Chile – como se constrói uma vitória

John Dugger, Banner do Chile Vencerá em Trafalgar Square, Londres.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VLADIMIR SAFATLE*

A vitória chilena atual é na verdade a das vitórias das insurreições populares e a força das repetições históricas

Engana-se quem acredita que o Chile, no dia 19 de dezembro, conheceu uma simples vitória eleitoral, que estamos apenas a ver a dita “alternância democrática” pretensamente tão rara entre nós. A sequência aberta no Chile guarda a imprevisibilidade dos acontecimentos reais. Pois, em um momento no qual o mundo todo assiste à ascensão das extremas direitas, a vitória chilena mostra uma história que muitos tentaram nos levar a crer que havia definitivamente se encerrado: a das vitórias das insurreições populares e a força das repetições históricas.

Nós conhecemos situações nas quais governos são eleitos e procuram usar sua legitimidade eleitoral para modificar instituições e estruturas que se mostraram incapazes de realizar as aspirações populares de justiça. Mas não havíamos visto ainda o processo inverso: a saber, insurreições populares que começam por modificar instituições e leis para, no meio desse processo, impulsionar a ascensão eleitoral de novos governos. Essa mudança na ordem dos fatores cria uma dinâmica política inusitada. Nesses casos, o governo não aparece exatamente como artífice e condutor das transformações. Na verdade, ele será algo como o ator que irá garanti-la e potencializá-la.

A vitória do esquerdista Gabriel Boric não se deu exatamente pela força do enraizamento de seu partido, mas pela capacidade em permitir às múltiplas forças em sublevação se articularem e unificarem. Para tanto, colaborou o fato de a esquerda partidária chilena não ter virado as costas ao povo quando este se defendia das forças policiais, contava suas dezenas de mortos e queimava as ruas de Santiago no estalido de 2019. A diferença com o que vimos no Brasil é evidente.

No momento de constituir uma frente eleitoral para as eleições presidenciais, ela não procurou repetir ao infinito o mantra da “governabilidade” que fez do Chile o país governado de eterna aliança da centro-esquerda e da centro-direita, a Concertación. Uma aliança que serviu apenas para naturalizar o modelo neoliberal como a única alternativa possível, como se fosse o caso de eternamente mostrar que todos os caminhos levavam ao mesmo lugar.

Antes, as bases partidárias do Apruebo Dignidad de Gabriel Boric são a Frente Ampla, um grupo de partidos que vai de autonomistas à esquerda libertária, e o Partido Comunista Chileno, a única legenda tradicional que não foi dizimada nas urnas – ao contrário, cresceu. Suas posições econômicas podem ser sintetizadas na ideia, central na campanha presidencial, de transformar em direitos o que até agora era tratado como mercadoria. Como se fosse o caso de lembrar dos dizeres de um cartaz das ruas de Santiago: “Fizeram das nossas necessidades seus melhores negócios”.

Mais uma vez, a diferença com o Brasil não poderia ser maior. Aqui, vende-se o discurso de que o modelo que os chilenos rejeitaram e enterraram seria a maior “astúcia” política para a vitória no ano que vem e o posterior governo. Um pouco como quem crê que amarrar suas próprias pernas é a melhor maneira de fazer grandes caminhadas. Esquece-se de que foi esse o mesmo modelo que imperou durante toda a Nova República. Não foi por falta de “frentes amplas” que chegamos aqui. Mais provável que tenha sido pelo seu excesso.

Quando terminou seu discurso de vitória, Boric afirmou: “Vão para casa com a alegria sã da vitória limpa alcançada”. Essa frase havia terminado outro discurso de vitória presidencial, há 50 anos, proclamado por Salvador Allende. Repetir tais palavras foi como dizer: “Nós já estivemos aqui, com outros corpos, outras vozes, mas já estivemos aqui antes”. Saber que já se esteve aqui antes, com o mesmo entusiasmo, significa lembrar os desejos que nos constituíram e que, agora, poderão voltar. A isto damos um nome específico: história.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 26 de dezembro de 2019.

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Anselm Jappe Sandra Bitencourt Luiz Eduardo Soares Francisco de Oliveira Barros Júnior Francisco Pereira de Farias Airton Paschoa Maria Rita Kehl Ricardo Fabbrini Henri Acselrad Kátia Gerab Baggio Marjorie C. Marona Boaventura de Sousa Santos Eduardo Borges Ronald León Núñez Ricardo Musse Renato Dagnino Marilena Chauí Plínio de Arruda Sampaio Jr. Sergio Amadeu da Silveira José Machado Moita Neto José Costa Júnior Luiz Werneck Vianna André Singer Flávio R. Kothe Jean Marc Von Der Weid Luiz Marques João Paulo Ayub Fonseca Bruno Machado José Raimundo Trindade Osvaldo Coggiola Vladimir Safatle Ronaldo Tadeu de Souza Marcelo Módolo André Márcio Neves Soares Ladislau Dowbor Denilson Cordeiro Marcus Ianoni Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ricardo Antunes Matheus Silveira de Souza Heraldo Campos Carla Teixeira João Feres Júnior Benicio Viero Schmidt Eugênio Bucci Luiz Roberto Alves Slavoj Žižek Alexandre de Freitas Barbosa Valerio Arcary Jean Pierre Chauvin Luiz Bernardo Pericás Michael Roberts Jorge Branco Leda Maria Paulani Dênis de Moraes Flávio Aguiar Dennis Oliveira José Geraldo Couto Vanderlei Tenório Marilia Pacheco Fiorillo Chico Whitaker Annateresa Fabris Bernardo Ricupero Paulo Nogueira Batista Jr Celso Frederico José Micaelson Lacerda Morais Fábio Konder Comparato Yuri Martins-Fontes José Luís Fiori Liszt Vieira Tarso Genro Gilberto Lopes José Dirceu Rodrigo de Faria João Carlos Salles Rubens Pinto Lyra Afrânio Catani Remy José Fontana Valerio Arcary Alexandre Aragão de Albuquerque Tales Ab'Sáber Marcelo Guimarães Lima Claudio Katz Gerson Almeida Ronald Rocha Paulo Fernandes Silveira Michael Löwy Daniel Afonso da Silva Juarez Guimarães Luiz Renato Martins Luiz Carlos Bresser-Pereira Luis Felipe Miguel Antonio Martins Eleutério F. S. Prado Luís Fernando Vitagliano Eliziário Andrade Luciano Nascimento João Lanari Bo Daniel Brazil Marcos Silva Everaldo de Oliveira Andrade Carlos Tautz Celso Favaretto Eugênio Trivinho Elias Jabbour Thomas Piketty Salem Nasser Lorenzo Vitral Ricardo Abramovay Henry Burnett Fernando Nogueira da Costa Leonardo Boff Julian Rodrigues Tadeu Valadares Priscila Figueiredo Mariarosaria Fabris Lincoln Secco Walnice Nogueira Galvão Alexandre de Lima Castro Tranjan Antonino Infranca Manuel Domingos Neto Leonardo Avritzer Armando Boito Antônio Sales Rios Neto Jorge Luiz Souto Maior Vinício Carrilho Martinez Paulo Martins Leonardo Sacramento Bento Prado Jr. Andrés del Río João Sette Whitaker Ferreira Chico Alencar Érico Andrade Otaviano Helene João Carlos Loebens Marcos Aurélio da Silva Mário Maestri Paulo Capel Narvai Berenice Bento Samuel Kilsztajn Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Fernandes Ladeira Manchetômetro Lucas Fiaschetti Estevez Rafael R. Ioris Gabriel Cohn Daniel Costa Igor Felippe Santos Atilio A. Boron Milton Pinheiro Paulo Sérgio Pinheiro Michel Goulart da Silva Andrew Korybko Caio Bugiato Eleonora Albano Alysson Leandro Mascaro João Adolfo Hansen Gilberto Maringoni Ari Marcelo Solon Fernão Pessoa Ramos

NOVAS PUBLICAÇÕES