Crises e hegemonias — história em processo

Cedric Morris, Paisagem da Vergonha, c.1960
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Por JULIANE FURNO*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Leonardo Severo

Os últimos 20 anos têm sido particularmente intensos para aqueles pesquisadores, analistas, militantes e curiosos sobre a geopolítica internacional. A forma de exercício de uma hegemonia imperialista quase sem competidores, que caracterizou cenário internacional da década de 1980 até o início dos anos 2000 – vocalizada pelo poderio bélico, cultural, monetário e político dos EUA – foi cedendo espaço para disputas, cada vez mais acirradas, no sistema interestatal.

A análise das questões prementes – a quente, diria – que ocupam os noticiários, os pesquisadores e as organizações sociais, padecem de parcialidade ou de um senso curtoprazista quando não são acompanhadas de reflexões que coadunam os elementos conjunturais aos estruturais.

Os conflitos geopolíticos atuais, sejam aqueles que se expressam de forma belicistas aberta ou aqueles que se utilizam de técnicas de guerra comercial, são expressões fenomênicas de dinâmicas sócio políticas assentadas em processos mais profundos, relacionados a forma com que, muito brevemente, o capitalismo concorrencial transmutou-se em capitalismo imperialista, tão logo o capitalismo atingiu a sua “maturidade”, determinada pelo atingimento de uma das suas leis tendenciais, que é a da concentração e centralização de capital, tendo como consequência a tendência ao oligopólio/monopólio, explicitando uma forma econômica em que a “livre concorrência” é substituída por uma nova forma de “concorrência”, restringida a poucos grandes grupos econômicos vinculados aos seus Estados nacionais de origem.

Nesse sentido, o livro de Leonardo Severo nos situa nesse ponto. Ao mesmo tempo em que trata das questões contemporâneas, que dizem respeito não somente as formas de Estado; aos ciclos de hegemonia; as disputadas geopolíticas atuais e até mesmo projeta desafios para a superação do capitalismo, também nos convoca a refletir as condições sócio-históricas em que esse modo de produção – que vamos, oxalá, juntos superar – se formou, atentando para o caráter histórico e, portanto, transitório do capitalismo, bem como as estruturas que seu desenrolar criou: as desenvolvidas, localizadas no centro e as subdesenvolvidas e dependentes, localizadas na periferia.

Para tanto, Leonardo Severo organiza um livro em que nos dois primeiros capítulos o debate teórico pede passagem. São apresentados, sob uma perspectiva marxista, contraposta a um conjunto de outras leituras, os elementos históricos sob os quais o capitalismo não pode prescindir para se consolidar como tal, com destaque especial para o papel que a América Latina e outras regiões periféricas cumpriram na “assim chamada acumulação primitiva de capitais”, na bela e eternizada expressão de Karl Marx.

Afinal, o capitalismo não é um modo de produção que nasce de geração espontânea, nem tampouco se consolida porque dispõe das características que melhor se relacionam a aquilo que é “natural” dos seres humanos que é a “propensão a troca”, tal como apregoado pelos teóricos da economia política clássica e do liberalismo político, na tarefa de legitimar a superioridade da sociedade do capital sob as formas pregressas de organização social.

Leonardo Severo aponta com presteza que o que singulariza e nos permite falar, propriamente dito, em capitalismo, é o fim da servidão voluntária e demais formas de coerção extraeconômicas e a constituição de um mercado novo, a saber: o mercado onde se comercializa, de forma livre, a compra e a venda de força de trabalho. Portanto, só há capitalismo quando há expropriação dos trabalhadores dos seus meios de produção e a obrigação de que exista um espaço – de preferência minimamente regulado – em que a mercadoria força de trabalho possa ser livremente negociada, em uma aparência troca de equivalentes, onde se troca tempo de trabalho por um salário monetário, possibilitado pela existência privada dos meios de produção.

Mais adiante, Leonardo Severo debate as transformações pelas quais esse modo de produção passou ao longo do tempo, conferindo ênfase – sobretudo – as crises; as trocas de hegemonia; as fases mais ou menos concorrenciais ou mais ou menos intervencionistas com relação ao papel do Estado e, por fim, mas não menos importante, a transformação mais substancial pela qual passou o imperialismo (a qual também comporta suas fases) que foi a transformação do capitalismo atomizado e livre concorrencial em capitalismo monopolista e imperialista.

A visualização das particularidades desse fenômeno, antecipadas por Marx, foi o que permitiu a Lênin apontar, com exatidão, que o imperialismo não era tão somente uma política de governo, tal como apregoado por John A. Hobson ou mesmo por marxistas como Rudolf Hilferding, senão que uma fase, a fase própria do capitalismo monopolista, com todas as suas particularidades tão bem apontadas pelo militante russo, como a partilha do mundo; a mudança para uma política comercial de exportações de capitais; a criação de um novo agente político, o capital financeiro, que reuniria o capital bancário com o capital industrial com hegemonia do primeiro entre outros aspectos.

Na segunda parte, embora ainda recorrendo a temas de natureza demasiadamente teórica, Leonardo Severo trata de “atualizações”, trazendo à baila autores que buscaram interpretar e reinterpretar a outra face dialética do imperialismo que é a dependência. Para tanto, Leonardo recorre à original e latino americana Teoria marxista da dependência (TMD).

Diferentemente da percepção simplista de que desenvolvimento e subdesenvolvimento partem de uma substância em comum, a Teoria marxista da dependência analisa ambos são constitutivos de uma mesma unidade dialética. Assim, eles são antagônicos, por se tratarem de situações distintas, mas são complementares porque ensejam uma mesma lógica de acumulação. Ou seja, o processo de desenrolar do modo de produção capitalista em escala global dá origem a dois tipos de economias que desenvolvem-se em ritmos e intensidades distintas umas das outras.

De uma perspectiva da totalidade, e a partir de uma apreensão do movimento da realidade pautada na dialética, o subdesenvolvimento não só se origina, mas é parte necessária e constitutiva da expansão do capitalismo mundial, não podendo – dessa forma – ser superada nos marcos desse modo de produção. O capitalismo “sui genersis” a que se referia Ruy Mauro Marini,[i] não responde a um capitalismo “menos” capitalista ou não plenamente desenvolvido como tal. O capitalismo dependente não representa uma “falta” de capitalismo. A dependência é uma forma propriamente capitalista de subordinação internacional, diferentemente da dominação colonial. Ou seja, é um tipo particular, uma estrutura própria do modo de capitalista de produção e reprodução.

Das diversas contribuições da Teoria marxista da dependência para caracterizar a dependência, gostaria – nesse prefácio – de me ater a “Transferência de valor”, como uma tendência estrutural e que se reflete em diferentes níveis da vida social. Para ficar em apenas um exemplo contemporâneo: um dos principais constrangimentos das economias dependentes e que, atualmente, atinge duramente a Argentina, são os déficits no balanço de pagamento, ocasionado pela tendência de transferir mais recursos ao exterior do que absorver internamente.

Esse fenômeno é intensificado, paradoxalmente, por soluções que buscam seu contorno, como Investimento Direto Externo produtivo. No entanto, o pagamento de royalties e as remessas de lucro, no médio e longo prazo, vão deteriorando o lado financeiro das contas nacionais, gerando necessidade de outras formas de atração de capitais especulativos e de curto prazo, especialmente via taxa de juros apreciadas para o equilibrando do balanço de pagamento e impondo a chantagem da “fuga de capitais” a qualquer tentativa de política econômica de caráter antimercado.

Do ponto de vista mais teórico e em um grau mais elevado de abstração dentro da teoria marxista, a “transferência de valor” é uma categoria imbricada nos desdobramentos da Teoria do valor de Marx e aí vou me dedicar a primeira forma que Ruy Mauro Marini aponta de transferência de valor, que é a que ocorre na dinâmica das trocas no mercado internacional entre estrutura econômicas distintas (desenvolvidas e subdesenvolvidas) e caracteriza-se pelo fato de uma parte do mais valor produzido pelas economias dependentes não ser apropriado por elas, mas ser transferido às economias centrais, passando a integrar a dinâmica da acumulação de capital no centro, em detrimento da periferia.

Em um rigoroso esforço metodológico com base na análise da concorrência empreendida por Marx no livro III de O capital, Ruy Mauro Marini identifica que a transferência de valor obedece aos diferenciais de produtividade do trabalho empregado por distintas estruturas de composição orgânica do capital entre os países centrais e os dependentes. Assim, considerando o processo social de produção de mercadorias e com base na teoria do valor, cada um dos capitais possui valores individuais distintos e são tanto menores quanto maior for a produtividade e composição orgânica do capital.

Como as mercadorias obedecem a lei do valor, mas são vendidas pelo valor no mercado – os capitais com produtividade acima da média vendem suas mercadorias pelo valor de mercado, desviando-se dos valores para cima do preço de produção, e assim apropriam-se de um quantum de mais valia para além daquela que eles mesmo produziram. Em função do tipo de colonização e da obstacularização do desenvolvimento pregresso dos países latino americanos, as economias dependentes possuem capitais que operam com produtividade abaixo da média, o que as leva a produzir mais valor do que aquele de que conseguem se apropriar. Esse desnível de produtividade é um primeiro mecanismo de transferência de mais-valia produzida nos países dependentes e apropriadas pelo centro.

Por fim, o autor opta por um capítulo em que debate hegemonia, Estado e formas de transição, além de apontar – ainda que maneira mais dispersa – elementos “a quente” da conjuntura internacional. Sobre esse tema gostaria de tecer um comentário final, em concordância com o que já apontou o autor, apenas para reafirmar esse ponto.

Pode-se asseverar, com base na análise da sociedade brasileira, que o período de interregno entre os anos de 1914 e 1980 – com todas as suas especificidades – logrou aos brasileiros um maior raio de manobra para o exercício mais autônomo das suas decisões de nível político e econômico. O que explica esse período particular foi a coexistência de uma crise e posterior disputa de hegemonia no sistema interestatal, selada em eventos como a ocorrência de duas grandes guerras mundiais; uma dramática crise financeira seguida de forte depressão do capitalismo e um acordo internacional que disciplinou o sistema monetário internacional bem como os fluxos internacionais de capitais.

Mas não somente isso. A rivalidade entre dois modelos de sociedade, representados pelas duas maiores potências – URSS e EUA – impôs certos freios à face mais verdadeira do capitalismo, assim como mobilizou um conjunto de revoltas e revoluções pelo farol que representava a retaguarda das experiências de socialismo real, com todos os seus limites históricos.

Dos anos 1980 em diante, aquela “janela histórica” se fechou, bem como as margens de exercício da soberania dos povos periféricos, com a o fim da URSS; o golpe dos juros pelo banco central norte americano; a proporção que adquiriu o capital financeiro e a financeirização das economias e o exercício do imperialismo norte americano, agora sem rivais.

Para a periferia, tais eventos, coadunados com a transformação do capitalismo em capitalismo neoliberal, limitaram o raio de manobra da nossa autonomia internacional, e mergulhamos em acordos, tácitos ou não, em que foi dirimida a presença do Estado como agente do desenvolvimento nacional, restringindo os instrumentos de atuação no campo econômico, com a criminalização de um conjunto de políticas das quais fizeram uso, justamente, as nações hoje desenvolvidas no seu percurso de desenvolvimento.

A questão que o trabalho do Leonardo Severo nos sugere, no alvorecer dos nossos tempos, abalados por um conjunto sucessivo de crises e lutas pela conquista/contestação da hegemonia é: com a existência de um novo campo no sistema internacional, dirigido por China e Rússia, em conflito aberto com os EUA, passando pela sua contestação no campo político, econômico, tecnológico, monetário e, até mesmo militar com a tentativa de freios à expansão da OTAN, nos relega melhores condições de avanço na luta política rumo a abertura de margens de manobra perdida no último período?

É possível que instrumentos como os BRICS; as tentativas de construção de moedas comuns; as alianças comerciais; transferências tecnológicas e estreitamento das relações políticas abram caminho para a contestação e posterior enfraquecimento do imperialismo norte americano e, com isso, a tão sonhada possibilidade de fazer valer a autonomia dos povos?

Essas e outras questões podem e devem ser especuladas e teorizadas pelos pesquisados, pelos intelectuais e pelas organizações políticas, muito embora a história seja um palco aberto e, seus desdobramentos reais, não caibam em previsões apriorísticas. Fiquemos com o que nos é possível! As armas teóricas e a luta política.

*Juliane Furno é professora de economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Autora, entre outros livros, de Imperialismo: Uma introdução econômica (Editora DaVinci). [https://amzn.to/3KE4NDU]

Referência


Leonardo Severo. Crises e hegemonias: história em processo. São Paulo, Editora Dialética, 2024. [https://amzn.to/3xfQIcU]

Nota


[i] Todas as referências aqui presentes à Ruy Mauro Marini foram extraídas do livro Dialética da dependência.


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