas de terras cansadas, em torno de uns três hectares, plantando quase unicamente algodoeiros. Camponeses negros cobertos de dívidas e com as colheitas hipotecadas, devido às oscilações do algodão no mercado internacional, aos elevados alugueis da terra exigidos pelos ex-escravistas e aos altos preços dos produtos de consumo comprados aos comerciantes. [WASHINGTON, 1900, p.115; DU BOIS, 2021, p. 135 et seq.]

“Com poucas excepções, descobri que as colheitas estavam hipotecadas […] e que a maioria dos agricultores de cor estava endividada.” “Nos distritos de plantações […], via de regra, toda a família dormia num quarto”, também ocupado, com frequência, por parentes e agregados. “Raramente havia algum lugar na cabana onde se pudesse lavar até mesmo o rosto e as mãos.” “A dieta comum […] era carne de porco gorda e s de milho” e, no pior dos casos, “pão de milho e ervilhas-pretas cozidas em água pura”. O “único objetivo” dos camponeses negros pareceu-lhe ser “plantar nada além de algodão”, amiúde, até “à porta da cabana”. Havia casas com “apenas um garfo”. [WASHINGTON, 1900, p.114.]

Com fundos públicos apenas para pagar os professores, Booker T. Washington teve que levantar a escola, paga pelos alunos, desde os seus fundamentos, em um sentido não alegórico. Ela foi inaugurada, em 4 de julho de 1881, em barracões alugados, com uns cinquenta estudantes, alguns deles, professores e professoras negros de escolas primárias, com escassa formação. Ele foi secundado por jovem professora, do Ohio, mulata muito clara, que se tornaria sua esposa.

Além do ensino tradicional, Booker T. Washington e sua futura mulher retomaram as práticas e ensinamentos do Instituto Hampton de inculcar nos alunos a preocupação com os cuidados pessoais, com os comportamentos sociais, com o amor ao trabalho com as mãos, já que, naquela instituição, não acreditariam que o negro estivesse em condições de alcançar muito mais. Então, fazia uns quatro anos que fora desmontado o movimento de “Reconstrução”, quando da proposta “Grande Conciliação”, entre as classes dominantes do Norte e do Sul. Com a retirada das tropas federais de ocupação do Sul, os ex-escravistas conquistavam a passada hegemonia sobre os ex-estados confederados. [GLEDHILL, 2020, 49, 84; WASHINGTON, 1900, p.119 et seq.; CLEMENTI, 1974.]

Mão de obra barata

Muito logo, o Instituto Tuskegee se estabeleceu em uma antiga fazenda escravista, comprada a baixo preço, mediante empréstimo concedido pelo general J.F.B. Marshall, Tesoureiro do Instituto Hampton. Limpado um campo inculto, professores e alunos plantaram oito hectares. Na continuação, foram organizadas olaria, marcenaria, fábrica de colchões, etc., tudo movido com a força de trabalho semi-gratuita dos alunos, em geral relutantes a mourejar com as mãos, o que haviam feito sempre, e vinham em busca de formação intelectual, ministrada a conta-gotas. [WASHINGTON, 1900, p.129-31.]

Dos quarenta prédios da escola, pequenos e grandes, prontos em 1900, trinta e seis teriam sido construídos com o suor dos estudantes, que buscavam, nas férias, desesperados, empregar-se, para arcar com o que deviam ao Instituto. [WASHINGTON, 1900, p.149.] A ênfase no ensino técnico era mais do que uma reação sadia à atração desmedida, na comunidade de libertados, por uma educação livresca e humanística, tida como talismã capaz de garantir uma progressão sem trabalho, como professores ou pastores, segundo propunha B.T. Washinton.

Era, também, por um lado, um espelhismo das ex-elites escravistas sulinas, com ampla formação livresca, e, por outro, uma resposta às possibilidades reais abertas transitoriamente pela Reconstrução. Durante aquele período, negros ocuparam responsabilidades políticas e administrativas no Sul, sob a proteção das forças militares nortistas.

Na proposta do jovem professor, enterrar a cara no trabalho na agricultura e em ocupações manuais, sem outras ambições profissionais, políticas e civis, era o melhor e único caminho para a emancipação da comunidade negra sulina, em um período distante e indeterminado. Sem almejar posições culturais, administrativas ou ocupacionais de destaque ou reivindicar direitos “civis e políticos”, os ex-cativos deveriam se tornar disciplinados e pacíficos agricultores, ferreiros, pedreiros, costureiras, etc., mormente a serviço das classes proprietárias brancas sulinas.

Assim o fazendo, prometia B.T. Washington e seus epígonos, os ex-cativos e seus filhos conquistariam, sem gritos e ranger de dentes, melhores condições de vida para si e o respeito dos seus novos senhores, que lhes concederiam, voluntariamente, sem sofrerem pressões, a plenitude dos direitos civis e políticos … quando considerassem que seus ex-cativos estavam em condições de exercê-la. Era tudo que as classes dominantes sulinas desejavam. Enquanto isso, seguiam sendo aplicadas duramente as celeradas Leis Jim Crow e os Códigos Negros, aprovados nas assembleias estaduais e concelhos municipais. E negros de todas as idades eram linchados nos estados sulinos, com destaque para o Alabama, com inusitados requintes de maldade. [CLEMENTI, 1974, p. 85 et seq.]

Os capitalistas abrem a guaiaca

A construção do Instituto Tuskegee, além do esforço duro de seus alunos, deveu-se, inicialmente, em boa parte, às doações, que realmente contavam, sobretudo das famílias ricas sulinas. Elas viam, mais habitualmente, nas propostas avançadas pelos institutos Hampton e Tuskegee, um caminho que garantiria a ordem e algum progresso para a comunidade negra mantida na submissão.

B. T. Washinton desfrutou sempre da confiança de largos segmentos ex-escravistas sulinos ricos e, muito logo, de capitalistas nortistas, também encantados com sua pregação contra a agitação social, contra a organização dos oprimidos, contra as greves e os agitadores profissionais. Esses doadores compartilhavam em geral a visão de uma maior ou menor inferioridade dos afro-descendentes, sem aderirem às visões extremistas supremacistas.

