Um alívio para Julian Assange

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARIQ ALI

O sistema judicial britânico tem um histórico horripilante quando se trata de lidar com “inimigos do Estado”. Isto é porque ele foi criado para ser um inimigo do povo

A decisão do Supremo Tribunal de permitir que Julian Assange recorra de sua extradição pendente é uma vitória importante, ainda que parcial. Os juízes estão conscientes de que, na verdade, ele não tem um caso para responder. A acusação dos EUA de “espionagem” é um disparate flagrante. O fato de ainda não ter sido rejeitada e Julian Assange libertado é um sinal da subordinação generalizada do Reino Unido aos interesses americanos.

Todo o crédito deve ser dado à campanha internacional para libertá-lo – em particular, à firme determinação de sua mulher, Stella Assange – e à desconstrução forense incontestável de Nils Melzer de todo este caso sórdido. O The New York Times e o Guardian, ambos barômetros da opinião obsequiosa, reconheceram o absurdo das acusações. Até mesmo a classe política australiana, normalmente servil, votou para exigir sua libertação. (“A história”, escreveu Engels, “é feita de tal forma que o resultado final surge sempre de conflitos entre muitas vontades individuais, cada uma das quais, por sua vez, tornou-se o que é por uma série de condições particulares de vida”).

O único “crime” de Julian Assange foi expor um crime. Tornar disponíveis as provas das brutalidades dos EUA no Iraque. E ele só pôde fazer isso porque Chelsea Manning lhe forneceu o explosivo vídeo “Collateral Murder” além de outras informações vitais. Desde então, ela recuperou a liberdade, enquanto Julian Assange continua apodrecendo em Belmarsh. Em primeiro lugar, um Ministério Público imparcial não o teria perseguido. Em 2013, os suecos estavam dispostos a abandonar o caso. Mas o Ministério Público [Crown Prosecution Service], liderado por Starmer, pediu-lhes que o mantivessem aberto.

Ele e seus colaboradores voaram para os EUA, onde conspiraram com a administração de Barack Obama – embora os documentos relacionados com estas viagens tenham sido escondidos ou destruídos. Tal como criminosos convictos, Starmer e seus colegas não queriam que qualquer detalhe vazasse ao público. Que este sujeito seja agora o chamado “Líder da Oposição” – aplaudido pelo establishment por ter se livrado do grupo de Corbyn, restaurado a velha guarda blairista e apoiado o genocídio israelense – não é de surpreender. Seu treinamento para se tornar o próximo primeiro-ministro aceitável começou com a incriminação de Julian Assange.

Outra decisão terrível e vingativa foi a de manter Julian Assange fechado numa instalação de segurança máxima, com períodos prolongados de confinamento solitário que equivalem a uma autêntica tortura. A explicação oficial foi que ele não pagou a fiança, o que poderia explicar a recusa em libertá-lo; mas uma prisão aberta, como as que são utilizadas para manter criminosos financeiros, teria sido certamente suficiente. A verdadeira razão era que os serviços secretos queriam que ele fosse castigado e humilhado. Como resultado, o jornalista do WikiLeaks está tão doente que não pôde comparecer às duas últimas audiências em tribunal. Será que esperam que ele morra antes do último recurso?

Há cinco anos, de sua cela na prisão, Assange escreveu a um amigo: “Estou intacto, embora literalmente rodeado de assassinos, mas os dias em que eu podia ler, falar e me organizar para defender a mim mesmo, meus ideais e minha gente acabaram! Todas as pessoas devem tomar meu lugar. Estou indefeso e conto com você e com outros de bom caráter para salvarem a minha vida… A verdade, em última análise, é tudo o que temos”.

A verdade por si só nunca é suficiente, especialmente neste mundo vil de padrões duplos do Ocidente. O sistema judicial britânico tem um histórico horripilante quando se trata de lidar com “inimigos do Estado”. Isto é porque ele foi criado para ser um inimigo do povo.

*Tariq Ali é jornalista, historiador e escritor. Autor, entre outros livros, de Confronto de fundamentalismos (Record). [https://amzn.to/3Q8qwYg]

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no blog da New Left Review.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Mísseis sobre Israelmíssel 07/10/2024 Por MÁRIO MAESTRI: Uma chuva de cintilantes mísseis iranianos cortando os céus de Israel, passando pelo mítico Domo de Ferro, como a farinha por peneira
  • Pablo Marçal na mente de um jovem negroMente 04/10/2024 Por SERGIO GODOY: Crônica de uma corrida de Uber
  • A poesia no tempo dos incêndios no céucultura quadro branco 04/10/2024 Por GUILHERME RODRIGUES: Considerações sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade
  • Annie Ernaux e a fotografiaannateresa fabris 2024 04/10/2024 Por ANNATERESA FABRIS: Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Mar mortocultura cão 29/09/2024 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Comentário sobre o livro de Jorge Amado
  • Ultrapassando os limites constitucionaissouto-maior_edited 06/10/2024 Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Luís Roberto Barroso leva adiante a sua verdadeira Cruzada, destinada a atender a eterna demanda do setor empresarial de eliminação do custo social da exploração do trabalho
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Profetas do enganobola de cristal 04/10/2024 Por SAMIR GANDESHA: A massa dos frustrados e o “pequeno-grande homem”
  • Fredric Jameson — maior que a vidafrederic 05/10/2024 Por SLAVOJ ŽIŽEK: Jameson foi o derradeiro marxista ocidental, que atravessou destemidamente os opostos definidores de nosso espaço ideológico

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES