Um novo tempo, apesar dos perigos

Imagem: Kendall Hopes
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LISZT VIEIRA*

Não teremos um governo com o programa do PT. Será um governo da frente ampla

“Há apenas uma escolha na eleição do Brasil – para o país e o mundo. Um segundo mandato para Jair Bolsonaro representaria uma ameaça à ciência, à democracia e ao meio ambiente” (Revista Nature).

Ainda sob o impacto da embriaguez da vitória, já é possível perceber diversos pontos no horizonte que surgirão como questões a desafiar o Governo Lula. São muitos, mas alguns merecem destaque.

Reconstrução das instituições republicanas destruídas pelo atual Desgoverno. As instituições democráticas responsáveis pela gestão pública foram duramente atacadas, algumas inteiramente destruídas.

Restabelecimento das políticas públicas nas áreas de saúde, ciência, educação, cultura, meio ambiente etc. Isso exige recuperação das verbas públicas desviadas para esse monstro chamado orçamento secreto.

Combate decisivo ao neoliberalismo que transfere para o mercado financeiro recursos públicos que deveriam ser aplicados em projetos de desenvolvimento sustentável na área econômica, social, cultural, ambiental etc.

Eliminação da armadilha do teto de gastos que impede investimento público para o desenvolvimento do país em nome de uma ideologia retrógrada que deu errado em todo o mundo. Sem investimento estatal, não há desenvolvimento.

Isolamento da extrema direita neofascista, incluindo barrar o poder político dos pastores evangélicos comprometidos com a teologia do domínio e da “prosperidade”. Isso exige criar novos laços com os fiéis e pastores progressistas.

Recuperação imediata da imagem do Brasil no exterior mediante uma política externa independente, soberana e vinculada aos legítimos interesses do país.

Combate imediato ao desmatamento, seja legal ou ilegal, e repressão às atividades ilegais de garimpeiros, mineradores, madeireiros, pecuaristas, agricultores que recebem apoio oficial para devastação da Amazônia e outros biomas.

Combate aos preconceitos que alimentam o racismo, misoginia, homofobia.

Forçoso é reconhecer que devemos ao atual presidente informações importantes. Uma delas é que os conservadores dispostos a apoiar uma ditadura não são apenas 30%, como sempre imaginei. Podemos dizer que 40% do eleitorado apoiariam hoje uma ditadura que viria certamente combinada com um modelo econômico neoliberal.

Em seguida à eleição, os números falam mais alto. Jair Bolsonaro perdeu 1,3 milhão de votos em SP, RJ e MG em relação a 2018. Já Lula avançou 7,6 milhões nessa região em relação ao candidato do PT na última eleição. Mas agora, no segundo turno, Jair Bolsonaro reduziu a diferença em relação ao primeiro turno de 6,1 milhões para 2,1 milhões de votos. Isso exige explicação dos especialistas. O que me preocupa é compreender a motivação dos eleitores de Jair Bolsonaro.

O eleitorado de Jair Bolsonaro não se constitui apenas de empresários, militares e evangélicos. A grande maioria de seus eleitores é formada por conservadores que rejeitam, assustados, não apenas o empoderamento dos trabalhadores, mas também a reivindicação de direitos pelas mulheres, negros e homossexuais. Além disso, associam desmatamento a progresso.

Assim, no eleitorado de B. não existem apenas interesses econômicos do empresariado capitalista, interesses corporativos dos militares, ou interesses de uma grande massa de evangélicos ludibriados em sua boa-fé por pastores corruptos. A grande maioria é composta por conservadores que introjetaram os valores da sociedade patriarcal, ignorados durante muito tempo pela esquerda como assunto secundário, fora do foco da luta de classes.

Após a vitória de Lula, por margem mais apertada do que imaginávamos, a luta contra os valores conservadores da sociedade patriarcal será inadiável. Em vez de desprezar a “pauta identitária”, teremos de articular essas lutas por direitos com as lutas econômicas dos trabalhadores.

No dia seguinte ao resultado da eleição, protestos de caminhoneiros fecharam rodovias em 11 estados, inclusive a Via Dutra, que liga Rio a São Paulo, e a Rio-Santos. A Polícia Rodoviária Federal, tão ativa no dia da eleição bloqueando estradas e ruas para barrar eleitores nos lugares onde Lula era o favorito, até agora nada fez. Segundo a ex-Ministra Marina Silva, o ato dos caminhoneiros é o Capitólio na versão Bolsonaro.

Com Lula eleito, declarado vitorioso pelo TSE, reconhecido pelos presidentes da Câmara e do Senado, reconhecido imediatamente pelos presidentes dos EUA, França, Argentina, Canadá, Espanha, China e outros países, não há clima político para o golpe tantas vezes anunciado. Provavelmente, ele vai recorrer alegando fraude baseado em relatório de alguma auditoria contratada para isso. Mas o recurso vai ser negado. O que fará o candidato derrotado? Protestos políticos de caminhoneiros fechando estradas são ilegais. A categoria está dividida, o STF acabará sendo acionado e obrigando o Governo a agir. Mais um conflito institucional, de consequências imprevisíveis.

Em meus textos anteriores, critiquei vários artigos que defendiam o cenário único do golpe, dado como certo por seus autores. Trabalhei com a possibilidade de diversos cenários e considerei o golpe um cenário possível, mas improvável, por falta de apoio político/militar nacional e apoio diplomático internacional. O governo dos EUA mandou três diplomatas ao Brasil com a missão de dizer que o sistema eleitoral brasileiro é confiável e dar um recado aos militares: Nada de golpe! O Senado americano chegou a recomendar rompimento de relações diplomáticas com o Brasil em caso de golpe. Afinal, Bolsonaro apoia Donald Trump que apoia Vladimir Putin, dois inimigos de Joe Biden.

As declarações e ações anti-democráticas e neofascistas do atual presidente ajudaram muito a construir a Frente Ampla. Muitos liberais vieram apoiar Lula. O atual presidente poderia ganhar a eleição com o apoio dos liberais, se fosse um pouco menos inculto e ignorante. Com um governo desastroso e declarações a favor de golpe e ditadura, ele acabou sendo um grande cabo eleitoral de Lula.

Não teremos um governo com o programa do PT. Será um governo da frente ampla. Governos de coalizão são espaços de disputa das diferentes posições que o compõem. Há quem aposte em política social avançada e política econômica mais conservadora. Mas são novos tempos. Relembrando os versos da canção de Ivan Lins, “No novo tempo/Apesar dos perigos/Da força mais bruta/Da noite que assusta/Estamos na luta”.

Teremos muita luta pela frente. Afinal, como disse Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Boff Antonino Infranca Mariarosaria Fabris Flávio R. Kothe Ricardo Abramovay Michel Goulart da Silva Luiz Marques Denilson Cordeiro Eduardo Borges Rafael R. Ioris Elias Jabbour Marcelo Guimarães Lima Andrés del Río Tadeu Valadares Tales Ab'Sáber Andrew Korybko Lincoln Secco Francisco de Oliveira Barros Júnior Manuel Domingos Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Eleutério F. S. Prado Priscila Figueiredo Paulo Fernandes Silveira Luciano Nascimento Paulo Capel Narvai Alexandre Aragão de Albuquerque Daniel Afonso da Silva Luís Fernando Vitagliano Valerio Arcary José Luís Fiori Liszt Vieira Ronald León Núñez Jean Marc Von Der Weid Atilio A. Boron Walnice Nogueira Galvão Milton Pinheiro André Singer Benicio Viero Schmidt Remy José Fontana José Raimundo Trindade Vanderlei Tenório André Márcio Neves Soares Dênis de Moraes Lorenzo Vitral Flávio Aguiar Marcos Aurélio da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Yuri Martins-Fontes Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Annateresa Fabris Eliziário Andrade Luis Felipe Miguel Celso Frederico Luiz Renato Martins Ricardo Antunes Marcelo Módolo Julian Rodrigues Caio Bugiato Renato Dagnino Claudio Katz Valerio Arcary Tarso Genro Ricardo Fabbrini Jorge Branco Manchetômetro Marcos Silva Igor Felippe Santos João Carlos Loebens Marcus Ianoni Bento Prado Jr. Luiz Bernardo Pericás Fernando Nogueira da Costa Marilena Chauí Kátia Gerab Baggio Mário Maestri Afrânio Catani João Paulo Ayub Fonseca Alysson Leandro Mascaro Leda Maria Paulani Bernardo Ricupero Leonardo Avritzer João Feres Júnior Berenice Bento Rodrigo de Faria Chico Alencar Ladislau Dowbor Daniel Costa Michael Löwy Samuel Kilsztajn Francisco Pereira de Farias Érico Andrade Marjorie C. Marona Bruno Machado Daniel Brazil Gilberto Lopes Boaventura de Sousa Santos Otaviano Helene Paulo Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Airton Paschoa Salem Nasser Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Werneck Vianna Marilia Pacheco Fiorillo Jean Pierre Chauvin José Costa Júnior Carlos Tautz Ronald Rocha Jorge Luiz Souto Maior Chico Whitaker Slavoj Žižek Carla Teixeira Ronaldo Tadeu de Souza Matheus Silveira de Souza Juarez Guimarães Paulo Sérgio Pinheiro Everaldo de Oliveira Andrade Dennis Oliveira Antonio Martins Gerson Almeida Armando Boito Michael Roberts Vladimir Safatle Fábio Konder Comparato Celso Favaretto José Dirceu Paulo Nogueira Batista Jr Thomas Piketty Henri Acselrad João Adolfo Hansen Henry Burnett Bruno Fabricio Alcebino da Silva Osvaldo Coggiola Antônio Sales Rios Neto Gabriel Cohn Leonardo Sacramento Lucas Fiaschetti Estevez Vinício Carrilho Martinez Gilberto Maringoni Luiz Roberto Alves Ricardo Musse José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Bucci Eugênio Trivinho Fernão Pessoa Ramos Anselm Jappe Sergio Amadeu da Silveira Heraldo Campos Ari Marcelo Solon José Machado Moita Neto Sandra Bitencourt Maria Rita Kehl Luiz Eduardo Soares José Geraldo Couto João Lanari Bo João Sette Whitaker Ferreira Francisco Fernandes Ladeira Eleonora Albano João Carlos Salles Rubens Pinto Lyra

NOVAS PUBLICAÇÕES