Os institutos privados Hampton e Tuskegee e semelhantes, sustentados pelas mensalidades e trabalho dos próprios alunos e por mecenas e filantropos, eram vistos e apresentados, pelos políticos e ideólogos racistas, como a melhor e única proposta por excelência de educação da população negra sulina, respeitosa dos princípios do apartheid e sem onerar as finanças públicas. B. T. Washington ingressou, com 25 anos, como diretor do Instituto Tuskegee, à frente do qual se manteve até sua morte, em 1915, conhecendo durante esse longo período condições sociais, políticas e econômicas de enorme destaque.

Em 1985, uns cem anos após sua fundação, o Instituo Tuskegee elevou-se ao status de universidade, sob o mesmo nome, o que contraditava a proposta pedagógica e a visão de mundo de seu fundador, que jamais possuiu um título universitário. Hoje, para viver, alimentar-se, alojar-se e seguir um curso de graduação na Universidade Tuskegee, um estudante deve desembolsar pouco menos de um milhão de reais, em cinco anos. O que não deve preocupar o jovem negro sem recursos e com pretensões universitárias. Ele pode, se arrolar, antes, nas forças armadas estadunidenses ou contrair, desde logo, financiamento estudantil. No primeiro caso, com sorte, volta fisicamente ileso de algumas das muitas guerras ianques. No segundo, ficará financeiramente aleijado para uma boa parte do resto de sua vida. [https://www.tuskegee.edu/]

Passando o chapéu

Após os primeiros anos, B. T. Washington pouco tempo dedicou-se à sala de aula, passando a maior parte de seu vida em palestras, encontros, conferências, visitas particulares, pedindo fundos, que jamais deixaram de regar abundantes sua horta. Ele terminou recebendo o apoio financeiro de filantropos e milionários de enorme peso, entre tantos outros, John D. Rockefeller, primeiro bilionário da história; George Eastman, fundador da Kodak; Andrew Carnegie, o “Rei do Aço”; Julius Rosenwald, um dos proprietários das lojas Sears; Henry H. Rogers, líder da Standard Oil e construtor de ferrovias.

Henry H. Rogers, um dos homens mais ricos dos Estados Unidos, não só abria sua polpuda carteira para Booker T. Washington, como o recebia amigavelmente em suas casas de veraneio e o levava em excursões em seu iate. Entre outras mordomias, Andrew Carnegie patrocinou viagem de Booker à Europa, onde tomou chá com a rainha Vitória, no castelo de Windsor, enquanto o imperialismo inglês explorava até a medula dos ossos suas colônias, possessões e protetorados africanos, folga dizer. [GLEDHILL, 2020, 85.]

Entre 1890 e 1915, ano em que Booker T. Washington faleceu, ele foi certamente o homem público negro de maior notoriedade e poder, gozando de enorme prestígio entre a população negra e das classes dominantes brancas. Em outubro de 1901, teria sido o primeiro negro convidado para jantar, na Casa Branca, com o presidente Theodore Roosevelt (1858-1919), recém-eleito. O convite foi objeto de violento ataque de políticos, jornais, etc. brancos sulinos, que obrigaram aos porta-vozes presidenciais a procurar reduzir a dimensão do convite, de um jantar protocolar a um simples lanche.

Entre tantos outros, Benjamin Tillman, líder do Partido Democrata e a seguir governador do Mississipi, de 1890 a 1894, vociferou que, com Booker jantando na Casa Branca, ela ficara “tão saturada pelo cheiro”, de um “nigger”, “que os ratos fugiram para os estábulos”. [DU BOIS, 2021, nota. 66.] O surto raivoso supremacista deixava claro que a aceitação relativa de B.T. Washington era para aquietar a comunidade negra regional e que não podia, em caso algum, elevar suas expectativas.

Edifício negro

Com suas relações, sucesso e, sobretudo, recursos econômicos, B. T. Washington construíu uma vasta “legião” de apoiadores “incondicionais” ao longo do país, organizados e não organizados, constituída por professores, pastores, jornalistas, escritores, espiões, lideranças comunitárias, homens de negócios negros, apoiando, reproduzindo e defendendo suas propostas. Controlava escolas, associações, jornais, editoras e por aí vai, servindo-se em forma desenvolta e implacável de sua rede de poder e de seus recursos milionários para ferir líderes e intelectuais negros que o questionavam. Booker, que desprezava os intelectuais, contratava em forma habitual ghost writers para escrever seus artigos, livros e biografias elogiosas sobre ele. [GLEDHILL, 2020, p. 98, 133.]

Seu prestígio consolidou-se e espraiou-se no Sul e nacionalmente com o célebre discurso, de 18 de setembro de 1895, realizado quando da inauguração da importante Exposição Internacional e dos Estados Algodoeiros, em Atlanta, na Georgia que, na virada para o século 20, possuía um milhão de “negros entre seus cidadãos”, mais do que qualquer outro estado dos USA. Estado em que eram habituais os linchamentos e violências de todo  tipo contra a população negra. [DU BOIS, 2021, p. 138.]

Meses antes daquele evento, Booker T. Washington recebera o convite para integrar uma comissão de em torno de vinte cinco proeminentes cidadãos brancos da Geórgia que viajariam a Washington D.C. para pedir ajuda federal para a Exposição Universal. Na comissão, havia três negros, B. T. Washington e dois bispos, todos eles homens tidos como de confiança. Na capital, defendeu com sucesso, diante de congressistas, que aquela iniciativa aproximaria e promoveria o “crescimento material e intelectual” das duas raças, a branca e a negra. [WASHINGTON, 1900, p.207.]

Como parte da Exposição, foi construído um pavilhão separado, como determinava o apartheid, o “Edifício Negro”, para se apresentar o “progresso do negro desde a liberdade”, no Sul. Tudo com o apoio e sob a influência de B. T. Washington. Os institutos Hampton e Tuskegee foram apresentados com destaque no “Edifício Negro”. Para registrar o “bom sentimento” que prevalecia “entre as duas raças”, a comissão de destacados cidadãos brancos da Geórgia decidiu que um orador negro falaria também na abertura da Exposição. Por unanimidade, como não podia deixar de ser, o escolhido foi B.T. Washington. [WASHINGTON, 1900, p.208.]

Um evento único

O discurso de um negro em um evento de tal dimensão, no Sul e na Geórgia, vergastados pelo apartheid, tratava-se de acontecimento único, de extrema relevância, despertando enorme curiosidade e expectativa sobre o conteúdo da elocução do escolhido, entre a comunidade branca e negra. B.T. Washington centrou seu discurso na necessidade da convergência dos esforços das duas raças para o sucesso da sociedade sulina.

Pediu ao empresário e ao industrial sulino que não contratassem operários chegados do norte nas novas indústrias, mas que empregassem o negro que, no passado, havia dado, segundo ele, provas de dedicação aos seus escravizadores. Em troca, a população negra sulina se manteria na submissão ao poder branco, até que este último, por moto próprio, decidisse conceder os direitos cidadãos que lhe haviam sido confiscados. E isso, quando a comunidade negra alcançasse as condições que, segundo a retórica racista, lhe faltavam para participar das decisões políticas.

 Booker T. Washington apresentou a proposta de repetir, na pós-escravidão, os cenários do passado apresentados falsamente como idílicos, pelos que haviam vivido da exploração do escravizado, caso os empresários e o industriais sulinos dos novos tempos contratassem negros: “[…] você e sua família estarão cercados pelas pessoas mais pacientes, fiéis, cumpridoras da lei e sem ressentimentos que o mundo já viu” – sempre segundo ele.

E, lembrava, que, na sua visão, o povo negro sulino  dera provas de pacifismo e domesticação, no passado, sob a escravidão. “[…] provamos a nossa lealdade [quando da escravidão] […], cuidando dos vossos filhos, vigiando junto ao leito dos doentes as vossas mães e pais, […] acompanhando-os até às sepulturas com os olhos marejados de lágrimas.” E concluía, prometendo, “na nossa humilde forma [de ser], estaremos ao seu lado com” “devoção”, “prontos para dar nossas vidas, se necessário, em defesa da sua” na nova fase da vida sulina.

O amor do escravizado pelo escravizador

Optando pelo trabalhador negro, o novo empresário do Sul não trataria com operários de “origem estrangeira e língua e hábitos estranhos”, mas com os “oito milhões de negros cujos hábitos” já conhecia, “cuja fidelidade e amor” havia testado nos conflituosos da Guerra Civil. Trabalhadores que, no passado, “sem greves e guerras trabalhistas, cultivaram seus campos [dos escravistas], limparam suas florestas, construíram suas ferrovias e cidades […] e ajudaram a tornar possível esta magnífica representação do progresso do Sul”. [WASHINGTON, 1900, p. 222; AMEUR, 2010.]

B. T. Washington abraçava a retórica dos negreiros, no passado, e de seus ideólogos igualmente hipócritas, na pós-escravidão, dos tempos felizes do cativeiro sulino, quando os escravizados se dedicariam em forma extremada, trabalhando disciplinada e incansavelmente, para seus amados algozes. Morrendo por eles caso fosse necessário. Passava a borracha sobre a história de violências sem fim, ordinárias e extraordinárias, quotidianas e episódicas, que os escravizados haviam sofrido nas mãos dos escravistas e de suas instituições.

Literalmente, deletava despreocupado a memória da incessante resistência do cativo sulino, por meio de inúmeras formas de luta: desamor ao trabalho, apropriação de bens e justiçamento de escravistas e capatazes; revoltas, insurreições, etc. Atirava para debaixo do tapete o esforço insano de libertação, de dezenas de milhares de cativos, através da fuga para o Norte. Obliterava os talvez quarenta mil ex-cativos que haviam dado a vida, ao aderirem às tropas da União, quando da Guerra Civil [1861-1865]. Ou os possivelmente mais de duzentos mil que trabalharam para as tropas federalistas. [APTHEKER, 1969, 393.] Fechava os olhos às incessantes e variadas violências contra a população negra que literalmente ocorriam enquanto discursava.

A oração de Booker T. Washington, além das classes dominantes sulinas, tinha também como alvo os industrialistas do Sul, já que, naquele momento, o “rico e dominante Norte, […] além de cansado de ter que lidar com o problema racial, estava investindo muito em empreendimentos no Sul e se mostrava aberto a qualquer forma de cooperação pacífica”, como lembrou, poucos anos mais tarde, W.E.B. De Bois, o principal crítico de esquerda de B.T. Washington e o mais arguto, erudito e consequente intelectual negro daqueles tempos. [DU BOIS, 2021, p.76.]

Negros minorados

B. T. Washington abraçou igualmente a visão sulista dos tempos da Reconstrução, no imediato pós-guerra, com negros pernósticos, ignorantes e oportunistas, participando da política dos ex-estados confederados, defendidos e manipulados por brancos nortistas interessados apenas em enricarem-se. Negros enfeitiçados por “uma poltrona no Congresso ou na legislatura estadual”, em vez de empregar-se como um trabalhador produtivo nos campos e nas cidades, em favor de seus ex-escravizadores – como propunha B. T.Washington.

Para o deleite dos brancos sulinos presentes, e não poucos racistas nortistas ausentes, Booker lançava água ao moinho das calúnias sobre a Reconstrução e os abolicionistas radicalizados. Afirmava que, naqueles anos, a população negra fora utilizada em forma oportunista “como ferramenta” para ajudar os “homens brancos [do Norte] a ocupar cargos públicos” e a punir os “brancos do Sul”, acompanhando a narrativa vitimista dos ex-escravistas. [WASHINGTON, 1900, p.84.]

A Reconstrução fora movimento que obtivera não poucos sucessos iniciais em favor dos negros libertados, nos últimos tempos da guerra e nos anos seguinte. Entre eles, alguma distribuição da terra prometida, efetivo exercício do direito de voto, representação parlamentar, postos na administração estadual, construção de escolas, entre outras iniciativas. Conquistas destruídas pela vitória do movimento restauracionista sulino, após 1875, fortemente apoiado por políticos nortistas conservadores e racistas. Booker T. Washington apresentava, como essência da Reconstrução, alguns indiscutíveis excessos marginais, de certo modo, inevitáveis, em tempos de forte conflito social. [CLEMENTI, 1974, p. 193 et seq.]

Sem os citar, Booker T. Washington propôs que os homens negros “mais sábios” haviam compreendidos que a “agitação das questões da igualdade social” era a “mais extremada loucura”, e que os direitos civis e políticos não deviam ser alcançados por meios de “forças artificiais”. Em outras palavras, com a pressão do Norte, tão temida pelos sulinos, exercida com algum sucesso durante a Reconstrução. Pressão do governo federal que poria fim ao apartheid, meio século mais tarde. Para propor a obtenção dos direitos plenos de cidadania, os afro-descendentes deviam, antes, estar “preparados” para poderem gozar o “exercício” dos “privilégios” que reivindicavam. [WASHINGTON, 1900, p.222.]

B. T. Washington fazia muito mais do que reafirmar as visões das classes dominantes sulinas, nos tempos da escravidão, de um trabalhador escravizado fiel e dedicado aos seus exploradores e torcionários. Em fins do século XIX, aliava-se aos defensores do apartheid, que propunham a falta de preparação dos negros para exercer a plenitude de direitos cidadãos que exigiam e pelos quais lutavam. Mais ainda, defendia a vocação e o destino do negro, mesmo em liberdade, aos trabalhos braçais especializados ou não. Praticamente aceitava a “suposta inferioridade das raças negras”. [DU BOIS, 1903, p. 76.]

Os dedos de uma só mão

Para que não sobrassem dúvidas sobre sua defesa de rendição geral, feita em nome da população negra, Booker subscreveu a proposta cínica das comunidades branca e negra, vivendo felizes, totalmente separadas, avançada pelo apartheid. Propôs que, na vida social, negros e brancos poderiam viver separados, cada um para o seu lado, “como os cinco dedos de uma mão”, mas deveriam se encontrar unidos, como a mão que une os dedos, no mundo produtivo, para o progresso material das duas raças. Progresso que entregava, sempre, muito mais do que a parte do leão, aos proprietários brancos. [WASHINGTON 1901; DU BOIS, 1903, p. 64.]

Em 1895, havia duas décadas, que chegara ao fim os anos da Reconstrução, quando foram propostas e ensaiadas a integração à vida política e a distribuição de terras entre a população negra que acabava de ser liberta. Entretanto, fora concomitante ao fim do conflito a reação das classes dominantes sulinas, muito logo apoiadas por conservadores e racistas do Norte. Elas reagiram com sucesso contra o impulso emancipacionista de uma população negra, que constituía a base essencial da força do trabalho no Sul, incapaz de atrair trabalhadores chegados da Europa.

Sobretudo desde a morte de Abram Lincoln, em 14 de abril de 1865, com o vice-presidente Andrew Johnson no governo, um racista de quatro costados, vencera a proposta conservadora nortista de autonomia política, dos ex-estados confederados e de suas classes dominantes, desde que verbalizassem o reconhecimento da autoridade e a indivisibilidade do Estado federal. Em tudo o demais, seriam estados autônomos, como os restantes do país. Decisão que abriu caminho à consolidação da hegemonia política dos ex-escravistas sobre os estados derrotados da ex-confederação. Com as mãos livres, mal acabara a guerra, começaram a ser votados, pelas assembleias legislativas sulinas, os “códigos negros”, tradicionais no Norte desde os tempos coloniais, regulando a vida dos negros livres.

Os “códigos negros” enquadravam despoticamente inúmeros aspectos da vida da população negra no Sul. Decidiam em que situações os negros podiam ser condenados literalmente a trabalhos forçados; a exploração de crianças negras, desde os seis anos, como aprendizes; as elevadas taxas e licenças para que negros praticassem certas atividades produtivas e comerciais; em alguns casos, a proibição que comprassem certos tipos de propriedades e por aí vai. Os supremacistas brancos sulinos afiavam as unhas, preparando o bote, dado a seguir.

Em 1874, com a retirada das tropas nortistas do Sul e fim da Reconstrução, foram adotadas as celeradas Leis Jim Crow, institucionalizando o apartheid. O nome foi devido à canção, cantada, e ao personagem “Jim Crow” [Jim Corvo], um velho negro andrajoso, meio idiota, protagonizado em um sentido satírico e racista, pelo humorista sulino Thomas Dartmouth Rice (1808 – 1860), com o rosto pintado de negro [“blackface”].

Função econômica do supremacismo branco

As Leis Jim Crown sancionaram a plena hegemonia das classes dominantes sulinas sobre os mais de três milhões de negros dos ex-estados escravistas sulinos, reforçando a restrição do direito do negro a votar; ampliando as dificuldades e proibições que praticassem inúmeras atividades econômicas; impedindo os casamentos inter-raciais; penalizando a convivência em restaurantes, cinemas, bibliotecas, escolas, vagões de trens; interditando o uso de mesmo bebedouros públicos e serviços sanitários, entre tantas outras proibições. As autoridades públicas e a Justiça passaram a defender explicitamente o supremacismo branco como querido pelo próprio Criador e apoiado nas leis. A Corte Suprema dos USA apoiou e jamais impugnou aquela legislação.

O calvário do negro no Sul após a guerra não nasceu de vontade de racistas brancos de judiar do negro, agora livre, por mero prazer, ainda que não poucos o fizessem por esse motivo. A institucionalização do supremacismo branco, que se esforçava para que a população negra o interiorizasse e respeitasse, pela força da violência, tinha um objetivo maior. O fim da escravidão, em 1 de janeiro de 1863, a derrota na Guerra Civil, em 1865, a promulgação da 13 Emenda Constitucional, no mesmo ano, puseram fim à feitorização de trabalhadores escravizados, assentando um golpe violentíssimo à economia sulina, devastada pela guerra e com centenas de milhares de mortos em combate.

Chegava ao fim o praticamente monopólio anterior do comércio mundial do algodão pelos estados sulinos que viam suas terras se esgotarem, sem poderem conquistar, como faziam tradicionalmente, novas terras férteis do Oeste, uma das razões centrais da Guerra da Secessão. [AMEUR, 2010; ENGELS & MARX, 1970, p. 32 et passim.] Após a guerra, outras nações passaram a exportar algodão e, em 1880, despencaram os preços internacionais da mercadoria.

A crise foi geral. A guerra se dera praticamente a sobre os territórios separatistas. A moeda confederada perdeu qualquer valor. O valor da terra caiu “abruptamente”, “especialmente nos estados mais decididamente” negreiros. Os plantadores ex-escravistas, tradicionalmente descapitalizados, não possuíam condições de reerguer e avançar tecnologicamente as plantações e, sobretudo, pagar salários monetários aos ex-cativos. Impôs-se, ao longo do Cinturão do Algodão, a entrega de pequenos lotes de terras a ex-cativos, sob a forma de arrendamento ou de contratos de parceria. [CLEMENTI, 1974, p. 129-138.]

Mesmo sob as condições escorchantes dos alugueis da terra, sob a forma de arrendamento ou de parcerias, as novas relações sociais de produção significavam para os ex-escravizados um avanço, ainda que relativo, se comparado aos tempos de escravidão. Elas não foram impostas aos ex-cativos, contra as suas vontades. Ao contrário, expressavam anseios dos mesmos, em se transformarem em camponeses livres. Ao cederem aos produtores livres boa parte da produção, por eles produzidos, os ex-proprietários escravistas viam suas rendas caírem. Impunha-se, portanto, criar as condições que impedissem reivindicações individuais ou, pior ainda, coletivas, de redução dos contratos de arrendamento e parceria.

Nova servidão

Entretanto, para reinventar a economia rural sulina, mesmo ao nível inferior ao passado, era necessário que os proprietários brancos mantivessem os três milhões de negros sulinos, em liberdade, acorrentados ao Sul, sob às duras condições de contratação e existência. A interiorização, pela população negra, do medo e do terror à nova ordem branca supremacista, era elemento semi-institucional da reorganização social postbellum, imprescindível a ela.

As ações planejadas ou erráticas de associações como a Ku Klux Klan, como os linchamentos, eram funcionais e necessárias ao bom funcionamento do apartheid e, portanto, da manutenção da população negra na submissão aos seus exploradores. A grande função do Klan era manter a população negra no Sul, impedir que reivindicasse salários mais elevados e, se fosse possível, reduzi-la às condições de antes da Guerra, ainda que, formalmente livre. [HAAS, 1966.]

Nesse processo, associava-se, igualmente, ao exercício do hard power, o soft power. Ou seja, por um lado, se mantinha a população negra no medo da repressão dura a qualquer desrespeito às instituições sulinas. Por outro, se procurava convencê-la que seu caminho era viver o melhor possível e aproveitar o que lhe oferecia uma realidade imutável. A larga tradição de tratamento paternalista dos tempos do cativeiro, sobretudo quanto aos cativos domésticos e em posições administrativas, era agora aplicada a alguns segmentos de afro-descendentes cooperativos, com prestígio e liderança.

O difícil exercício de convencimento doce da população negra, sobre a bondade da nova ordem, ou da inevitabilidade de se render a ela, contava com a colaboração de lideranças negras, de pastores, de pregadores itinerantes, de jornalistas, de ideólogos negros, remunerados pelos serviços prestados. Booker T. Washington não inventou a proposta de rendição inevitável como exclusiva estrada para a população negra, ele foi apenas seu mais brilhante e convincente defensor.

Sem pudor

Em 1894, quando da Exposição Universal de Atlanta, no Alabama, as propostas de voto universal, distribuição de terras, direitos civis para os ex-cativos, vistas pelos defensores da Reconstrução como meio de civilizar sociedade oligárquica que emergira da escravidão, e manter o monopólio político federal, eram vistas como questões do passado. Naquele então, as “lembranças e os ideais da guerra [civil]” eram objetos de calúnias e anatematizações sulinas, que se mantém, ainda hoje, por meio de justificativas e mediações variadas, como parte do senso comum de amplos setores da população e da historiografia estadunidense, não exclusivamente sulina. [DU BOIS, 2021, p. 63; CLEMENTI, 1974, p. 193 et seq.]

Quando do célebre discurso de B. T. Washington, em Atlanta, Georgia, imperavam soberanas as determinações do apartheid, de viverem “separados, mas iguais”, e os pogrons anti-negros não cessavam de se repetir. Propostas que gozavam de simpatia em amplos setores sociais no Norte, onde a questão negra assumia um caráter secundário, já que as necessidades de mão de obra eram supridas pela maré de trabalhadores chegados da Europa, não poucos ex-operários das indústrias do Velho Mundo.

O discurso de B. T. Washington consagrava, em nome da população negra regional, o respeito do apartheid como a única estratégia de desenvolvimento possível para aquelas comunidades oprimidas, nos estados sulinos. Propunha a renúncia da luta pelos direitos políticos e civis, que seriam concedidos – afirmava –, por iniciativa das classes dominantes brancas sulinas, quando elas julgassem que a comunidade negra tinha as condições culturais e materiais para gozá-los. Até chegar aquele momento, o que jamais ocorreu, deviam labutar como trabalhadores aplicados, disciplinados, obedientes e respeitadores, sob as ordens dos seus agora empregadores brancos.

Não em meu nome

Diante da exigência de lideranças e intelectuais negros conscientes, que se pronunciasse em forma clara e enérgica sobre a situação do negro no Sul, B. T. Washington propôs, sem tergiversação, que os direitos civis reivindicados não deviam chegar, como vimos, de pressão exercida desde ou Norte – “estrangeiras” ou “alienígenas” –, mas devido à concessão “pelos próprios brancos do Sul”.

Booker T. Washington foi mais fundo. Propôs que seriam, após a concessão, voluntária e sem pressão, dos direitos civis da população negra, os próprios brancos sulinos, que protegeriam o negro no “exercício” daqueles seus “direitos”. E, se isso não bastasse, afirmou, em 1894, na Georgia, a terra por excelência dos linchamentos, que “havia indícios” que o processo de outorga dos direitos da comunidade negra sulina, pelos racistas brancos, já começara, ainda que “em um grau ligeiro”. E o exemplo que deu foi seu sucesso e aceitação pelas ditas elites racistas sulinas. [WASHINGTON, 1900, p.235.]

