Por DANIELE ROSA SANCHES*
Apresentação do livro recém-lançado organizado por Daniela Teperman, Thais Garrafa e Vera Iaconelli.
“[…] o homem imagina enquanto que pensa. Ele pensa enquanto que fala.
Esta palavra tem efeito sobre seu corpo” (Jacques Lacan, Conferências americanas).
Corpo e a ética da psicanálise
A teoria sobre o corpo se enlaça à ética da clínica psicanalítica. Uma ética é aquilo que fundamenta um ato. Para a psicanálise, o fundamento do ato é o desejo.
Há atos humanos cujos fundamentos a razão consciente desconhece. Além disso, as ações do homem sobre o mundo abarcam grandes paradoxos, e um deles é nossa estranha relação com o corpo, amado e odiado, simultaneamente. Não obstante, os modos de satisfação com os quais um corpo se deleita jamais serão unânimes entre os homens. Pelo olhar da psicanálise, nossas ações não são fundamentadas por uma razão única, presumidamente válida para todos. Para um psicanalista, os atos de um sujeito são movidos por desejos que só ele pode reconhecer. Justamente por isso, uma análise é uma ética. É uma ética através da qual cada um é levado a se responsabilizar pelo que deseja. Isso implica medir e assumir as consequências dos próprios atos. O que desejam os seres humanos? Não sabemos no atacado. Cada corpo, uma sentença.
Corpo e mal-estar: dentro e fora
Jacques Lacan, especialista em desentocar os sentidos ocultos atrás das cenas, sugere que Sigmund Freud legou ao mundo não apenas uma teoria do inconsciente, mas também uma nova concepção de corpo. Isso levou a psicanálise a se distanciar das narrativas éticas fundamentadas na racionalidade e no cristianismo (Lacan, [1959-1960] 2008b).
Pela linha da racionalidade, na tese kantiana, a razão deveria levar cada homem a agir em conformidade com a lei moral. Pelo cristianismo, os atos humanos deveriam seguir o seguinte princípio: “ame a teu próximo como a ti mesmo”. No imperativo cristão, o amor por si; no imperativo kantiano, a soberania da razão. O mundo sabe, entretanto, que nem sempre a razão ou o amor ditam os atos entre os homens. A psicanálise se depara com tal fracasso e teoriza sobre isso.
Sigmund Freud avisa ao mundo que, por mais que o homem se esforce e queira usar a razão e o amor como fundamentos de seus atos, nem sempre consegue. O inconsciente age à revelia das universalidades teóricas, e as ações dirigidas ao corpo mostram isso. Jacques Lacan ([1959-1960] 2008a) sugere que todos observemos as relações do corpo com as imagens que nos cercam. As imagens ao redor moldam a experiência corporal, pela via da exigência. Ódio e irracionalidade comparecem no teatro social, e tais antinomias são frutos de uma inversão histórica na concepção de corpo. Para o homem medieval, o mal vinha do exterior para o interior. Mas o homem moderno descobre que faz mal a si mesmo.
Antes de Freud, os homens podiam partilhar do consenso de que o adoecimento corporal tinha origem sempre exógena. O mal invadia o corpo de fora para dentro. A sociedade estava acostumada a justificar os adoecimentos como castigos divinos ou signos da presença invasiva do diabo – aquele mal que entra no corpo sem ser chamado. Michel Foucault ([1961] 2010) mostrou como as representações do diabo nas pinturas renascentistas revelam as mazelas que se abatiam sobre a Terra, sob a ótica da punição. A peste negra, a melancolia, a loucura, a cólera e as perversões sexuais, por séculos, foram todas agrupadas como notícias do inferno ou como signos da fúria de Deus. Possuídos pelo mal, loucos, depravados e leprosos eram agrupados e enviados numa nau rumo ao mar aberto. O espaço civilizado compartilhado ficaria reservado somente aos saudáveis, que supostamente sabiam fazer o uso exclusivo da boa conduta. Corpos doentes e disformes eram lançados ao mar na esperança de que afundassem no vazio.
Com Freud, o homem descobre que o disforme, o paradoxal e o irracional moram dentro dele. A publicação de A interpretação dos sonhos ([1900] 1996) mostra ao mundo que o homem não domina tudo que pensa, tampouco conhece o que deseja. Por mais racionais e moralistas que sejamos, nunca vamos conseguir escolher o que nosso corpo irá sonhar de noite. A luz da razão se apaga diante da força do desejo.
A partir de Freud, a humanidade já não mais consegue sustentar a versão de que o corpo só adoece ou sente dor quando é invadido por um mal externo. A descrição freudiana do masoquismo, por exemplo, descreve sujeitos que deliberadamente buscam o prazer na dor. Estranha e irracional relação entre corpo e prazer. Entretanto, o corpo como abrigo do irracional não se define apenas pelas descrições das perversões.
Ao escutar as paralisias histéricas, Freud mostrou que um desejo inconsciente pode comandar adoecimentos corporais, sem quaisquer danos fisiológicos. De dentro para fora, sintomas desprovidos de origem orgânica atestam a presença de insatisfações e tristezas silenciadas pelo sujeito. Freud revela que o conteúdo censurado durante o dia tende a invadir os sonhos durante a noite.
O homem da razão passa a odiar um corpo que sonha sem seu consentimento.
Corpo e castigo: em nome do amor
As criaturas desfocadas que aparecem nos nossos sonhos não podem ser agrupadas e enviadas numa nau. O corpo sonha, enquanto a razão adormece. Jacques Lacan estava certo. Freud não apenas descobre o inconsciente, mas descobre também que os filhos do iluminismo odeiam tudo aquilo que sua racionalidade não consegue controlar. Se o há um mal desconhecido que mora dentro do corpo, então, é preciso aniquilá-lo.
Eis que o ódio do homem é dirigido a si. E seu corpo paga caro por isso.
Dentre todos os animais que habitam o planeta, o homem é o único bicho que luta contra si mesmo. Pune seu corpo por não cumprir certas exigências da racionalidade moderna. Ainda hoje, corpo e castigo continuam a andar juntos, principalmente no exercício da parentalidade. Atualmente, o agente do castigo corporal não é Deus nem o diabo, mas sim o ser humano, que atua como seu carrasco voluntário.
Não raro escutamos no divã pais, mães e filhos que são os mais cruéis inimigos do próprio corpo. Devotos da lógica do sacrifício, vemos o corpo ser levado muito além dos limites cabíveis em papéis sobrepostos, discursados e racionalizados em nome do amor. Na atualidade, um número crescente de jovens mães, além de manter o corpo dedicado aos filhos através da amamentação continuada, cobra-se por autonomia financeira e ainda é responsável por acompanhar o desempenho dos filhos nas tarefas da escola e pelos afazeres da casa. Corpos exaustos e existências subjetivas silenciadas.
É certo que não são apenas as mães que esgarçam os limites corporais em nome do amor. Tive a oportunidade de ouvir um executivo que queria quitar antecipadamente o pagamento da escola de suas crianças, do jardim à formatura. Ele pensava que, se morresse, a sua obrigação de pai era deixar a escola paga. Esse homem não se autorizava a dormir. Exangue pelo cansaço, preferia consumir anfetaminas para se manter acordado, em vez de consentir com os limites do corpo. Nem dormia nem brincava. Pai devoto, ele raramente via os filhos, afinal, em vida trabalhava além da morte.
Do lado dos filhos, a retórica da punição ao corpo também comparece. Além de o abuso de álcool ser uma realidade presente em adolescentes, também acompanhamos aqueles que cortam o próprio corpo com lâminas. O mal dirigido ao corpo faz enigma. Com votos de silêncio, preferem fazer o corpo sangrar a dizer a verdade sobre o mal-estar que nele habita.
Corpos maltratados em nome do amor no exercício da parentalidade. Diante disso, a psicanálise encara o fracasso do imperativo: “ame a teu próximo como a ti mesmo”. Afinal, se amas a ti mesmo castigando seu corpo, então, que tipo de amor reservarás ao próximo? É fato que um psicanalista tem por função devolver a mensagem de forma invertida: e, então, amar é sacrificar ao próximo como a ti mesmo?
Via de regra, alguém que sacrifica o próprio corpo em nome de uma devoção ao outro tende a exigir ou a esperar que o outro faça um sacrífico semelhante, como prova de amor. Tal lógica da devoção costuma levar ao aniquilamento mútuo. Inocentes são aqueles que acreditam que castigar a si é amar ao outro.
Corpo e sacrífico: em nome do bem maior
A exaustão corporal à qual muitos pais se submetem acaba por se distanciar da lógica do amor.
A díade corpo e sacrifício, em geral, não se inscreve no campo do amor, mas sim no da dívida. Uma espécie de dívida a pagar perante a exigência cultural da imagem da parentalidade – muitos, inclusive, pagam a dívida para esconder o desconforto com a decisão tomada, consciente ou não, de ter um filho, ato que dá trabalho na vida.
Voltemos a indagar: quais as relações do corpo com as imagens que nos rodeiam? A resposta que muitos encontram é que a exaustão corporal é fruto de uma tentativa de responder a um ideal de imagem parental que pesa sobre os ombros. Desde a época em que adoecer era índice da presença do diabo, ser pai e ser mãe foram impregnados como signos de uma dádiva. Mas sabemos todos que, em matéria de divino, o sacrifício almeja redenção. Nessa espera, muitos pais aguardam eternamente por um reconhecimento dos filhos, que nunca chega ou nunca está à altura da devoção empenhada. Pais frustrados de um lado. Filhos culposos e paralisados de outro, afinal, como colocar o corpo para desfrutar da vida e, ao mesmo tempo, devolver a quota de sacrifício que lhes foi entregue?
O castigo e o sacrifício de hoje, em tese, visariam ao alcance de um bem maior, amanhã. Observem. A lógica do amor rapidamente é engolida pela lógica do bem. Eis a armadilha de levar a parentalidade como o exercício de uma razão, ao modo kantiano. O discurso do amor sucumbe à racionalização da busca por um bem maior. Costuma ser um bem justificado, que se equivoca ao impor o castigo do corpo como condição necessária ao avanço da vida. A armadilha de exercer a parentalidade sempre em nome de um bem é que, inesperadamente, isso pode converter-se na busca de um bem a qualquer custo.
Adentramos um campo minado.
Lembremos que o roteiro que promove e discursa sobre o sacrifício e a punição em nome do bem maior tem o histórico de levar a humanidade a desfechos trágicos. As atrocidades cometidas por Hitler, por exemplo, seguiam esse princípio de racionalidade. Atos monstruosos se fundamentavam no discurso de que se buscava um suposto “bem maior” para o povo alemão. Assim, para a psicanálise, é fato que a crueldade, de tempos em tempos, comparece velada e mascarada em nome do bem (Sanches, 2019). Em função dessa verdade, Lacan ([1963] 1998) sugere ler Kant com Sade, pois observa que, no que tange à relação de corpos, a ética da razão em busca de um bem facilmente pode escorregar para o discurso da perversão. A retórica sádica escancara tal paradoxo. Para a fantasia sádica, dotada de ironia ácida, cada homem deveria ter direito ao gozo ilimitado em nome do bem de todos; afinal, supostamente todos se beneficiariam em gozar sem regras. Eis uma das utopias mais perversas da humanidade: supor que um corpo tem o “direito de posse” sobre outro corpo.
O tema da posse e do domínio de corpos é, por fim, o ponto mais delicado das relações parentais entre um bebê e seu mundo. O corpo do bebê é inteiramente submetido aos cuidados do outro. A parentalidade, entretanto, não é o exercício de uma posse, tampouco do domínio do corpo da criança. Ao contrário, é o empréstimo de traços, cujos vetores saem de um corpo para fundamentar a existência de outro corpo. Esses vetores são circuitos pulsionais. Trata-se do empréstimo do olhar, da voz e das palavras, veiculadas por afetos e cuidados que desenham ao bebê o seu corpo, enquanto situado no campo do desejo do Outro – que abarca o desejo materno e a função paterna.
Um bebê entrega-se aos cuidados do Outro, por isso a separação de corpos entre pais e filhos não é tarefa óbvia. Maud Mannoni ([1965] 1999), uma das analistas de crianças mais elogiadas por Lacan, defendia a tese de que em certas simbioses entre mães e filhos estaria em cena uma fantasia de fusão de corpos. Ela constatava que algumas crianças, saudáveis do ponto de vista neurológico, atrasavam o domínio motriz do corpo, por se apoiarem em demasia no corpo materno. A tese da fusão de corpos é, acima de tudo, fusão subjetiva. Na parentalidade há um risco de o movimento de amar ser fundamentado pelo desejo de se fundir. Por isso, a construção subjetiva do corpo de uma criança envolve necessários processos de separação entre pais e filhos.
Em síntese, a psicanálise olha para as relações entre corpo e parentalidade com sua ética e indaga: que desejo é esse que faz um corpo fundir-se a outro, que lança alguns à lógica do sacrifício eterno, que troca afetos por notas promissórias a serem pagas no futuro? Cada corpo, uma sentença, mas é necessário lembrar que essa sentença advém das relações do corpo com as imagens que nos cercam, e tais imagens, às vezes, sufocam.
Causa espanto que, num mundo pós-moderno, as imagens da santa mãe e do todo-poderoso pai ainda continuem a engessar as formas de amar, ditando a lógica do sacrifício e da racionalidade desmedida na busca de um bem, sempre alhures. Não nos enganemos! A imagem da parentalidade como uma dádiva não é sinônimo da bondade, mas, principalmente, o carimbo da ilusão da onipotência, traço próprio às divindades. A onipotência não é apenas um poder, mas também a ilusão de que os limites não deveriam existir. No exercício parental, a ultrapassagem dos limites é anunciada por um mal-estar no corpo. Um corpo-sintoma que reclama, que falha, que se cansa e cogita desistir. O corpo que tem limites não é um mal a ser combatido, mas sim um sofrimento a ser escutado.
Diante dos paradoxos de afetos entre pais e filhos, não é possível embalar a própria castração e enviá-la numa nau com a esperança de que afunde, para que então triunfe uma imagem parental heroica. A razão não triunfa sobre o inconsciente, que, em geral, atrapalha-se quanto àquilo que fundamenta seus atos.
A palavra tem efeito sobre o corpo, disse Lacan. Assim, é absolutamente legítimo que a parentalidade queira ser conjugada pelo verbo “amar”. Mas amar não é sinônimo de exercer a racionalidade desmedida, tampouco o culto do sacrifício eterno. Para a ética da psicanálise (avessa a projetos de redenção), amar vale enquanto ato, desde que seja fundamentado no desejo.
Se é para amar, que seu fundamento seja o desejo, e não um discurso “em nome de”.
O corpo e seus capítulos
Os psicanalistas que aceitaram o desafio de escrever sobre as relações entre corpo e parentalidade lançaram luz sobre os paradoxos envolvidos nessa dinâmica. Os capítulos deste volume foram escritos por autores com diferentes percursos e abrangem ângulos múltiplos do tema.
O feminino, a maternidade e as relações inaugurais do bebê com a mãe comparecem como eixo privilegiado do debate, sob vários ângulos. O leitor tem a oportunidade de percorrer, num só volume, diferentes fotografias teóricas das relações entre corpo e parentalidade. De um lado, alguns textos possuem focos detalhados que capturam conceitualmente os instantes inaugurais de enlaçamento do corpo do bebê com a vida que o cerca. De outro lado, alguns capítulos são dotados de ângulos abertos, cujas visadas panorâmicas dos processos históricos demonstram as desigualdades que marcam o corpo, sua relação com a parentalidade e os imperativos sociais em cena.
Na parte “Fundamentos”, a coletânea é aberta pelo capítulo “O que é um corpo? Como responde a psicanálise?”, escrito por Dominique Touchon Fingermann. A autora situa os mistérios do corpo como indagações à medicina e também como o ponto de partida da psicanálise, através da escuta freudiana da histeria. O texto resgata a noção do corpo como um processo, através do qual uma consistência é adquirida por incorporações. Em seu argumento, o corpo tem seus pilares culturais e é marcado pelos significantes, verdadeiras trilhas que permitem ao sujeito fazer um mapeamento da edificação que o constituiu.
Na sequência, o capítulo “Corpo e língua materna”, escrito por Nina Virginia de Araújo Leite e Paulo Sérgio de Souza Jr., imprime uma cadência musical atravessada por conceitos complexos, esculpidos com leveza ímpar. Os autores revelam como as palavras são embaladas pelas tonalidades da voz, que promovem o enraizamento da língua materna ao corpo do bebê. A entrega corporal é acompanhada de perto. Na belíssima imagem usada no texto, o corpo da criança aparece como habitado por um cavalo de Troia verbal, e tal presente recebido irá sitiar para sempre o sujeito e seu corpo.
No texto “O pior cego é aquele que não quer escutar”, o psicanalista Mauro Mendes Dias articula o conceito de voz à dimensão política do laço social e faz o exame da amálgama entre voz e olhar. O autor reflete sobre a cegueira subjetiva daqueles que não admitem serem afetados pela verdade. Mostra como os traços constitutivos da relação primordial dificultam a ligação do olhar com a verdade que se escuta. Na tese do texto, o traço de cegueira é potencializado como uma especialidade do capitalismo. O autor demonstra que certos fundamentos da constituição psíquica permitem a leitura de determinadas formas de laço social.
O último texto da categoria sobre os fundamentos é “A marca materna”, de Colette Soler. A crítica da autora recai sobre as doutrinas psicanalíticas que insistem em discursos normativos e recriminatórios a respeito da mãe, sempre “acusada de”, seja pelo excesso, seja pela falta de zelo junto aos filhos. O texto deixa em evidência a teoria lacaniana como diferente das demais teses ao ressaltar que, para Jacques Lacan, a mãe se imprime ao filho como ser de fala. Nesse contexto, a posição materna é, em termos analíticos, a marca que o sujeito recebeu do Outro. A mãe é a primeira representante dos poderes do verbo, enfatiza Soler.
Na parte “Parentalidade e mal-estar contemporâneo”, o capítulo “O corpo da mulher e os imperativos da maternidade”, escrito por Maria Helena Fernandes, faz da psicanálise um potente instrumento de crítica social. A autora mostra como a mudança dos nossos tempos, com maiores e melhores condições de inserção da mulher, não se converteu numa transformação de ideais, mas sim num acúmulo deles. Argumenta como o corpo da mulher é exigido a exercer um truque contemporâneo que impõe ideais múltiplos, revelando um tipo de sofrimento feminino que sucumbe aos imperativos de cada época.
Na seção “Interlocuções”, o capítulo de Aline Veras Brilhante, “Da instrumentalização do ventre à biopolítica da maternidade”, sobe o tom da crítica social. O texto descortina camadas sistêmicas que compõem a violência simbólica formada por desigualdades sociais, preconceitos morais, racismo e preceitos patriarcais que avançam sobre o corpo da mulher. Instrumentalizado como palco de um mercado tecnológico, a autora mostra como o corpo das mulheres e seus modos de parir são signos das diferenças de classe, que promovem históricos processos de aprisionamentos subjetivos.
Finalizando o volume, o capítulo “Maternidade, racismo e corpo”, da autora Daniela Roberta Antonio Rosa também é movido pela pesquisa sobre a desigualdade social e racial. A autora revela como as altas taxas de mortalidade que comparecem entre as parturientes negras, em comparação com as mulheres brancas, mostram uma sociedade desigual que crê ter abolido a escravidão, quando, no fundo, reproduz sua manutenção. O texto desvela ainda como a imagem da “mãe preta” participa de uma história não contada da luta pela abolição no Brasil, marcada por um ideal higienista.
O volume Corpo traz ao leitor capítulos signatários da pluralidade de vozes das autoras e dos autores. Um ótimo instrumento de debate sobre um tema difícil. Sem unificação de discursos, cada capítulo, a seu modo, revela que, nas relações entre parentalidade e desejo, o corpo carrega tanto o traço mais singular de suas primeiras experiências quanto as insígnias sociais mais coletivas que atravessam gerações. Boa leitura!
*Daniele Rosa Sanches, psicanalista, é doutora em psicologia clínica pela USP.
Referência
Daniela Teperman, Thais Garrafa e Vera Iaconelli (orgs.). Corpo. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.
Bibliografia
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