Carlos Diegues (1940-2025)

Foto: Arthur Moura - Ppghs-FFP-UERJ
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Por VICTOR SANTOS VIGNERON*

Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues

1.

No réveillon de 1993, Carlos Diegues fez um desabafo a Caetano Veloso. Segundo relata em sua biografia (DIEGUES, 2014), o que o levou a despejar a mágoa nos ombros do cantor não foi tanto a paralisia da produção cinematográfica com a extinção da Embrafilme no primeiro dia do governo de Fernando Collor. Sua tristeza nascia, antes, do papel de judas da cultura brasileira que, a seu ver, era imputado ao Cinema Novo.

Qual não foi sua surpresa quando, meses depois, Caetano e Gilberto Gil lançaram Tropicália 2, cuja celebração do disco Tropicália ou Panis et circensis (1968) se desdobrava na segunda faixa, “Cinema Novo”: “O filme quis dizer / Eu sou o samba / A voz do morro rasgou a tela do cinema / E começaram a se configurar / Visões das coisas grandes e pequenas / Que nos formaram e estão a nos formar”.

Carlos Diegues insiste na efeméride: 1993, isto é, trinta anos depois da conclusão dos primeiros longas-metragens do movimento – Vidas secas (1963), por exemplo, mas também seu longa de estreia, Ganga Zumba (1964). Agora, porém, o Cinema Novo se via enredado pelo tempo. A Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual restabeleceram o financiamento, carreado para o setor privado, que permitiu o retorno de produções como Lamarca (1994). Nesse momento, a revalorização do Cinema Novo demarcada pela canção teve um sentido específico, pois uma distorção no tempo fixou uma era geológica entre a extinção da Embrafilme e a retomada da produção.

Mais que revalorizado, talvez seja o caso de dizer que o Cinema Novo saiu fossilizado desse breve e interminável período. A preço de perder sua vigência no presente, tornou-se perene, como um rito que se atualiza regularmente. E de lá para cá – de Central do Brasil (1998) a Bacurau (2019) – o discurso sobre o Cinema Novo foi bastante marcado por evocações inespecíficas. O sertão, a violência, o povo etc.

Uma mudança tão drástica por certo tem raízes em problemas que já se encontravam latentes. Tais problemas constituem a inervação da trajetória de Carlos Diegues, da agonia que se pressente em filmes como Quilombo (1984) e Dias melhores virão (1989) ao bloqueio de Veja esta canção (1994). Por esse motivo, quando assisto, na sequência inicial de Tieta (1996), à lenta deriva da câmera em busca de Jorge Amado (algo semelhante ocorre na banda sonora), fico tentado a enxergar a necessidade do diretor se reapresentar como autor, nos moldes do que defendia o Cinema Novo. Trinta anos depois, no entanto, a situação de Diegues sofreu um deslocamento irremediável.

Seus filmes seguintes tendem à revisão do caminho percorrido. Orfeu (1999) é, ao mesmo tempo, um projeto alternativo ao filme Orfeu do carnaval (1959) e uma busca da impressão primordial causada pela peça de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição (1956). Hoje, sua confrontação da visão europeia do diretor Marcel Camus é questionada pela valorização de uma dramaturgia que remonta ao Teatro Experimental do Negro. Acresce a essa sobreposição de tempos o fato de que Carlos Diegues embute em seu filme uma atualização de diagnóstico social, ao desvincular o exercício da violência de uma dimensão justiceira ou revolucionária, atrelando-a ao ressentimento, à delinquência.

Outro entrecruzamento de tempos ocorre a propósito em 5x favela – agora por nós mesmos (2010), produzido por Carlos Diegues. Em perspectiva com a experiência de Cinco vezes favela (1962), realizado pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, “agora por nós mesmos” refere-se ao ato de delegação da direção dos episódios a cineastas que habitam os territórios focalizados, diferentemente da “ida ao povo” dos anos 1960. O deslocamento da autoria, aqui, também corresponde à entrada em cena do Terceiro Setor na gestão social da pobreza ao longo da Nova República.

Parte das reações ao falecimento de Carlos Diegues focaliza sua produção mais recente, reflexo da compartimentação temporal do cinema brasileiro. Ora, é visível em tais produções a conjugação de presente e passado – nelas, atualização é retorno. Isso nos ajuda a compreender o fato de a biografia publicada por Carlos Diegues em 2014 se deter na produção de Tieta. Justificado pela necessidade de distanciamento, o corte tem o efeito de ecoar a ruptura do cinema brasileiro no início dos anos 1990, e de projetar o espectro do Cinema Novo para as décadas seguintes.

Como em qualquer biografia, as memórias de Diegues tendem a atribuir coerência a sua trajetória. Leio em sua busca por coerência, porém, um sintoma das contradições e polêmicas que o envolveram. Revela-se na leitura, assim, aquilo que resta como projeto abandonado no decurso do tempo, o que nos convida a recapitular os aspectos contraditórios de Carlos Diegues.

2.

Carlos, aliás, Cacá Diegues. O uso do apelido é incômodo, pois define um lugar subordinado nos primórdios do Cinema Novo. Mais jovem que os colegas, sua atuação é designada sob o signo da precocidade. Foi nesses termos que Mário Faustino apresentou, em 1958, uma seleção de suas poesias no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Sobre a precocidade, no entanto, pode pairar o estigma negativo.

Cacá lembra que Paulo César Saraceni tendia a infantilizá-lo quando discordava de suas opiniões: “A gente não pode deixar Cacá ir sozinho no cinema, ele ainda é muito criança para isso”. O pomo da discórdia, no caso, era o elogio de Cacá a Lawrence da Arábia (1962), acinte à aguçada sensibilidade anti-imperialista da época. Mas interessa destacar aqui a posição subordinada de Cacá no período de formação do Cinema Novo.

A ambivalente precocidade foi atualizada em sua participação no Festival de Cannes de 1964, momento de apoteose do Cinema Novo logo após o golpe de Estado. Pois se o Festival foi marcado por obras “maduras” do movimento – Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol (1964) -, a elas se soma a exibição de Ganga Zumba na Semana da Crítica, evento paralelo dedicado a diretores estreantes. Na ocasião, a pronúncia do apelido em pleno tapete vermelho internacionalizava a vergonha pública, uma vez que aos ouvidos franceses Cacá soa como cocô. Salvo no estrangeiro, o apelido terminou por se impor.

As anedotas explicitam a base sobre a qual Cacá se afirmaria sobre seus pares mais velhos. O palco, mais uma vez, seria estrangeiro. No Festival de Cannes de 1969, Glauber Rocha recebeu o prêmio de melhor diretor por O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Na mesma época, Carlos Diegues encontrava-se na França para promover o filme Os herdeiros (1970) e concedeu uma entrevista à revista Cahiers du cinéma.

Entre outras coisas, seu longo depoimento defende o esquecimento do Cinema Novo (ou da imagem que dele faziam os críticos europeus). Aqui Cacá manifesta a necessidade de passar em revista sua própria trajetória. Contudo, diferentemente do que ocorreria nos anos 1990, a superação do Cinema Novo defendida nos Cahiers tinha então o sentido de ampliação de sua margem autoral. Com efeito, seu senso de oportunidade diante das tendências do cinema logo levaria Cacá ao pólo dominante do grupo.

Seu momento de afirmação individual coincide com o esgarçamento dos laços coletivos, seja pela perseguição desencadeada pelo Golpe de 1968 (chamemos a coisa pelo nome), seja pela ampliação da Embrafilme a partir de 1974. A tensão coletiva constitui o ruído de fundo do diálogo truncado do livro de Cacá com a biografia lançada, em 1993, por Paulo César Saraceni. Diegues afirma que não leu as memórias do amigo, uma vez que tomou conhecimento do papel negativo que desempenhava ali. Afinal, Saraceni situa Cacá no centro das tensões que levaram à diluição do grupo.

No início dos anos 1970, é visível a confluência das experiências de Cacá – Quando o carnaval chegar (1972) e Joanna Francesa (1973) – com o impactante lançamento de Toda nudez será castigada (1973) por Arnaldo Jabor. Tais filmes apontam para uma busca de comunicação com o mercado, convergente com a ampliação das competências e do orçamento da Embrafilme no governo Geisel. A empresa passaria a contar com um braço dedicado à distribuição, chefiado pelo cinemanovista Gustavo Dahl.

E a partir de então, as discussões em torno dos critérios de distribuição de recursos são a parte visível de uma mudança mais ampla de perspectiva expressa, em 1977, no título de um conhecido artigo de Gustavo Dahl, “Mercado é cultura”. No mesmo ano, Nelson Pereira dos Santos marcaria uma posição crítica a essa tendência no divertido telefonema de Hugo Carvana à Embrafilme em Tenda dos Milagres.

Cacá aproximou-se desses debates com o lançamento de Xica da Silva (1976). O filme desencadeou uma reação negativa em parte da crítica, como foi o caso de Beatriz Nascimento, que questionou a posição sobre a sociedade brasileira implícita no filme. Nos interessa sobretudo o fato de que a polêmica revela uma fissura no interior da política de frente cultural contra a ditadura. Fissura que seria explorada por Cacá nos anos seguintes com ampla repercussão – afinal, o sucesso de filmes como Xica da Silva e Bye bye Brasil (1979) lhe rendeu visibilidade.

Diante da repercussão negativa do filme Chuvas de verão (1978), Cacá concedeu uma célebre entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em que empregou aquela que seria sua contribuição mais difundida para o debate cultural brasileiro, a noção de “patrulhas ideológicas”. A fórmula policial, segundo Cacá, não tinha um lastro de análise rigoroso. A metáfora não deixa de refletir um momento em que diversos cineastas se voltavam à denúncia da violência do Estado, dos esquadrões da morte (Lúcio Flávio, passageiro da agonia (1976)) à tortura (Ao sul do meu corpo (1982)). Mas ao aplicar a fórmula a setores que faziam oposição ao regime, Cacá dava a senha do rompimento do frentismo, num momento em que a transição democrática se desenhava aos trancos e barrancos.

A expressão ganhou vida própria, impulsionada pelos setores políticos interessados em liberar-se de companhias indesejadas, “patrulheiras”. Nesse sentido, a campanha pela extinção da Embrafilme levada a cabo por importantes periódicos nos anos seguintes pode ser entendida como desdobramento dessa cisão. Desnecessário dizer que, embora identificado por muitos críticos com a empresa, Cacá logo engrossaria o coro dos descontentes, buscando alternativas para suas produções, o que era facilitado pela visibilidade que alcançara no exterior.

3.

Por ocasião da morte de Glauber Rocha, em 1981, Carlos Diegues publicou um artigo que afirmava, mais uma vez, o fim do Cinema Novo. Agora, insistia que Glauber – tão polêmico quanto gregário – encarnava o movimento. A afirmação coincide com o auge de Cacá, que logrou distribuir alguns filmes no difícil mercado dos Estados Unidos. O sucesso, no entanto, seria interrompido pelo processo de produção de Quilombo, atingido pela crise econômica e pelos primeiros sinais de intensificação do fenômeno climático El Niño. O filme procurava reelaborar questões presentes nas críticas a Xica da Silva.

Contudo, a aposta numa grande produção de época fracassou diante da reestruturação produtiva que redundou no fenômeno do arrasa-quarteirão, o blockbuster. A retração do público de cinemas pela expansão da TV e do videocassete era agravada pela distribuição mais agressiva do produto estrangeiro, que conseguiu amparo jurídico para descumprir as cotas de tela. Revigorado pelas experiências cinematográficas pós-1968, o produto estadunidense voltava para açambarcar as salas multiplex.

Cacá atinou com a retração de seu horizonte um pouco depois. E me parece significativo que a difusão global de novas perspectivas cinematográficas termina por reiterar o vigor da divisão internacional do trabalho. Carlos Diegues estava finalizando Dias melhores virão por ocasião do lançamento de Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988), do diretor espanhol Pedro Almodóvar. Os filmes têm muito em comum, ao focalizar o trabalho de dublagem. Carlos Diegues participava de uma tendência cinematográfica – de Wim Wenders a Francis Ford Coppola – que celebrava a própria “filmicidade”.

No entanto, como notou Tales Ab’Sáber (2013), o capítulo brasileiro dessa tendência evidenciou a defasagem geográfica. Em poucos anos, o Brasil perderia qualquer condição de concorrer no seu próprio mercado, o que levaria à precarização e à intensificação do trabalho em cinema – fato que se observa, por exemplo, na passagem das comédias eróticas ao pornô hardcore.

Cacá confessa que assistir ao filme de Pedro Almodóvar foi incômodo. O senso de aborrecimento por chegar atrasado à distribuição – enquanto o filme de Pedro Almodóvar teve grande impacto no Festival de Veneza – demarca a mudança de tempos. Daí a opção por um modo de produção mais econômico em Veja esta canção, experiência pioneira no uso de registro digital. Na bacia das almas da Embrafilme, o filme ficou retido por questões jurídicas. De Quilombo a Veja esta canção, portanto, verifica-se uma paulatina depreciação das condições de produção do cineasta.

Veja esta canção ainda estava retido quando Carlos Diegues despejou sua bronca sobre Caetano Veloso. Aquilo que estrutura sua mágoa, portanto, é a confluência da crise coletiva do Cinema Novo com sua situação individual. Ou melhor: a identificação de si com o Cinema Novo permite nomear sua própria queda, um recuo tático para quem, no fim dos anos 1960, defendia a superação do movimento.

Foi nesses termos que se deu sua participação no Cinema da Retomada, nos anos 1990. Pois diferentemente das revisões que se processavam nos anos 1970, o equacionamento da relação com o público-povo ou com o público-mercado já não estava mais no centro de seu horizonte. Tratava-se, simplesmente, de fazer filmes. O que não impediu à constelação cinemanovista de participar: criada em 2001, a Ancine teve como primeiro diretor Gustavo Dahl, ao passo que Carlos Diegues se destacou com a grande bilheteria de Deus é brasileiro (2003).

Mas as condições que garantiram a presença de Carlos Diegues e de outros cinemanovistas eram, justamente, aquilo que a canção “Cinema Novo” captava em 1993, ao substituir o campo do desejo (“Quero ser velho / De novo eterno / Quero ser novo de novo”) pelo desfecho abrupto da canção (“Viva o Cinema Novo”). Diluído nos mais diversos filmes e assumindo uma fisionomia multiforme (“Orson Antônio Vieira Conselheiro”), o Cinema Novo termina por assumir sem ponderações toda a sua (e alheia) trajetória, de modo a se fixar numa condição inespecífica. Em contraste, diga-se, com a resiliência simbólica do próprio Caetano Veloso.

As mudanças de perspectiva social e as pesquisas acadêmicas têm desempenhado um papel importante no tensionamento das contradições do Cinema Novo, para além dos problemas abordados por livros como o de Carlos Diegues. Entendo que esse gesto faz justiça ao movimento. Afinal, a ruína do projeto moderno de cinema brasileiro – do qual o Cinema Novo é apenas uma fração, vale lembrar – não nos força à posição de herdeiros desse todo representado na canção de 1993. Se o processo do Cinema Novo documenta suas fragilidades e contradições, ele também nos recorda a existência de hipóteses alternativas de futuro. Ou, para citar ainda uma vez “Cinema Novo”: outras conversas sobre os jeitos do Brasil.

*Victor Santos Vigneron é professor do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF e pós-doutorando no Departamento de História da USP.

Referências

AB’SÁBER, Tales. A imagem fria. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. [https://amzn.to/3QOBW36]

DIEGUES, Carlos. Vida de cinema: antes, durante e depois do cinema novo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. [https://amzn.to/3Y3Jra6]

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