O apartheid seria derrubado, um século mais tarde, devido à força da mobilização da população negra, sobretudo do Sul, apoiada por abolicionistas brancos radicalizados. Na decisão pesou, igualmente, a necessidade político-ideológica do imperialismo ianque, em sua luta mundial contra o socialismo, constrangido em apontar a sociedade estadunidense como paradigma maior, enquanto se escutavam o ressoar indiscreto dos grilhões da escravidão assalariada no país. “Os inimigos dos Estados Unidos não perdiam uma ocasião de registrar a impostura de uma da política exterior”, a “exportação da ‘democracia’”, à qual a população negra não tinha direito. [CLEAVER, 1969, p. 8; LIGHTFOOT, 1969.]

 Resumindo. B. T. Washington aconselhava o negro sulino a “comportar-se modestamente em relação às reivindicações políticas”, esperando conquistar com seu trabalho manual alguns ganhos econômicos e a confiança de seus opressores. Prometia que, após percorrer a longa estrada sem fim da servidão voluntária, os racistas e exploradores sulinos lhe concederiam, por moto próprio, sem pressões, o “pleno reconhecimento dos seus direitos políticos”, como vimos. E mais, seriam os protetores da liberdade concedida, como haviam policiado o confisco da mesma. Aceitava como justo e necessário a limitação do direito de voto no Sul àqueles que fossem proprietários ou tivessem educação institucional, ou ambas. [WASHINGTON, 1900, p.235.]

Agitadores trabalhistas profissionais

Booker T. Washington não apenas apoiava o apartheid, como era contra as greves operárias, declarando em sua autobiografia que os “mineiros” do Estado da Virgínia “estavam em pior situação, no final de uma greve”, e que teria conhecido, naquela região e na greve à qual se referia, “mineiros que tinham um dinheiro considerável no banco”, que desaparecera, sob a influência de “agitadores trabalhistas profissionais”. Propunha que os “interesses” dos “empregadores e empregados” seriam os “mesmos”. [WASHINGTON, 1900, p.69, 172.] Palavras que acarinhavam seus protetores milionários do Norte.

O discurso de B. T. Washington no Alabama, conhecido como o “Consenso” ou o Acordo de Atlanta”, recebeu uma calorosa recepção entre os ouvintes brancos racistas da Exposição e foi divulgado amplamente nos jornais do Sul, com editoriais e artigos elogiosos. O acolhimento também positivo no Norte, facilitou os contatos de Booker no coração territorial do mundo capitalista, de onde chegaram doações polpudas. As instalações de sua escola cresceram e ele construiu-se uma imponente moradia senhorial de três andares, no campus do Instituto Tuskegee, onde recebia visitantes ilustres.

 A proposta de rendição de fato da comunidade negra ao apartheid recebeu, muito logo, algumas críticas duras de intelectuais e lideranças negras. Era preciso ser corajoso para criticar uma verdadeira vaca sagrada, com garras de leão. As críticas foram rapidamente semi-sufocadas devido ao sucesso de muitas iniciativas de Booker, onde outros haviam falhado, e sobretudo pela força do consenso que ele despertava, embalado pelo apoio recebido do mundo político e empresarial branco, sulino e nortista.

Contra o “Consenso de Atlanta”

 Em 1897, o intelectual negro William Edward Burghardt Du Bois – W.E.B. Du Bois –, nascido em Massachusetts, em 1868, doutor por Harvard e Berlim, por longos anos professor universitário, reconsiderou a primeira avaliação que fizera do discurso de Atlanta, em 1895, e rompeu as relações com B. T. Washington, sofrendo as retaliações habituais aos dissidentes. Sobretudo, criticou-o por suas propostas anti-intelectuais, anti-políticas, contra a luta pelos direitos políticos e civis e de integração da população negra sulina na subalternização. Du Bois, um escritor de mão cheia, propunha ser B. T. Washinton o “sulista mais notável desde Jefferson Davis”, o presidente da Confederação dos estados sulinos derrotados! [FOHLEN, 1973, p. 39.]

Em 1903, Du Bois publicou The Souls of Black Folk [As almas do povo negro, na edição brasileira que utilizamos], estudo clássico sobre a questão negra estadunidense. Em um verdadeiro ato de coragem, dedicou um capítulo do livro à crítica geral das propostas de Booker – “Sobre o sr. Booker T. Washington e outros”. Registrou o problema, e o perigo, em questionar a ação de um homem público negro que ele propunha ser, naquele então, o “único porta-voz reconhecido por seus 10 milhões de pares [população negra estadunidense], e uma das figuras de destaque em um país de 70 milhões de habitantes”. [DU BOIS, 2021, p. 66.]

Du Bois chamava a atenção para que, tamanha era a força do extremismo supremacista branco no Sul, que a população sulina negra corria o perigo de ser  reduzida à “semiescravidão”, em especial nas zonas rurais, devido à “pressão dos capitalistas”. Para ele, a pregação de B. T. Washington desarmava o esforço pela conquista dos direitos políticos e civis, reforçava a proposta da inferioridade racial do negro e lançava a responsabilidade de seu progresso sobre suas próprias forças. [DU BOIS, 2021.]

O valioso artigo de Du Bois sobre B. T. Washington registrava igualmente sua concordância crítica com o programa de emancipação da população negra sulina pela “educação pelo trabalho” profissionalizante, proposta por B. T.Washington, desde que universalizada e complementada com escolas médias-superiores e superiores para os jovens negros mais capacitados. Sem deixar de lado a imprescindível reivindicação do direito pleno ao voto e à totalidade dos direitos civis e políticos da população negra sulina, que Booker propunha como negativa.

Direitos à riqueza

Na virada do século XIX ao século XX, nos Estados Unidos, era difícil a compreensão plena dos mecanismos econômicos-sociais profundos da ordem capitalista que mantinham, uma enorme parcela da população negra, na submissão econômica e social. Realidade que, mutatis mutandis, ela vive, em outro nível, até hoje, mesmo após a conquista dos direitos civis, nos anos 1950. O único programa factível de emancipação econômica substancial da comunidade negra sulina, na época em que Du Bois escrevia, era a retomada e generalização da pouca distribuição de terras entre os ex-cativos, ensaiada quando da Reconstrução, com apoio de instituições financeiras aos novos agricultores.

Um programa difícil de ser avançado em decorrência da concordância, em níveis diversos, com as visões de mundo racistas, de forte parcela da classe trabalhadora branca sulina e nortista, em boa parte consolidadas por considerações defensiva do mercado de trabalho, sem fundamentos e difundidas pelo mundo do capital. Entretanto, mesmo naquela época, Du Bois desvela, em detalhes, em destaque no capítulo “Sobre o Cinturão Preto”, de seu livro referido, as relações sócio-econômicas de dominação que mantinham na miséria a população rural sulina.

Em 1905, dois anos após a publicação de The Souls of Black Folk, Du Bois avançou em direção da construção de uma crítica sistemática e organizada das posições de B.T. Washington, convocando reunião de jovens negros radicalizados, em um hotel em Niagara Falls, no Canadá, após não terem sido aceitos, em hotel, na margem estadunidense. O grupo, que assumiu a denominação de movimento Niagara, sob a direção de Du Bois, estabeleceu um programa que reivindicava a abolição da distinção de raças, os direitos políticos plenos, a dignidade dos trabalhadores negros e se pronunciava duramente contra o apartheid, os linchamentos, a opressão e discriminação da população negra no trabalho. Ou seja, uma plataforma política em radical e explícita oposição à orientação de B.T. Washington.

Celebrando a violência revolucionária

Em agosto de 1906, o movimento Niagara organizou uma segunda reunião para celebrar o nascimento de John Brown, o abolicionista branco, com atuação radical extrema contra os escravistas e a escravidão. Em 25-26 de maio de 1856, John Brown e seus familiares e seguidores, negros e brancos, ficaram conhecidos nacionalmente ao promoveram o chamado “Massacre de Pottawatomie”. Eles  executaram, a sangue-frio, cinco empedernidos escravistas, durante a “Guerra do Kansas”, que definiu o caráter livre daquele estado. O ataque terrorista aterrorizou literalmente os escravistas terroristas do Kansas, pondo-os na defensiva. Ato definido, mais tarde, pelo ex-escravo fugido e destacado líder abolicionista Frederick Douglas, como “um remédio terrível para uma doença terrível”. [SCHENONE, 1984; DOUGLASS, 1962, 1982.]

Após sua participação vitoriosa na Guerra do Kansas, John Brown organizou assalto armado contra o arsenal federal de Harper´s Ferry, no noroeste do estado da Virgínia, outra vez com familiares e abolicionistas negros e brancos, pensando iniciar luta armada que levasse à sublevação geral dos escravizados. Após conquistarem o arsenal, os abolicionistas radicalizados foram derrotados por tropas federais, em duro combate, em que morreram, entre outros, dois  filhos de John Brown.

Em 2 de dezembro de 1859, John Brown foi enforcado, às portas do início da Guerra Civil. Durante aquele confronto, nas marchas das tropas e nos acampamentos, soldados unionistas entoavam a canção “John Brown Body’s” [O cadáver de John Brown], conscientes que continuavam a saga do velho abolicionista, na luta armada na Guerra no Kansas e no assalto ao arsenal de Harper`s Ferry. Foi precisamente, no campo de honra de Harper`s Ferry que o grupo Niagara se reuniu, para sua segunda reunião, dedicada ao abolicionista radical. [DU BOIS, 2021, nota 113.]

Nascimento da N.A.A.C.P.

 Em 1909, um grupo de anti-racistas organizados, em maioria brancos, chamou um encontro para celebrar o aniversário de nascimento de Abraham Lincoln. Entre os convidados encontrava-se o grupo Niágara. Na reunião, se definiu as bases para uma “Associação Nacional para o Progresso da População de Cor”, eufemismo então em uso para não utilizar o termo africano ou negro [nigger], tidos como depreciativos. A Associação, multi-racial, se mobilizou pela luta pela educação e defesa dos direitos gerais e particulares da população negra. As tensões entre a N.A.A.C.P. e Booker jamais cessaram de crescer.

Atuando sobretudo no plano jurídico e nas cidades, a N.A.A.C.P. abriu escritórios através dos Estados Unidos e se distinguia, inicialmente, por contratar advogados negros para defender a comunidade afro-descendente nos tribunais. Realidade tratada pela cinematografia estadunidense. Entretanto, mesmo ampliando o número de seus associados e de sua intervenção, como outras associações de defesa e promoção da comunidade negra que surgiram na transição do século XIX ao XX, a N.A.A.C.P. alcançou poucos resultados ao se confrontar com a coesão do Apartheid no sul dos EUA, que contava com importantes apoios no norte. [FOHLEN, 1973: 36-41.]

Pouco mais de três décadas após sua fundação, quando se acirrou a luta pelos direitos civis e políticos da população negra, a N.A.A.C.P. contava já com quinhentos mil de associados. A seguir, teria um importante papel na luta final pelos direitos civis da população afro-descendente. Rosa Parks [1913-2005], a trabalhadora negra que se celebrizou ao ser presa por se negar a ceder seu lugar a um branco, em um ônibus público, na cidade de Montgomery, no Alabama, era militante e ativista da Associação.

Du Bois, um dos pais do chamado pan-africanismo, participou intensamente da direção da N.A.A.C.P., onde, nos primeiros tempos, a maioria dos diretores era branca. Ele foi, desde o início, editor do jornal A Crise, da N.A.A.C.P, que, com um primeiro número em 1910, alcançou uma tiragem de cem mil exemplares. Autor de uma obra monumental, o intelectual e militante negro estadunidense terminou sua longa e profícua vida na República do Gana, por convite de Kwame Nkrumah [1909-1972], um admirador de sua pregação, líder do movimento de descolonização daquele país e seu primeiro presidente, de 1960-66.

Partido Comunista dos EUA

Du Bois faleceu, em 27 de agosto de 1963, em Acra, capital da República do Gana, aos 95 anos. Dois anos antes de morrer, vendo aproximar o fim de seus dias, completou sua marcha em defesa do socialismo, inscrevendo-se no Partido Comunista dos Estados Unidos. Nesse momento, crescia exponencialmente a luta naquele país contra a intervenção do Vietnã e, três anos mais tarde, em 15 de outubro de 1966, na cidade de Oakland, no norte da Califórnia, dois jovens negros, Huey Newton [1942-1989], e Bobby Seale [1936], fundavam o Partido Pantera Negra para a Autodefesa, mais tarde, Partido Pantera Negra. Entre as leituras referenciais dos dois universitários negros estava, com destaque, Du Bois. Ao contrário, B.T. Washington era visto como um traidor da população negra empobrecida.[ABU-JAMAL, 2006; CLEAVER, 1970.]

No Sul e no país, o prestígio de B. T. Washington e de sua pregação cresceram apoiados na multiplicação de escolas rurais elementares pagas para negros, fundadas com recursos de financiadores milionários, onde lecionavam professores negros, que abraçavam as teses do dito “Acordo de Atlanta”, ou seja, a acomodação da população ao apartheid. Para além dos alunos formados nas escolas privadas negras que alcançaram algum sucesso, uma minoria no verdadeiro mar de necessitados, a materialização e a filosofia da pregação de B. T. Washington fortaleciam o separatismo racial e dificultavam a luta pela integração racial das escolas públicas, obtida pela mobilização da população negra e de abolicionistas brancos, nos anos 1960, como lembrado.

O prestígio e o poder de B. T. Washington conheceram um forte contra-golpe, entre a população negra e seus apoiadores e financiadores brancos, com os graves conflitos inter-raciais, em agosto e setembro de 1906, nas cidades de Atlanta, capital da Geórgia, onde Booker T. Washington apresentara sua célebre proposta, o “Acordo de Atlanta”, e Brownsville, no Texas, quando racistas e supremacistas brancos se lançaram com furor sobre a população negra, assinalando a falácia das propostas de B.T. Washington sobre a submissão estratégica ao apartheid para a sua superação. Nos anos 1960, com o acirrar da militância negra nos EUA, B. T. Washington era frequentemente acusado de ser um “Pai Tomás” da vida real, que vendera sua alma pelo prestígio, glória e sucesso econômico.

Diga-me com quem andas

Em 1911, a “reputação moral” de Booker T. Washington passou a ser questionada, quando foi preso, após ser agredido, sob acusação de comportamento impróprio com a esposa branca – em verdade, amante – de um zelador branco metido a valentão. Apesar de ser o agredido, foi Booker T. Washington que terminou na prisão. O problema surgiu ao ter dificuldade em explicar o que fazia, um homem casado, em um domingo, em um bairro branco, ao lado de zona de prostituição de Nova York. Acredita-se que procurasse uma prostituta branca ou, mais possivelmente, sua amante, também branca.

Foi acusado também de farsante e hipócrita, ao “querer manter o negro num baixo escalão acadêmico, com a educação exclusivamente profissionalizante”, mas de ter mandados seus “filhos para excelentes faculdades”. O que não lhes garantiu o “sucesso acadêmico” que o pai “deve ter sonhado”. Financiou, igualmente, os estudos de sua filha, em piano, com professor particular, na Alemanha, quando ela fracassou nos estudos nos USA. Ainda jovem, garantiu a formação de seu irmão e irmã, orgulhando-se do sucesso profissional que alcançaram. [GLEDHILL, 2020, 100 et seq; Washington, 1901.]

B. T. Washington faleceu, em 14 novembro de 1915, aos 59 anos, sendo-lhe rendido amplos tributos pelas classes dominantes a quem sempre servira, com destaque para as sulinas. “Quando faleceu, era proprietário de pelo menos duas casas, uma no estado de Nova York e outra no campus do Instituto Tuskegee”, já referida. Um seu empedernido desafeto, propôs que, após sua morte, uma “professora do Instituto […] se suicidou, saltando de um prédio no campus […]”. Certo ou errado, Booker especializara-se em se casar com professoras da instituição. [GLEDHILL, 2020, 100-103.] Apesar de seu falecimento, ainda por longos anos, manteve-se intocado o seu larguíssimo prestígio entre a população negra, apoio e aceitação que tenderam a declinar fortemente, quando se acirraram as lutas da comunidade negra pelos direitos civis e sociais, após a II Guerra Mundial.

Em direção aos fins dos tempos

Em fim da década de 1980, o mundo conheceu retração geral das lutas sociais e do mundo do trabalho, com a vitória mundial da contra-revolução liberal, propondo o “fim da história”, a morte da emancipação social, a eternidade da exploração capitalista. Nesse descambar da civilização lomba abaixo, nos Estados Unidos, retomaram vigor as propostas derrotistas de integração e acomodação social das populações exploradas negras à ordem capitalista.

Como parte desses novos tempos que nasceram envelhecidos e senis, empreendeu-se larga campanha de resgate da anatematização que conhecera a pregação derrotista e colaboracionista de B. T. Washington, no passado recente, quando do avanço das lutas anti-racistas e sociais nos EUA. Corolário da campanha de ressuscitação de B. T.Washington tem sido a desconstrução, ainda que, em geral, oblíqua, de W.E.B. Du Bois, intelectual luminar da comunidade negra nas três Américas. [GLEDHILL, 2020, p. 140.]

Propõe-se, como é tradicional, que os atos tortos de B. T.Washington devem ser compreendidos no espírito de sua época, na procura de abrir caminho para elevá-lo, aos trancos e barrancos, como pioneiro e referência do “empreendedorismo” negro de nossos dias, hoje mais ambicioso do que o seu, pra lá de rasteiro. O empreendedorismo e identitarismo negros são, atualmente, política de ponta do Partido Democrata e do imperialismo. Tudo roupagem embolorada do passado, postas ao sol, para um novo uso como traje de festa.

Rendição social que procura encantar novamente a comunidade popular negra, contando, para tal, folga dizer, hoje, com o apoio do Estado e dos grandes monopólios capitalistas, como no passado. E como é assaz normal entre nós, a volta, nos EUA, da louvação de B. T. Washington, sob as asas do Partido Democrata, como sempre, é aclimada, em forma atabalhoada, aos já intoxicados ares do Brasil, apresentando-o como figura negra de destaque a ser seguida. Vamos acender uma vela ao Negrinho do Pastoreio para que surja, entre as centenas de B. T. Washinton tupiniquins, ao menos um, um zinho que seja, De Bois tupinambá.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).

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