Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR
A sentença histórica é um divisor de águas que questiona se o Brasil, enfim, aprendeu que democracia não se concilia com golpismo. O futuro dirá se esta foi a virada definitiva ou apenas mais uma trégua no eterno ciclo entre autoritarismo e conciliação
O artigo “O Espelho da República”, publicado em 8 de setembro de 2025 no site A Terra é Redonda, por meio da narração das manifestações de 7 de setembro – quarenta mil pessoas na Avenida Paulista, bandeiras erguidas, cartazes “anistia já”, ataques contra o Supremo Tribunal Federal – o texto enfatizava que havia um espelho histórico diante do país.
Não era a luta pelo poder, mas o fracasso do acordo de 1988 comprovado pelo ressurgimento de um acordo oligárquico que sempre usava massas como instrumento para praticar sua política e nunca um povo com pleno exercício de soberania (SILVA JÚNIOR, 2025). As escolhas eram simples: aprofundar a democracia ou sucumbir às soluções contundentes que assombram a história nacional desde a Proclamação da República.
Esta encruzilhada não é inédita. A trama da história da República brasileira é tecida com fios alternados: autoritarismo, conciliação; golpes militares e revoluções passivas; transições negociadas. A Constituição de 1988, celebrada por ser “cidadã”, foi moldada em um acordo que conseguiu conciliar os setores militar e civil (com avanços sociais, mas sem cortar laços com estruturas oligárquicas). Ao longo de mais de quatro décadas, sua resposta a cada crise foi, em última análise, um ato de apaziguamento — desde a legalização de proscrições políticas em 1979 ao presidencialismo de coalizão, do impeachment de Fernando Collor ao de Dilma Rousseff.
A questão é se o julgamento dos arquitetos de 8 de janeiro de 2023, ocorrido de 7 a 11 de setembro de 2025, abriu um novo ciclo capaz de romper com esse ciclo conciliatório que adia o confronto; ou se simplesmente testemunharemos mais uma etapa na recomposição da elite.
O julgamento – dia a dia no plenário
No primeiro dia, lemos o voto do relator. Mais de 300 páginas montaram o planejamento, financiamento e execução dos eventos de 8 de janeiro. As provas incluíram evidências de transferências de dinheiro de empresários para líderes de grupos radicais, informes de inteligência sobre caravanas organizadas e mensagens interceptadas em aplicativos de comunicação criptografada. O enquadramento jurídico foi severo: crimes contra o estado democrático de direito, tentativa de abolição violenta da Constituição e dano qualificado ao patrimônio da União. Também estava claro o tom pedagógico — não era apenas sobre punição, mas de afirmação do limite civilizacional da democracia.
No segundo dia, ministros votaram pela primeira vez na íntegra em linha com o relator. Um destes mencionou a Constituição de 1891 para dizer que a República nasceu inclusiva, e que a missão do Supremo Tribunal era retificar este percurso, ampliando a cidadania, protegendo direitos. Trouxeram à memória Florestan Fernandes (2006), que disse que “Nossa democracia é muito jovem para nos contentarmos com oportunidades perdidas de poder sem consequências institucionais.”
Uma maioria temporária a favor da condenação efetivamente se formou até o final do dia, gerando um sentimento de expectativa e tensão em Brasília. Apoiadores e opositores dos réus intensificaram seus atos nas ruas e sob forte presença policial.
No terceiro dia, porém, viu-se um voto divergente: um ministro sugeriu que as punições deveriam ser mais leves e que deveriam levar em conta a necessidade de “pacificação nacional”. Seus comentários geraram reações contundentes e foram comparados à anistia de 1979. “Sem anistia”, exigiam os cartazes dos movimentos sociais, para manter a linha dura.
Editorialistas de grandes jornais se dividiram: alguns consideraram bom senso, outros disseram ver uma mensagem indesejada de impunidade. O dia mais elétrico do julgamento havia chegado: dizia-se que caravanas estavam prontas para bloquear estradas, e o Ministério da Justiça reforçou a segurança na Esplanada.
No quarto dia, a situação se reverteu. Dois ministros proferiram votos duros, em cada caso levantando o fantasma de que a leniência seria percebida como levando a mais ataques à democracia. Um deles mencionou 1932 e 1964: “Cada vez que houve conciliação, a democracia sangrou mais.” Aqui está o que uma maioria cristalizou: condenação mais pena de prisão, suspensão de direitos políticos por oito anos e multas em milhões.
Politicamente, o Presidente do Senado declarou que obedeceria ao decidido pelo Supremo Tribunal e que não havia desafio institucional. As tensões nas ruas diminuíram, mas o país já estava em compasso de espera pela leitura da sentença final.
No dia 11 de setembro, uma data sobrecarregada de símbolos, o Presidente do STF leu em voz alta finalmente o que foi decidido em uma sessão transmitida ao vivo para milhões de brasileiros. A leitura chegou ao fim e houve silêncio no plenário. O veredicto foi unânime quanto à culpa e maioria na dosimetria da sentença. “A democracia não é um presente, é uma conquista que deve ser defendida todos os dias até as próximas eleições”, concluiu o estadista sênior. Não houve uma explosão de celebração, apenas um alívio contido. O mercado reagiu positivamente, e líderes mundiais enviaram mensagens de apoio ao judiciário brasileiro.
Autoritarismo, conciliação e a especificidade brasileira
O julgamento de 2025 reflete uma história profunda. Desde 1889 a República reconciliou inclusividade e exclusividade, modernização conservadora e tutela sucessiva. A Revolução de 1930 centralizou o poder, mas subordinou os sindicatos ao Estado; o Estado Novo impôs rituais cívicos e mandou o dissenso calar. A redemocratização de 1946 foi instável e levou a um segundo golpe. A Constituição de 1988 parecia abrir um novo horizonte, mas o presidencialismo de coalizão continuou a manter o governo refém de negociações com o centrão e do pagamento da dívida pública.
O ciclo de Lula havia quebrado essa lógica, mas o impeachment de 2016 provou que elites ainda sabiam como reconstruir seu bloco histórico. Portanto, não é apenas um julgamento em jogo; a questão é se pode haver uma democracia que não exija conciliação, que drena sua força normativa.
O julgamento chegou ao seu ponto mais simbólico com a divulgação das penas individuais. A imprensa nacional e internacional registrou com destaque os nomes e as penas impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro e ao seu vice de chapa em 2022, Walter Braga Netto. Jair Bolsonaro foi condenado a 27 anos e 3 meses de prisão em regime inicialmente fechado, mais multa equivalente a 248 salários mínimos. Os crimes reconhecidos foram: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Braga Netto, por sua vez, recebeu 26 anos de prisão em regime fechado, 100 dias-multa e a perda de direitos políticos por oito anos após o cumprimento da pena. Sua condenação incluiu todos os crimes narrados na denúncia da PGR, com a mesma tipificação aplicada ao ex-presidente: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
A imprensa enfatizou que o tom do Supremo foi pedagógico: a sentença foi lida em sessão solene, transmitida ao vivo para milhões de brasileiros, acompanhada de um silêncio coletivo no plenário. As reações internacionais reforçaram o simbolismo do ato: líderes estrangeiros enviaram mensagens de apoio ao Judiciário brasileiro, e os mercados reagiram de forma positiva no dia seguinte, interpretando o desfecho como estabilização institucional.
Apesar do impacto histórico do julgamento, há dimensões que permanecem em aberto e dependem de etapas posteriores do processo. A execução das penas só ocorrerá após o trânsito em julgado, quando todos os recursos forem analisados e encerrados pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Até lá, medidas cautelares podem alterar a forma de cumprimento da pena, inclusive convertendo o regime inicialmente fechado em prisão domiciliar ou semiaberto, a depender de decisões liminares. A dosimetria das penas também pode sofrer ajustes por meio de embargos de declaração ou pedidos de revisão criminal, o que afeta tanto o tempo de prisão quanto o valor das multas aplicadas.
No plano político, a inelegibilidade de oito anos é hoje um dado consolidado, mas não está imune a revisões futuras: o Tribunal Superior Eleitoral poderá reinterpretar sua extensão, e o Congresso poderia aprovar mudanças legislativas que permitissem uma reabilitação antecipada. A médio prazo, a possibilidade de que Jair Bolsonaro e Braga Netto voltem à cena política dependerá da combinação entre estas decisões judiciais e o ambiente político-eleitoral da próxima década.
Conclusões, contradições e as vozes do plenário
A última sessão também se tornou ainda mais simbólica quando o Ministro Luiz Fux propôs um voto que colocou o plenário em ponta. Junto com a condenação, ele justificou a redução das penas em nome de uma suposta “pacificação social”, insistindo que “o país não aguenta mais divisões.” Mas seus comentários foram considerados contraditórios, já que o próprio ministro admitiu que a leniência histórica gerou mais ataques à democracia apenas alguns minutos antes.
Sua proposta de “modulação humanitária” foi rechaçada por colegas deputados, que se esforçaram para destacar que não se trata de vingança, mas de limites civilizacionais. Luiz Fux encontrou-se sozinho na dosimetria, atacado por ambos os lados fora do Supremo Tribunal: de um lado, ele havia “traído” o alinhamento anterior com a direita; e no outro extremo ainda havia um vislumbre de conciliação dos tempos passados.
A própria Constituição de 1988 foi categoricamente, para a Primeira Turma, dada a ser nada mais do que uma democracia envelhecida com aspectos pedagógicos. Em dois votos reticentes, destacou-se: “O Supremo Tribunal não é um vingador político; o papel deste tribunal é como árbitro neutro do estado de direito”, o que transmitiu a mensagem de que desafios às instituições requerem respostas à altura.
Substancialmente, o relator reiterou a autoria intelectual das referidas ações e a responsabilidade exemplar demandada: “Não se trata de punir uma ideia, mas sim de denunciar aqueles que a arquitetaram e financiaram em uma tentativa de subjugação violenta dos Poderes constituídos. A democracia não é uma zona franca.” O ministro mais antigo então concluiu em tom sombrio: “A democracia brasileira, tão dura e exigente como é hoje, não foi nunca ‘atividade de lazer’ de quem se considerou elite no Brasil.
Simplesmente não há mais espaço para golpes com imunidade. A ideia que deixamos aqui hoje é que a República aprendeu.” Os trechos foram rapidamente noticiados na mídia, solidificando uma imagem de um Tribunal unificado no que importa: defender a Constituição e enviar uma forte sinalização de que ruptura institucional exige um preço tão alto.
Ruptura ou continuidade?
A decisão do Supremo Tribunal é uma aposta na pedagogia da consequência: A mensagem é que não há espaço em nossa democracia para uma insurreição sem consequências. A questão, no entanto, é se isso será um rompimento duradouro ou se as forças de hoje condenadas serão readmitidas no jogo político em 2026 por uma nova paz.
O Brasil tem uma história cheia de recuos: a anistia de 1979 para crimes da ditadura, a transição de 1985 que evitou julgamentos, até o impeachment de Collor foi sucedido por um liberalismo reorganizado. O julgamento de 2025 pode ser o início de uma curva de aprendizado institucional – ou simplesmente pode retomar de onde os roteiros anteriores de reconciliação pararam.
A repercussão do julgamento foi imediata e intensa, tanto no Brasil quanto no exterior. No plano doméstico, os principais veículos de comunicação — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S.Paulo e Valor Econômico — trataram o veredicto como marco jurídico e institucional. As manchetes destacaram que o Supremo Tribunal Federal reafirmou a força normativa da Constituição de 1988 e traçou linha divisória entre crítica política legítima e tentativa de golpe. Jornais regionais também ressaltaram o caráter pedagógico das penas, lembrando que a democracia não poderia conviver com ataques sem resposta estatal.
Televisões, rádios e portais digitais transmitiram ao vivo a leitura da sentença, com analistas explicando os tipos penais reconhecidos, seus efeitos e o simbolismo de condenar um ex-presidente e seu vice. A cobertura traduziu a complexidade jurídica para o público, trouxe divergências do plenário e reações de parlamentares. Houve espaço também para críticas vindas de setores alinhados ao bolsonarismo, que falaram em perseguição política, argumento rebatido por juristas que reafirmaram a regularidade processual e a ampla defesa.
No exterior, The New York Times, The Guardian, El País e Le Monde enquadraram o julgamento como divisor de águas para a democracia brasileira. A agência Reuters destacou a reação positiva dos mercados, e a Al Jazeera lembrou que o episódio enviava mensagem para a América Latina de que aventuras autoritárias têm custo elevado.
Líderes estrangeiros manifestaram-se em redes sociais e pronunciamentos oficiais. Mensagens de apoio vieram da União Europeia, dos Estados Unidos e de organismos multilaterais como ONU e OEA, reforçando que o respeito às instituições é pré-condição para a plena participação do Brasil no sistema internacional. A convergência dessas vozes projetou o julgamento como episódio exemplar de contenção da extrema-direita e de afirmação da ordem democrática.
A vereda não é linha reta, mas curva, atalho e emboscada. Riobaldo diria que o sertão é o mundo e que a guerra se trava no miolo da gente. Entre Deus e o demo, entre a promessa de ordem e o convite ao caos, aprende-se a viver de pergunta na boca. O sertão brasileiro também aprendeu: cada revolução soou promessa de travessia, cada conciliação foi regresso ao ponto de partida. A história é chão rachado, pede chuva e teme a enxurrada, e o povo, como bando de jagunços, segue marchando, crendo que desta vez o acordo é definitivo.
Mas o sertão é traiçoeiro e sábio. Os ciclos de mando e desmando, de tiro e de missa, repetem-se como reza e praga. Quem governa jura trazer paz, quem perde jura se vingar. E o povo, suspenso entre medo e fascínio, sonha com um sertão que vire cidade justa, sem precisar vender a alma para atravessar o rio.
Última questão: o Brasil finalmente se libertou de seu caminho histórico de ciclos autoritários contra cíclicos conciliatórios? Ou em 2026 termos outro episódio que nos envergonha?
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]
Referências
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956.
SILVA JÚNIOR, João dos Reis. O Espelho da República. A Terra é Redonda, 8 set. 2025. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ações Penais relativas aos atos de 8 de janeiro de 2023. Brasília, DF: STF, 2025. Sessões de julgamento de 7 a 11 de setembro de 2025.
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