Chile, a transição começa

Imagem: Silvia Faustino Saes
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por ATILIO A. BORON*

Depois de um parto duríssimo, a sociedade chilena reinicia sua transição para a democracia

O Chile enfrentou um desafio histórico inédito neste domingo: pela primeira vez na história, seu povo foi consultado se queria ou não uma nova Constituição e, se a resposta afirmativa fosse maioria, que tipo de órgão seria encarregado de redigir a nova Carta Magna. Havia duas alternativas: uma “Convenção Constitucional” composta por 155 pessoas exclusivamente eleitas para esse fim e que, uma vez terminado o processo, deverá dissolver-se, ou, em caso contrário, uma “Convenção Mista”, formada por 172 integrantes, com 50% de parlamentares e 50% de cidadãos igualmente eleitos para este fim.

Esta consulta não foi uma concessão graciosa da casta política pós-Pinochet, mas o resultado de um longo processo de lutas populares que atingiram seu ápice nas jornadas que ocorreram a partir de 18 de outubro de 2019. Elas lançaram por terra a fantasiosa imagem do “modelo chileno”, esse paradigma supostamente virtuoso da transição democrática e do êxito econômico divulgado sem escrúpulos e sem cessar pelos interesses dominantes e pelo império. Os protestos arruinaram, num piscar de olhos furioso, a espessa teia de mentiras oficiais, expondo um país com um dos maiores índices de desigualdade econômica do mundo, com as famílias mais endividadas da América Latina e Caribe, com um sistema previdenciário que, por mais de quarenta anos, enganou aposentados e pensionistas, e um país no qual, como demonstra uma pesquisa, as mulheres que nascem nas comunas populares da Grande Santiago têm uma expectativa de vida 18 anos menor que aquelas que têm a sorte de nascer em Providencia, Vitacura ou Las Condes. “O Chile faz fronteira com o centro da injustiça”, cantava Violeta Parra em meados dos anos 60, numa época em que aquela não tinha chegado aos extremos inimagináveis que alcançaria graças ao pinochetismo e seus sucessores.

As resistências e lutas nunca diminuíram, atingindo uma inércia acumulativa que produziu a irrupção social de outubro. Do subsolo profundo do Chile, emergiu a verdade que o ditador e os protagonistas da fracassada “transição democrática” tentaram esconder. Ninguém foi mais eloquente do que a esposa do presidente Sebastián Piñera para descrever o que ocorria no país quando, aflita, confessou a uma amiga que “estamos absolutamente sufocados, é como uma invasão estrangeira, alienígena”. Sua reação é compreensível: aqueles rostos tensos e fartos de tanta opressão e injustiça, aqueles corpos que se opunham heroicamente aos disparos criminosos das forças de segurança tinham sido invisibilizados por quase meio século, e, para a cultura dominante, eram “alienígenas”, um ameaçador populacho que vinha perturbar a confortável existência dos donos do país e suas riquezas. E, depois dos resultados do plebiscito, parece que os “invasores” não querem regressar ao passado. Querem construir uma nova ordem constitucional que lhes devolva os direitos violados, apelando para trapaças e artimanhas da propaganda política perversamente administradas pela máfia midiática, com o El Mercurio à frente.

O resultado do plebiscito é categórico e inapelável. Depois de um parto duríssimo, a sociedade chilena reinicia sua transição para a democracia. A nova Constituição deverá desmontar o complexo e intricado emaranhado de privilégios e enclaves autoritários estabelecidos ao longo de meio século, e para isso será indispensável que as massas mantenham sua presença nas ruas e praças. Sua desmobilização ou sua retirada para o quietismo anterior aos eventos de outubro seria fatal. A redação de uma nova Constituição, um delicado trabalho de relojoeiro, será apenas o primeiro passo da longa marcha que se inicia para que o Chile se reencontre com a democracia, brutalmente mutilada pelo golpe de 1973, e apenas reconstruída em suas aparências externas nos longos trinta anos de governo da direita de velho e novo tipo. Força Chile! Toda a América Latina te abraça com alegria e esperança!

*Atilio A. Boron é professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de A coruja de Minerva (Vozes).

Tradução: Fernando Lima das Neves

Publicado originalmente no jornal Página 12.

 

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
A cúpula dos BRICS de 2025
Por JONNAS VASCONCELOS: O Brasil da presidência dos BRICS: prioridades, limitações e resultados diante de um cenário global turbulento
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES