Certa arte

Wassily Kandisnky, Beleza Russa, 1905.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

Comentário sobre o poema de Elizabeth Bishop

Vi há alguns anos, quando ainda morava em Xangai, o filme Flores raras, dirigido por Bruno Barreto, com Glória Pires. Como foi bom ver um grande filme brasileiro estando tão distante do nosso querido país! O filme é a estória do atribulado romance entre a paisagista e urbanista, Lotta Macedo Soares, uma das responsáveis pelo planejamento do Aterro e Parque do Flamengo, e a poetisa norte-americana Elizabeth Bishop.

Conversando recentemente com minha mãe, lembrei do filme e do poema que enquadra o filme, um poema lindo, lindo, da Elizabeth, chamado “Oneart” (“Certa arte”). E resolvi reler o poema e rever o filme.

Dessa vez, gostei ainda mais do que da primeira. Bruno Barreto mostra várias coisas bonitas – o maravilhoso Rio de Janeiro dos anos 1950, por exemplo –, mas a mais bonita é a maneira como ele abre o filme com esse poema, ainda incompleto e embrionário, e termina com ele, acabado e comovente. Fica subentendido que Elizabeth só pôde concluir o poema, que trata da arte de perder, depois de ter vivenciado e sofrido a perda – a perda catastrófica da pessoa amada.

O poema é este:

One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose some thing everyday. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother’s watch. And look! My last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.
— Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

O meu gentil leitor não tem obrigação nenhuma de saber inglês. Assim, traduzo, sacrificando, porém, a rima:

Certa arte

A arte de perder não é difícil de aprender;
tantas coisas parecem repletas da intenção
de serem perdidas que sua perda não é nenhum desastre.
Perca algo todo dia. Aceite a afobação
de chaves perdidas, a hora mal-empregada.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Pratique então perder mais fundo, perder mais rápido:
lugares, e nomes, e para onde você queria viajar.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Perdi o relógio de pulso da minha mãe. E olhe só! a minha última,
ou penúltima, de três casas queridas, se foi.
A arte de perder não é difícil de aprender.
Perdi duas cidades, lindas. E, mais ainda,
reinados que tinha, dois rios, um continente.
Sinto falta deles, mas não foi um desastre.
— Mesmo perder você (a voz alegre, um gesto
que amo) não terei mentido. É evidente
a arte de perder não é tão difícil de aprender
embora pareça (Escreva!) um desastre.

Poesia é, por definição, aquilo que resiste, heroica e obstinadamente, à tradução. Perder a rima, a musicalidade da rima, é uma perda irreparável, eu sei. Há quem questione se vale a pena traduzir assim. Encontrei na internet algumas traduções do poema, que procuram recriar as rimas em português, mas são desastrosas. Melhor nem ter tentado recriá-las. Creio que consegui preservar, pelo menos, o ritmo e o sentido.

O poema de Bishop é uma pequena obra-prima, não é mesmo? A força das palavras! A sua capacidade de evocar o sofrimento, de estilizá-lo e torná-lo, assim, um pouco mais suportável! A linguagem é simples, como uma conversa. Mas vai num crescendo, e vamos percebendo, aos poucos, que a arte de perder, ao contrário do que se proclama insistentemente, em refrão repetido a cada verso, não é nada fácil de aprender.

As perdas no início são pequenas, triviais, “chaves”, “a hora mal-empregada”. Em seguida, “lugares”, “nomes”, e “para onde se queria viajar”. Mas aí vem a referência à mãe, e às casas queridas, que aumentam a intensidade emocional. Depois aumenta a amplitude: a perda é de cidades inteiras, reinados, continentes – para culminar na perda da pessoa amada.

Repare, leitor, que no último verso, a inserção quase imperceptível da palavra “tão” no meio do refrão – “a arte de perder não é difícil de aprender” se torna “não é tão difícil de aprender” – prepara o momento final, de impacto, que revela toda a insinceridade – ainda que mantendo, já sem convicção, a negação insincera – “embora pareça (Escreva!) um desastre”.

Neste momento em que a cultura nacional está sob ataque cerrado e violento, em todas as frentes, presto com esta crônica minha pequena homenagem ao cineasta brasileiro Bruno Barreto, que soube enquadrar e recriar, com excepcional sensibilidade, o lindo poema de Elizabeth Bishop. Essa é, afinal, uma das grandes contribuições, entre tantas, que o cinema pode dar – abrir portas, de par em par, para as outras artes, a poesia, a literatura, a pintura, a música – torná-las conhecidas e amadas por quem talvez nem chegasse a encontrá-las um dia.

Richard Wagner falava, no século XIX, da sua ópera dramática como Gesamtkunstwerk, como a “arte total”, que reuniria todas as artes. Mas o século XX mostraria que é o cinema, mais do que qualquer outra, a verdadeira arte total.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (LeYa)

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 20 de agosto de 2021.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Airton Paschoa Paulo Capel Narvai Armando Boito Sandra Bitencourt Leonardo Sacramento Luiz Bernardo Pericás José Costa Júnior Luciano Nascimento Ronald León Núñez Flávio R. Kothe João Carlos Loebens Bruno Machado Francisco de Oliveira Barros Júnior Chico Whitaker Vladimir Safatle Celso Favaretto Dennis Oliveira Ladislau Dowbor Mariarosaria Fabris Yuri Martins-Fontes Claudio Katz Luis Felipe Miguel Vinício Carrilho Martinez Fernão Pessoa Ramos Alexandre Aragão de Albuquerque Valerio Arcary Tadeu Valadares Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Abramovay Luiz Roberto Alves Ronald Rocha Gerson Almeida Leonardo Boff Paulo Fernandes Silveira Paulo Sérgio Pinheiro Maria Rita Kehl Andrés del Río Luiz Carlos Bresser-Pereira Rodrigo de Faria Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Martins José Luís Fiori Jorge Luiz Souto Maior Luiz Werneck Vianna Marilena Chauí Kátia Gerab Baggio João Paulo Ayub Fonseca Matheus Silveira de Souza José Machado Moita Neto Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser José Micaelson Lacerda Morais João Carlos Salles Liszt Vieira Anselm Jappe Flávio Aguiar Rubens Pinto Lyra Afrânio Catani Slavoj Žižek Marcelo Guimarães Lima Vanderlei Tenório Antônio Sales Rios Neto Alysson Leandro Mascaro Marilia Pacheco Fiorillo Everaldo de Oliveira Andrade Michel Goulart da Silva Eduardo Borges Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Marques Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Andrew Korybko Henry Burnett Bernardo Ricupero João Adolfo Hansen Eleutério F. S. Prado André Márcio Neves Soares José Raimundo Trindade João Sette Whitaker Ferreira Eugênio Bucci Tarso Genro Jean Marc Von Der Weid Marcos Silva Luís Fernando Vitagliano Tales Ab'Sáber Dênis de Moraes Mário Maestri Jorge Branco Berenice Bento Chico Alencar Jean Pierre Chauvin Marcus Ianoni Samuel Kilsztajn João Feres Júnior Francisco Fernandes Ladeira Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Antunes Rafael R. Ioris Juarez Guimarães Lincoln Secco Michael Roberts Gilberto Lopes Antonio Martins Bento Prado Jr. Ricardo Musse Atilio A. Boron Gilberto Maringoni Ari Marcelo Solon Marjorie C. Marona Celso Frederico Antonino Infranca Luiz Renato Martins Boaventura de Sousa Santos Marcelo Módolo Carlos Tautz Carla Teixeira Henri Acselrad Elias Jabbour Benicio Viero Schmidt Walnice Nogueira Galvão Ricardo Fabbrini Eleonora Albano Bruno Fabricio Alcebino da Silva Otaviano Helene Osvaldo Coggiola Renato Dagnino José Geraldo Couto Annateresa Fabris Gabriel Cohn Caio Bugiato Julian Rodrigues Lorenzo Vitral João Lanari Bo Alexandre de Freitas Barbosa Eugênio Trivinho Leda Maria Paulani Fernando Nogueira da Costa Manchetômetro Alexandre de Lima Castro Tranjan Thomas Piketty Denilson Cordeiro Daniel Costa Michael Löwy Heraldo Campos Marcos Aurélio da Silva Igor Felippe Santos Valerio Arcary Luiz Eduardo Soares José Dirceu Leonardo Avritzer Daniel Brazil Milton Pinheiro Daniel Afonso da Silva Francisco Pereira de Farias Eliziário Andrade Érico Andrade Fábio Konder Comparato André Singer Priscila Figueiredo Remy José Fontana Manuel Domingos Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES