Comissão Nacional da Verdade – dez anos

Foto: Michelle Guimarães
image_pdf

Por DANIELE DE PAULA*

O caráter tardio da CNV e suas limitações em relação ao poder de julgar e condenar os perpetradores da ditadura parece ter sido seu grande problema

Em dezembro de 2014 foi entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade à então presidenta, Dilma Rousseff. Criada pela lei 12.528, o objetivo da CNV era examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, a fim de consolidar o direito à memória, à verdade e promover a reconciliação nacional. Contudo, passados dez anos desde a entrega do relatório final, as disputas pela memória da ditadura no país se intensificaram e a reconciliação nacional parece estar cada vez mais distante. Afinal, o que aconteceu?

Para alguns especialistas, como Rodrigo Motta (2021), a Comissão Nacional da Verdade serviu de estímulo para a mobilização de setores ligados à extrema direita, fazendo com que eventos relacionados ao golpe de 1964 e à ditadura militar se tornassem cada vez mais comuns no debate público. De fato, desde que a criação da comissão foi sugerida, na terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos (2009), ela tem suscitado intensas discussões e disputas memoriais.

Na imprensa, por exemplo, as primeiras críticas à comissão apareceram em 2010, por meio das declarações de generais e publicações de cartas e opiniões (DIAS, 2013). Apesar dessas tensões iniciais, a proposta de criação da CNV foi formalizada e enviada para o Congresso Nacional em 2011, onde sofreu forte contestação do então deputado federal Jair Bolsonaro (ALMADA, 2020).

De modo geral, para setores ligados às Forças Armadas e à extrema direita, a comissão representou o “revanchismo” das esquerdas e a violação da Lei de Anistia (1979). Como se sabe, a transição brasileira (1979-1985) foi tutelada pelos militares e a lei de anistia, de certa forma, refletiu essa tutela ao ter garantido a impunidade dos militares e ter estabelecido as bases para a construção de uma política de “esquecimento”, sob a premissa de que seria necessário esquecer o passado ditatorial para construir o futuro democrático.

Essa política de esquecimento prevaleceu nos anos subsequentes à transição e somente a partir da década de 1990 é que o governo federal adotou algumas políticas de memória em relação à ditadura. Como exemplo desse tipo de iniciativa podemos citar: a Lei dos desaparecidos políticos (1995), a Lei de reparação aos anistiados (2002), a transferência dos arquivos do SNI para o Arquivo Nacional (2005), o livro-relatório Direito à memória e à verdade (2007) e o projeto Memórias reveladas (2009).

Tais medidas também geraram desagrado na caserna e em setores conservadores, mas não tiveram a amplitude e a repercussão da Comissão Nacional da Verdade que, de certa forma, objetivou escrever uma história “oficial” sobre o período da ditadura, além de ter colocado os perpetradores desse período em evidência.

Sendo assim, é compreensível que a Comissão tenha gerado a reação de setores ligados à extrema direita civil e militar. Tais grupos, fortalecidos pelo sentimento de aversão ao partido dos trabalhadores, encontraram um terreno fértil para disseminar não apenas as suas críticas à comissão, como também a defesa da ditadura de 1964. Com isso, a história da ditadura se tornou mais presente no debate público dos últimos anos, reacendo disputas políticas e memoriais.

Durante a efeméride dos cinquenta anos do golpe de 1964, por exemplo, assistimos a uma verdadeira guerra de memórias na sociedade brasileira protagonizada pelos herdeiros e defensores de uma memória crítica à ditadura, cuja hegemonia tem sido ameaçada pela extrema direita nos últimos anos (NAPOLITANO, 2015).

Obviamente os efeitos indesejados da Comissão Nacional da Verdade, isto é, a mobilização de setores reacionários em defesa da ditadura, não diminui a sua importância. A Comissão cumpriu com um papel importante ao nomear e responsabilizar os perpetradores do período (361 agentes do Estado) e afirmar – o que a historiografia já havia mostrado, diga-se de passagem – o caráter sistemático das violações contra os direitos humanos.

Ademais, a comissão também reconheceu 434 mortos e desaparecidos políticos e, propôs, medidas interessantes no que tange ao campo da memória: a proibição de comemorações oficiais do golpe de 1964, o reconhecimento pelas Forças Armadas das violações cometidas contra os direitos humanos, a reformulação do conteúdo curricular das academias militares e o incremento de uma política de preservação da memória das violações dos direitos humanos durante o regime militar (NAPOLITANO, 2015).

No entanto, o seu caráter tardio e as suas limitações em relação ao poder de julgar e efetivamente condenar os perpetradores da ditadura (judicialmente), é que parece ter sido o grande problema. A justiça de transição, de modo geral, baseia-se em quatro pilares: (i) no direito à verdade e à memória; (ii) na reparação das vítimas; (iii) na justiça (através de julgamentos judiciais) e (iv) nas reformas institucionais para fortalecer a democracia. Se levarmos em consideração o processo de transição no Brasil, inicialmente nenhum desses pilares foi cumprido, pois como exposto, a lei de Anistia buscou garantir o “esquecimento” e a impunidade dos militares.

Posteriormente, já em um contexto democrático, alguns dos pilares da justiça de transição começaram a ser construídos no Brasil por meio das políticas de memória citadas acima e da própria Comissão Nacional da Verdade. Contudo, o “esquecimento” que prevaleceu durante tanto tempo, aliado à falta de justiça, parecem ter contribuído para uma má incorporação dos valores democráticos na sociedade brasileira. Portanto, não surpreende que a extrema direita tenha encontrado, nos últimos anos, um terreno fértil para defender a ditadura militar e novos projetos autoritários para o país.

Posto isso, é incompreensível a atitude do presidente Lula que, recentemente, optou por vetar os eventos relacionados à efeméride dos 60 anos do golpe de 1964. Tal postura – ainda que esteja relacionada a uma estratégia política – alimenta o “esquecimento” que nos trouxe até aqui.

*Daniele de Paula é mestranda em História Social na USP.

Referências

DIAS, Reginaldo Benedito. A comissão Nacional da verdade, a disputada da memória do período da ditadura e o tempo presente. São Paulo, Patrimônio e Memória, v. 9, nº 1, 2013.

ALMADA, Pablo Emanuel Romero. O negacionismo na oposição de Jair Bolsonaro à Comissão Nacional da Verdade. RBCS, v. 36, n. 106, 2021.

NAPOLITANO, Marcos. “Recordar é vencer”: as dinâmicas e as vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, Londrina, 2015.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Passados Presentes: o golpe de 1964 e a ditadura militar. Zahar, Rio de Janeiro, 2021.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
11
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
12
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES