Crimes no campus

Stella Sidi, Sob a pele, 2017
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Por ADELTO GONÇALVES*

Comentário sobre a novela de detetive de Flávio R. Kothe

1.

Embora seja frágil a presença da literatura de mistério na tradição literária brasileira, ainda que muitos autores consagrados, como Jorge Amado (1912-2001), Antônio Callado (1917-1997), Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), Guimarães Rosa (1908-1967), Rachel de Queiroz (1910-2003), Orígenes Lessa (1903-1986) e, mais remotamente, Coelho Neto (1864-1934), tenham se aventurado na área, trata-se de gênero muito popular nos Estados Unidos e na Europa e que, muitas vezes, tem servido de pretexto para a análise da sociedade, atuando como instrumento de reflexão sobre as relações entre os donos do poder e os subalternos.

É o que o leitor vai encontrar numa recente obra do gênero policial, Crimes no campus: novela de detetive, em que o seu autor, Flávio R. Kothe, professor aposentado de Estética da Universidade de Brasília (UnB), traça um panorama do que foi vivido à época da anistia promovida pela ditadura militar (1964-1985), já em seus estertores, que provocou, entre outros episódios, o retorno dos mestres anistiados aos seus antigos locais de trabalho na universidade pública.

Como se sabe, por lei, o regime militar passou a conceder anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, haviam cometido atos que tinham sido considerados crimes políticos e crimes eleitorais, tendo os seus direitos políticos suspensos, o que incluía servidores da administração direta ou indireta.

Como em outros locais da administração federal, estadual ou municipal, na universidade pública o retorno dos anistiados também não se deu de maneira tranquila e muitas pessoas passaram a ser tratadas a pedradas exatamente por seus méritos, até porque, por trás, estava o receio de que poderiam ocupar o espaço conquistado por aqueles que haviam atravessado o período sem contestar (ou mesmo a apoiar) a funesta ditadura.

Em função de muitos interesses contrariados e até mesmo da inveja dos que aqui haviam permanecido ou entrado para o professorado depois do período de caça às bruxas promovida pelos militares e seus acólitos, os anistiados passaram a sofrer incontáveis perseguições políticas, que, desta vez, seriam feitas apenas nos bastidores ou na calada da noite. Afinal, muitos dos anistiados retornavam com títulos obtidos em universidades estrangeiras e até livros publicados no exterior.

Até porque a essa época já se havia passado o tempo em que os mais jovens só conseguiam entrar como professores nas universidades públicas se fossem convidados por um catedrático, que, geralmente, como seria mau pesquisador, acabava dando preferência a carregadores de pastas que pudessem também se sujeitar, como pesquisadores, a engolir o pó dos arquivos.

 Com a extinção da cátedra, porém, formaram-se, então, grupos dominantes que haveriam de cuidar de concursos que, muitas vezes, viravam jogos de cartas marcadas, com a escolha de favorecidos, sem levar em conta requisitos fundamentais, como currículo, título ou desempenho em sala de aula. É o que o leitor pode compreender mais a fundo se vier a ler também o artigo “Do mérito acadêmico”, de Flávio R. Kothe, postado no site A Terra é Redonda.

2.

Flávio R.Kothe, embora recorra à ficção, mostra que sabe muito bem como foi o comportamento daqueles que não aceitavam pacificamente a volta dos anistiados aos departamentos de origem. Na trama que arquiteta com mestria, a reitoria de uma universidade pública decide criar um instituto que passaria a alocar esses retornados. Só que o que parecia ser uma boa solução para isolar os anistiados transformar-se-ia, desde logo, em fonte de receio por parte dos grupos dominantes diante daquilo que aquelas pessoas reunidas poderiam tramar.

É de se lembrar que Flávio R.Kothe foi professor na UnB de 1974 até o início de 1979, quando perdeu o emprego por decisão da ditadura, por intermédio de um interventor. Na ocasião, ele havia proposto a criação de uma associação dos docentes. Depois, voltou à UnB como anistiado.

No livro, o que deflagra a investigação que colocará a nu a reação daqueles que já estavam acostumados às arbitrariedades do regime militar é o episódio que se dá a partir de um assassinato que ocorre num prédio novo do campus da universidade em que a vítima é “um jovem de menos de trinta anos”, que aparece “com a cabeça arrebentada”. Era um estudante que ali trabalhava nas horas vagas como assistente do diretor do informalmente chamado Instituto dos Retornados. E que desenvolvia, ao mesmo tempo, um trabalho de pesquisa.

Diante disso, um detetive, de nome Moia, é encarregado de desvendar a trama que teria resultado na morte daquele estudante. Ao seu lado, trabalha um jovem assistente que faria o relato das investigações, que, afinal, acabariam por constituir a narrativa da novela. Obviamente, a atuação desse personagem permite concluir que se trata de uma espécie de alter ego, que haveria de ir a fundo ao expor a estrutura retrógrada que sempre marcou a existência da universidade pública no Brasil.

Eis um trecho do capítulo II que marca o início da investigação e que, como nas melhores obras de literatura policial, atrai o leitor para o desenrolar da trama até as últimas páginas: “Era o meu primeiro defunto na profissão. Meu emprego me obrigava a ver defunto bem de perto, e a fazer uma leitura dele como se fosse um livro esparramado no chão. Eu não estava acostumado a isso. O primeiro defunto a gente não esquece. Senti que ia botar os bofes para fora”.

3.

A partir daí, novos crimes acabariam por ocorrer e o detetive e seu jovem assistente tratariam de procurar entender as tensões que poderiam tê-los motivado. Por trás de tudo, o que, aparentemente, havia era um grupo que, formado à época da ditadura, seria dominado por um respeitado professor, com fama de esquerdista, que aspirava se tornar reconhecido como o maior crítico da cultura brasileira, mas que, nos bastidores, fazia exatamente o que agradava aos militares e à oligarquia que os mantinha, o que significava evitar que pudesse entrar no grupo qualquer intelectual que viesse a questionar o regime.

Por isso, nas bancas de seleção o que valia era se o candidato reunisse qualidades que fossem convenientes ao grupo dominante ou a um dos seus próceres, o que, às vezes, colocava em jogo interesses subalternos, independentemente de títulos, obras ou experiência didática. E, especialmente, que também não pudesse colocar em xeque o poder que o chefe havia acumulado ao longo dos anos, que incluía o direito de distribuir bolsas, empregos, viagens ao exterior e benesses.

Por aqui se vê que Crimes no campus segue a estrutura da novela clássica de detetive, ou seja, um detetive como Sherlock Holmes e alguém que o acompanha como Watson, criações do escritor inglês Arthur Conan Doyle (1859-1930). Trata-se de um modelo que já foi retomado em O nome da rosa (1980), de Umberto Eco (1932-2016), considerado um dos grandes livros da segunda metade do século XX.

Sem contar que, pessoalmente, Flávio R.Kothe nunca escondeu sua admiração por Crime e castigo (1866), do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), em que este autor retoma a estrutura do gênero para deslocar a descoberta do criminoso para um tema como a miséria social e a misericórdia. No caso da recente obra de Kothe, ele, que em seu livro A narrativa trivial (1994) já havia estudado a novela de detetive, quis aproveitar o gênero para discutir temas como inveja, prepotência e arrogância.

Enfim, Crimes no campus, composto dentro dos tradicionais parâmetros da novela ou do romance policial, gênero para muitos críticos ainda considerado paraliteratura, traz uma reflexão fundamental e ainda pouco explorada sobre uma das mais tristes facetas dos “anos de chumbo” no Brasil.

*Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros livros, de Bocage – o perfil perdido (Imesp).

Referência


Flávio R. Kothe. Crimes no campus: novela de detetive. São Paulo: Editora Cajuína, 2023, 194 págs. [https://amzn.to/3YzSH6W]


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