Até os dicionaristas pererecam para definir palavras

Imagem: Brett Jordan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCELO MÓDOLO & HENRIQUE SANTOS BRAGA*

A riqueza da linguagem regional e os diferentes registros linguísticos

Um bom linguista sempre anda de ouvidos atentos para a fala cotidiana, lugar onde a língua é realizada sem muitos freios, com “a contribuição milionária de todos os erros”, como já dizia Oswald de Andrade. Foi com a fala cotidiana que Dona Araci, moradora da interiorana cidade de Cerquilho (SP), chamou-nos a atenção, relembrando um verbo bastante comum por lá: o “pererecar”, em frases como “Por que você está pererecando para lavar esta louça?”.

 

“Pererecar” existe?

Leigos sobre o funcionamento das línguas vinculam o registro em dicionários à própria existência dos vocábulos, como se a língua surgisse apenas após ser referendada por eruditos – contrariando inclusive a visão mítica segundo a qual “no início era o verbo”.

No caso de “pererecar”, os principais dicionários de língua portuguesa registram o termo, mas parecem desconhecer essa acepção utilizada por moradores de diferentes regiões interioranas do país.

Para Cândido de Figueiredo (1913), “pererecar” é brasileirismo, verbo intransitivo, no sentido de mover-se vertiginosamente de um lado para outro; ficar desnorteado. Já Caldas Aulete (1945) também registra o verbo como brasileirismo, intransitivo, no sentido de mover-se de um lado para outro vertiginosamente; (fig.) ficar desnorteado. Também com a acepção de saltitar, dar pulos (usado para se referir ao movimento de um pião).

Dicionários mais recentes (é o caso do Houaiss) parecem reproduzir os predecessores, ampliando um pouco seu campo semântico: andar às tontas, desnorteado, aturdido; dar saltos (o pião); saltar repetidas vezes (o jogador), e de modo inesperado, para fugir às disputas de bola; saltar, quicar (a bola) de modo inesperado, fugindo ao controle do(s) jogador(es).

Como mostram esses exemplos, o sentido com que o verbo é empregado no interior paulista — o de “ter dificuldades para algo”, “penar para realizar uma tarefa” — ainda não está contemplado em importantes obras de consulta.

 

De onde surge o termo?

Esse simpático verbo parece ser decorrência de seu étimo tupi perereg (origem também do termo “perereca”), que significava mover-se de um lado para outro vertiginosamente para conseguir alguma coisa – como se livrar de um perigo, ou agarrar um animal.

No emprego cerquilhense, quem “perereca” está, em sentido figurado, “movendo-se vertiginosamente”, dada a dificuldade de realizar uma ação. Exemplos de Amadeu Amaral, em seu O dialeto caipira (1920), abonam essa hipótese: “Este pião perereca demais.”, “Pererequei pra agarra o diabo do cavalo, quando êle se espanto.”, “Ando pererecando pra arranja uns cobre, mais tá dificel.”.

 

Língua e pertencimento

O material linguístico estudado por Amaral refere-se predominantemente aos municípios de Capivari, Piracicaba, Tietê, Itu, Sorocaba e São Carlos, mas é interessante aprender com o autor que o dialeto caipira era muito usado em toda a Província de São Paulo, não apenas pela maioria da população, mas também por uma minoria culta – o que deu aos paulistas a fama de “corromperem o vernáculo”, com seus “vícios de linguagem”. Ainda vivo em alguns lugares interioranos, o assim chamado “dialeto caipira” é um dos remanescentes do semicrioulo dos tupis e caboclos do Brasil-Colônia (ou seja, uma espécie de fusão dessas diferentes línguas), regado por muitas estruturas arcaizadas da língua portuguesa.

As características marcantes e influentes do dialeto da região, juntamente com sua rica produção cultural, parecem ser o que mantém a sua sobrevivência: é como se os falantes, conscientes de sua fala, a preservassem por uma questão de identidade e se tornassem, numa perspectiva da análise de discurso, narradores-produtores.

Em tempos de comemoração de 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, não custa lembrar-se também de alguns precursores – no campo linguístico – que valorizaram nossa linguagem regional. Mas reiteramos que a própria Dona Araci funcionou, neste caso, como “madeleine proustiana” dessa relação.

*Marcelo Módolo é professor de filologia na Universidade de São Paulo (USP).

*Henrique Santos Braga é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.

Publicado originalmente no Jornal da USP .

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Salem Nasser Daniel Costa Kátia Gerab Baggio Jean Pierre Chauvin Caio Bugiato Thomas Piketty Vanderlei Tenório José Micaelson Lacerda Morais Eleonora Albano Francisco Fernandes Ladeira Yuri Martins-Fontes Armando Boito Gerson Almeida Annateresa Fabris Luiz Renato Martins Gabriel Cohn Renato Dagnino Igor Felippe Santos Atilio A. Boron Henri Acselrad Leda Maria Paulani Jorge Luiz Souto Maior Marcos Silva Roberto Noritomi Bruno Fabricio Alcebino da Silva Lorenzo Vitral Walnice Nogueira Galvão Luis Felipe Miguel José Geraldo Couto Marcelo Módolo José Dirceu Jorge Branco Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Lima Castro Tranjan Otaviano Helene Andrew Korybko Luís Fernando Vitagliano Eugênio Trivinho Luiz Werneck Vianna Valerio Arcary Mário Maestri Juarez Guimarães Michael Löwy Tadeu Valadares Marcus Ianoni Flávio R. Kothe Maria Rita Kehl Ricardo Abramovay Dênis de Moraes Alexandre Aragão de Albuquerque Paulo Nogueira Batista Jr Ronald León Núñez Manchetômetro André Márcio Neves Soares Eduardo Borges Paulo Capel Narvai Daniel Brazil Afrânio Catani Julian Rodrigues Michael Roberts Slavoj Žižek João Adolfo Hansen Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Loebens Berenice Bento Chico Alencar Heraldo Campos Priscila Figueiredo Lucas Fiaschetti Estevez Sandra Bitencourt Eleutério F. S. Prado Anselm Jappe Francisco Pereira de Farias José Costa Júnior Chico Whitaker João Feres Júnior Eliziário Andrade Paulo Martins Matheus Silveira de Souza Fernão Pessoa Ramos João Lanari Bo Luiz Eduardo Soares Ronaldo Tadeu de Souza Jean Marc Von Der Weid Paulo Sérgio Pinheiro Luciano Nascimento Luiz Bernardo Pericás Antonino Infranca Marcos Aurélio da Silva Bruno Machado Elias Jabbour Samuel Kilsztajn Denilson Cordeiro José Luís Fiori Rafael R. Ioris Ladislau Dowbor Fábio Konder Comparato Ricardo Musse Mariarosaria Fabris Claudio Katz Gilberto Lopes Antonio Martins João Carlos Salles Fernando Nogueira da Costa Manuel Domingos Neto Flávio Aguiar Sergio Amadeu da Silveira Bernardo Ricupero Airton Paschoa Vladimir Safatle Vinício Carrilho Martinez Roberto Bueno João Sette Whitaker Ferreira Tales Ab'Sáber Carla Teixeira Dennis Oliveira Milton Pinheiro Francisco de Oliveira Barros Júnior Osvaldo Coggiola Luiz Marques João Paulo Ayub Fonseca Leonardo Boff Luiz Roberto Alves Rubens Pinto Lyra Daniel Afonso da Silva André Singer Valerio Arcary Remy José Fontana Paulo Fernandes Silveira Boaventura de Sousa Santos Marilena Chauí Bento Prado Jr. Alexandre de Freitas Barbosa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ricardo Antunes Carlos Tautz Luiz Carlos Bresser-Pereira Celso Favaretto Celso Frederico Ronald Rocha Lincoln Secco Anderson Alves Esteves Ricardo Fabbrini Rodrigo de Faria José Machado Moita Neto Antônio Sales Rios Neto José Raimundo Trindade Leonardo Sacramento Henry Burnett Eugênio Bucci Gilberto Maringoni Marjorie C. Marona Benicio Viero Schmidt Liszt Vieira Ari Marcelo Solon Érico Andrade Alysson Leandro Mascaro Tarso Genro Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Avritzer

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada