Crises econômicas internacionais e Estados

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Por MARCUS IANONI*

As crises econômicas internacionais permitem compreender o deslocamento dos regimes no eixo autocratização-democratização

Introdução

Este trabalho investiga, pelo método histórico-comparativo (Lijphart, 1971), impactos das quatro grandes crises internacionais do capitalismo ocorridas até 2019 – Longa Depressão, Grande Depressão, Crise de Estagflação e Grande Recessão – nos Estados de três países, Estados Unidos (EUA), Alemanha e Brasil.[i] Dada a autocratização pós-2008, foca-se mais na dimensão do regime político do Estado e na Grande Recessão, que alavancou desdemocratizações. Mas articulo o regime com outras duas dimensões do Estado: associação política alavancada em coalizões e decision-maker (Weber, 2004). Autocratização refere-se à tendência autoritária, em um período temporal, que, influenciando várias nações, diminui o número de países em democratização (Lührmann, Lindberg, 2019).

Analiso o Estado tridimensionalmente. Regime é a institucionalidade reguladora do processo de governo (formação, mudança, direito à oposição etc.) e das relações entre o Estado e a sociedade. Ademais, o Estado é uma organização de dominação política que toma decisões, destacando-se as relacionadas à sua forma institucional e à economia – objeto-chave da luta política.[ii] Sua função decisória ambienta-se em um quadro estrutural complexo, sobressaindo-se a sociedade civil, as classes sociais, os mercados interno e externo, o sistema internacional. Neste cenário, os atores associam-se e demandam, segundo suas preferências, decisões sobre políticas públicas e regras institucionais. Como no capitalismo a produção dos bens e serviços é privada, as decisões do Estado, em qualquer regime, têm a acumulação como estrutura de referência (Offe, 1984; Przeworski, 1995) e dependem de e expressam alianças de apoio, de natureza político-institucional e sociopolítica. A dinâmica das alianças gera relações de cooperação, competição e conflito.

O artigo inspira-se em Gourevitch (1986), que, para compreender as causas políticas das escolhas das políticas econômicas, comparou os impactos das três primeiras crises da economia internacional em cinco países desenvolvidos (Alemanha, EUA, França, Reino Unido [RU] e Suécia). Ele observou como as crises induziram mudanças em duas variáveis do Estado: as políticas econômicas e as coalizões que as alavancaram. A comparação aqui é ainda maior, pois acrescento uma terceira variável, o regime político, e a quarta crise, a Grande Recessão. Assim, este trabalho enfrenta o dilema da comparação nas ciências sociais: muitas variáveis, poucos casos (Lijphart, 1971). Cada uma das quatro crises internacionais são as variáveis independentes; as três variáveis dependentes compõem o conceito de Estado: as coalizões, as decisões sobre políticas públicas e regras institucionais e o eixo autocratização-democratização dos regimes. Argumenta-se que as distintas respostas nacionais às crises internacionais resultam das interações entre esses estímulos externos comuns e fatores internos específicos, que tendem a redefinir o Estado tridimensionalmente, como regime, decision-maker e associação de dominação política coalizada. O processo de resposta às crises tende a reconfigurar as alianças e preferências dos atores-chave relacionadas às decisões do Estado, sobretudo na política econômica, tendência que, frequentemente, também incide no regime, mudando-o ou fortalecendo ou enfraquecendo cursos de democratização ou autocratização. Como as três variáveis dependentes convergem no Estado, ele as sintetiza. As crises internacionais são conjunturas críticas, que, em relação aos atores, balizam suas preferências, assim como as coalizões e oposições políticas e a correlação de forças. Contextualizando singularmente a ação política (institucional e social), as crises são fontes empíricas privilegiadas para analisar alterações no arranjo tridimensional do Estado. Nas crises internacionais, os distintos deslocamentos dos países no espectro dos regimes políticos iluminam encontros e desencontros entre capitalismo, autoritarismo e democracia.

Selecionei Alemanha, Brasil e EUA, para o propósito histórico-comparativo, pelo seguinte: nas quatro crises internacionais aqui examinadas, eles apresentaram uma inserção tal na economia mundial que essas conjunturas críticas necessariamente os alcançaram, impactando na tridimensionalidade conceitual de seus Estados, apesar de suas diferenças em estrutura produtiva, transações externas e renda (alta ou média); são atores importantes na economia mundial ou regional; experimentaram alguma autocratização (remota ou atual) domesticamente produzida. Eles possuem semelhanças e diferenças nos deslocamentos no eixo autocratização-democratização. Brasil e Alemanha experimentaram regimes autoritários, mas o primeiro nunca passou pelo fascismo, caracterizado, sobretudo, por apresentar uma liderança ditatorial mobilizadora das massas, visando legitimação popular para controlar completamente a vida das pessoas e aniquilar qualquer oposição política (Stanley, 2018). Porém, há tendências neofascistas no bolsonarismo(Boito, 2020). Desde 1945, a Alemanha percorre uma trajetória democrática, embora, no pós-2008, a extrema-direita ressurgiu. Os EUA, costumeiramente considerados uma democracia plena, perderam qualidade democrática no pós-2008, passando pelo governo Trump, líder qualificado por alguns como neofascista (DiMaggio, 2021). A análise mobiliza sincronia e diacronia, semelhança e diferença, comparações intranacionais e internacionais. Como as crises econômicas internacionais impactam nas três variáveis do Estado, ensejando, em alguns contextos nacionais, deslocamentos nos regimes políticos?

Formulo três hipóteses correlacionando crises econômicas internacionais e regimes políticos. A primeira refere-se à chance de elas mudarem os regimes ou de induzirem ao aumento ou redução dos seus níveis de democracia ou autocracia. Tais efeitos correspondem a pressões estruturais e de agência favoráveis ou prejudiciais à ampliação ou à restrição das igualdades socioeconômica e política, dependendo das preferências dos atores relevantes e da relação de forças entre as alianças em ação. As pressões acirram o conflito distributivo, podendo ensejar tanto respostas mais universais e igualitárias – que desenvolvem a cidadania e os grupos sociais que o Estado visa beneficiar com suas ações –, como mais restritivas, combinando a exclusão pelo mercado (desemprego, subemprego etc) com a redução de direitos (civis, políticos, sociais). A segunda hipótese é que, nas crises internacionais, a autocratização (em vários graus) pressupõe gerar-se uma relação de forças pró-empresariado e de subordinação dos trabalhadores. Nesse sentido, destaco três situações: a) predominância de uma liderança autoritário-mobilizadora aliada aos conservadores e aos empresários, em contexto de ingovernabilidade (Hitler); b) uma aliança autoritário-mobilizadora entre o conjunto ou parte do grande empresariado e segmentos conservadores do eleitorado, em contexto de crise de legitimidade democrática (Bolsonaro e Trump); c) quando, em contextos de crise de hegemonia ou de equilíbrio de classes, emerge uma liderança militarmente respaldada, que impulsiona, antidemocraticamente, a autonomia relativa do Estado (Alemanha de Otto von Bismarck e o Estado Novo, no Brasil). A terceira hipótese é que o compromisso democrático dos atores é uma barreira contra a autocratização.

Desancorado do exclusivismo institucionalista, hegemônico na ciência política (e. g. Levitsky, Ziblatt, 2018; Lührmann, Lindberg, 2019), examino regimes políticos e a atual onda autoritária domesticamente produzida. Apoio-me em visões (neo)marxistas do Estado (Przeworski, 1995) e da economia política, nesse caso, a régulation theory (Boyer, Saillard [ed.], 2002), útil para iluminar as distintas fases do capitalismo vigentes nas quatro crises examinadas. Viso contribuir empiricamente para compreender, interdisciplinarmente, autocratização e democratização nacionalmente geradas (exceptuando o pós-1945 alemão), induzidas pelas crises internacionais, como processos assentados nas esferas econômica, social, política e ideológica, que evocam a referida concepção tridimensional do Estado.

Crises do capitalismo e transformações no Estado

 O debate sobre a crise do capitalismo reemergiu com a Grande Recessão (2007-2008). Desde então, fala-se em estagnação secular, reinvenção do capitalismo, indaga-se sobre seu fim etc (Streeck, 2016).[iii] Adoto como definição de crise econômica “a sharp deterioration in aggregate economic performance, indicated by slow growth and accelerating inflation”, ou deflação, que não se autocorrige (Haggard, Kaufman, 1995, p. 8). No pós-2008, afloraram debates sobre a crise da democracia e a onda autoritária. A atual coexistência das crises do capitalismo neoliberal e da democracia enseja examinar, em perspectiva histórica e comparada mais amplas, como as três crises econômicas internacionais passadas, além da atual, impactaram nos Estados de alguns países.

Nas crises econômicas, processos estruturais (produção, empregos, mercados, moedas) e de agência (decisões, coalizões) combinam-se. A agenda pública e as alianças entre os atores tendem a mudar. Por vezes, as mudanças vêm por eleições, quando se trocam governos. Noutros casos, governantes reformulam suas políticas, renunciam ao cargo, há golpes de Estado, revoluções. Alterações em políticas públicas, alianças e na relação de forças tendem a encadear-se seja com mudanças quantitativas nos regimes políticos – que aumentam ou diminuem seus graus de autoritarismo e democracia – ou qualitativas, gerando sua substituição. Abordarei efeitos das quatro crises internacionais mencionadas nos três Estados selecionados.

A longa depressão (1873-1896)

 A Longa Depressão, primeira crise econômica internacional, ocorreu no fim do século XIX, em contexto de liberalismo econômico, Segunda Revolução Industrial, substituição do bimetalismo pelo padrão-ouro e primeira onda democrática (Huntington, 1991). Quanto ao padrão-ouro, Polanyi (2001) atentou para os riscos da uniformização de políticas econômicas visando configurar mercados mundiais autorregulados. Um dos principais sintomas desta crise foi a ampla e duradoura deflação. O debate político centrou-se no posicionamento dos países sobre o comércio internacional (Gourevitch, 1986). Livre-comércio ou protecionismo?

Nos EUA, o fim da Guerra Civil ensejou prosperidade nos negócios urbanos, indústria e finanças. Aberta após uma década de prosperidade, a crise teve duas ondas, os pânicos de 1873 e 1893. Em 1896, na segunda onda, houve uma eleição de realinhamento, “an election type in which the depth and intensity of electoral involvement are high, in which more or less profound readjustments occur in the relations of power within the community, and in which new and durable electoral groupings are formed” (V. O. Key Jr., 1955, p. 4). Essa eleição presidencial delimitou os principais conflitos de interesse e alianças, opondo duas coalizões entre partidos políticos e atores sociais. A vencedora, que enfatizou a produção e os empregos na indústria pesada, reuniu o grande empresariado urbano e trabalhadores mais qualificados no apoio ao Republicano William McKinley, defendendo o protecionismo industrial e o livre-comércio agrícola; a derrotada, qualificada como populista e progressiva, resultante da fusão entre o People’s Party e os Democratas, concebia os cidadãos como consumidores e demandou a generalização do free trade. Esse resultado eleitoral impactou no sistema político: encerrou o bipartidarismo equilibrado do Terceiro Sistema Partidário e inaugurou o Quarto Sistema Partidário (Hershey, 2014), caracterizado por quatro décadas de dominância do Partido Republicano (doravante PR ou Republicanos).

Na Alemanha de Bismarck, o livre-comércio, ancorado nos junkers, deu vez ao protecionismo, amparado na iron and rye coalition, um bloco de apoio entre a indústria pesada e a agricultura, mediado pela aliança entre os partidos Liberal Nacional e Conservador. O resultado político e ideológico reforçou, até 1918, o nacionalismo, o militarismo imperialista, o antissocialismo, a seguridade social e um sistema político autoritário-competitivo (Gerschenkron, 1943).

Há pouca informação específica sobre impactos da Longa Depressão no Brasil. Após o Pânico de 1873, a crise chegou ao país pela deflação, que durou dez anos. Nos EUA e Europa, ela causou a queda dos preços na agricultura, mas, no Brasil, também na indústria (Roberts, 2009 e 2016). Analisando a crise financeira da abolição, no final do século XIX, Schulz (1996) avaliou que 1875 foi um ano-chave para estudá-la, sendo sua causa externa a Longa Depressão e a interna, a moratória do Banco Mauá. Ao investigar as raízes da industrialização no Brasil, Luz (1961) observou que a queda contínua dos preços do café, no período 1880-1886, favoreceu a execução de uma política industrial. Porém, dada a força dos interesses livre-cambistas dos agroexportadores e a fraqueza dos industriais, não se introduziu uma efetiva tarifa protecionista, apenas afloraram os primeiros argumentos industrializantes, intervencionistas e nacionalistas.

Importa aqui o reposicionamento político dos cafeicultores em relação ao Segundo Reinado, tanto pelo impacto de uma década de depressão nos preços internacionais do café, como por não terem sido indenizados pela abolição. Esses fatores concorreram para o golpe da Proclamação da República, em 1889, mudança de regime alavancada pela aliança entre republicanos fazendeiros não radicais, por seu abolicionismo ser fraco ou moderado), e agricultores até então monarquistas descontentes com a situação econômica e com a monarquia. Coalizaram-se defendendo o federalismo e a imigração – que tem relação com os impactos da Longa Depressão na Europa e no Brasil. Adveio a República Oligárquica, que manteve o autoritarismo competitivo, a concentração da terra e o poder dos cafeicultores. Após algumas dificuldades, desde 1898 Campos Sales estabilizou política e financeiramente o regime da Constituição de 1891 (Franco, s/data; Bello, 1983; Carvalho, 2011).

Grande Depressão (1929-1939)

Na irrupção da Grande Depressão, em 1929, a economia política internacional era similar à de 1873: livre-comércio e padrão-ouro. Naquela década, os mercados creditício e acionário dos EUA estavam tão desregulados e atrativos para o investimento especulativo que a euforia levou ao pânico e à explosão da bolha financeira.

Até então, sequer os partidos socialistas ou social-democratas incorporavam aos seus ideários econômicos uma abordagem alternativa à ortodoxia neoclássica, a não ser o socialismo. Quanto ao regime político, o contexto era de primeira onda reversa da democracia, aberta pela ascensão do fascismo na Itália, em 1922. As respostas nacionais à crise, iniciadas no pré-guerra e prosseguidas após seu fim, inovaram em termos de coalizões de classe, política econômica, ideologia e regimes políticos.

Emergem, simultaneamente e sintetizando variáveis internacionais e nacionais, três processos de mudanças na tridimensionalidade do conceito de Estado. Primeiramente, surgem novos arranjos de políticas econômicas intervencionistas, mais amplos que o mero protecionismo, configurando o que no pós-guerra denominou-se economia mista, ou, também, keynesianismo, destacando-se as políticas de estímulo da demanda (Shonfield, 1965). Estado e mercado passam a estabelecer uma relação distinta do liberalismo econômico até então predominante. Diante da crise, governos nas Américas, Europa e Ásia executaram, intuitivamente, medidas contracíclicas e intervencionistas, depois teorizadas por abordagens econômicas alternativas à ortodoxia neoclássica, que, em quaisquer contextos, preconiza a primazia dos mercados.

Em segundo lugar, as políticas intervencionistas associaram-se, entre 1930 e 1970, a cinco novas vias de regime político: nos países desenvolvidos, a democracia-social e o fascismo; na América Latina, por um lado, os dois tipos de populismo (autoritário e democrático), ancorados na política de massas; por outro lado, as ditaduras militares não populistas. A depressão internacional e o pós-guerra ensejaram o surgimento de regimes democráticos e autoritários incorporadores das massas, mas, obviamente, com objetivos e meios distintos. As sociedades de massas transformavam os regimes, que, distintamente, promoviam nacionalismo na economia ou na política externa, intervencionismo industrializante e políticas sociais. O terceiro processo diz respeito às coalizões, que abordarei a seguir nos três países investigados.

Nos EUA, um realinhamento eleitoral dos Democratas com blocos de eleitores assalariados estruturou a New Deal Coalition, que abriu o Quinto Sistema Partidário, afastando bastante os Republicanos da presidência, e reforçou a democracia. De 1933 a 1968, essa estrutura de coalização só perdeu para o PR as eleições de 1952 e 1956 (Hershey, 2014). A New Deal Coalition foi a versão norte-americana do compromisso histórico entre capital e trabalho, mais claramente configurado no pós-guerra europeu, combinando, sobretudo nos governos social-democratas, a democracia com políticas de estabilização, regulação dos mercados e bem-estar social (Przeworski, 1989).

Já na instável República de Weimar, a depressão contribuiu para alavancar, nas eleições de 1930 e 1932, o Partido Nazista, liderado por Hitler. Sua ascensão a chanceler, em 1933, a partir de uma aliança com o Partido Nacional Popular Alemão, causou uma guinada ideológica à extrema-direita no fragmentado sistema partidário do Reichstag, que alavancou mudanças institucionais radicais no equilíbrio de forças, nas coalizões, no regime político, na política econômica, enfim, no Estado.

A derrota do Império Alemão na Primeira Guerra, cuja pacificação foi concluída no Tratado de Versalhes, desdobrou-se numa crise multidimensional, inclusive de conteúdo socialista-revolucionário. Diante da pressão popular liderada pelo Partido Social-Democrata (SPD), o Kaiser renunciou. Proclamou-se a república, a República de Weimar, que logo precisou arcar com um imenso passivo do militarismo imperial. A Alemanha foi punida com um duríssimo plano de pagamento de reparação dos danos bélicos causados aos países da Tríplice Entente. A pacificação foi humilhante e realimentou o nacionalismo dos conservadores. Um pacto entre os moderados da social-democracia e o general-chefe das Forças Armadas implicou na Weimar Coalition (1918-1929), entre o SPD (centro-esquerda) e os partidos Democrático e Católico do Centro, ambos de centro-direita (Gerschenkron, 1943). Sociopoliticamente, trabalhadores e empresários da indústria de alta-tecnologia aproximaram-se. O fortalecimento da posição exportadora das corporações alemãs na competição internacional requeria qualificação da mão-de-obra.

Na Revolução de Novembro, aberta em 1918, instituiu-se o Zentralarbeitsgemeinschaft, acordo pelo qual trabalhadores e empregadores formalizavam barganhas salariais. Os sindicatos operários conquistaram a jornada de trabalho de oito horas diárias (Feuchtwanger, 1993). Os antigos parceiros na iron and rye coalition perderam importância nesse novo arranjo da economia política, que não era protecionista, tampouco nacionalista ou hostil à esquerda moderada. Mas a maioria parlamentar da Weimar Coalition perdurou pouco tempo, constrangida pela crise financeira e hiperinflacionária dos anos 1920 e pela ingovernabilidade da república. Então, a extrema-direita ascendeu. Uma de suas principais bases de apoio foram os junkers, cujo poder econômico e político, aparentemente enfraquecido no início do novo regime, mantinha-se, na verdade, quase intacto, pela não realização da reforma agrária.

Em 1931, uma grave crise bancária fez o país regredir da recessão para a Grande Depressão, que perdurou até 1933 (Doerr et. al., 2019). Nas eleições de novembro de 1932, os nazistas tornaram-se o maior partido no Reichstag, mas com apenas 33% dos votos. Socialistas e comunistas somaram 37%. Porém, apesar de virtualmente majoritária no parlamento, a esquerda estava dividida. A Internacional Comunista, já stalinizada, priorizou a oposição ao SPD, e não o antinazismo. Após as eleições, 19 líderes da indústria, finanças e agricultura peticionaram ao presidente Paul Von Hinderburg, de origem junker, demandando a nomeação de Hitler como chanceler, ocorrida dois meses após.

Mobilizando o apoio direto das massas, o Führer desconstruiu, na depressão, a Weimar Coalition. Costurou uma coalizão fascista das frações de classe da burguesia, disposta a destruir as organizações da esquerda: o SPD, o partido comunista e os sindicatos. A depressão fortaleceu o peso relativo da indústria pesada nas associações empresariais. Com a perda de mercado externo pela indústria exportadora de bens acabados, as preferências mudaram, os industriais dos principais setores unificaram-se e realinharam-se aos agricultores. Formou-se uma frente única do empresariado urbano e rural, contrária ao compromisso social e às organizações dos trabalhadores, que apoiou a política de intenso estímulo à demanda, à qual, até então, o SPD era ferrenhamente refratário, por não vislumbrar alternativa à ortodoxia neoclássica. Inicialmente, o governo nazista implementou um keynesianismo intuitivo, com gastos governamentais deficitários, destinados a obras públicas. Em seguida, os estímulos econômicos alavancaram o militarismo, devido aos fins expansionistas. No conjunto, o programa de Hitler foi fascista, intervencionista, nacionalista e imperialista, desdobrando-se na Segunda Guerra. O Terceiro Reich ofertou aos empresários volumosos gastos públicos, bélicos e com obras, controle salarial e repressão aos trabalhadores organizados. Mas, comparativamente, logrou a maior redução internacional do desemprego, e não alterou significativamente a seguridade social herdada de Bismarck (Gourevitch, 1986).

Obviamente, a onda da Grande Depressão também inundou o Brasil, causando profundo impacto econômico e político. Ela influenciou a conjuntura da Revolução de 1930, golpe de Estado contra a República Oligárquica, liderado pelas oligarquias dissidentes e respaldado por atores sociais urbanos – trabalhadores e camadas médias (Bello, 1940) –, que encerrou a hegemonia da burguesia cafeeira. Skidmore (1975, pp. 27-31) identifica dois grupos na coalizão revolucionária: os revolucionários – constitucionalistas liberais, lastreados na classe média e no Partido Democrático de São Paulo, e os nacionalistas semiautoritários (tenentes); e os não-revolucionários – militares superiores, cafeicultores insatisfeitos com as políticas de resposta à crise executadas por Washington Luís e a elite política dissidente.

Ao caírem as exportações e os preços do café, as divisas minguaram, explicitando a restrição externa estrutural, cuja superação dependia de modernização econômica. O agente modernizador foi um Estado que se transformou, adquiriu caráter nacional e desenvolvimentista, impôs o corporativismo e, ditatorialmente, entre 1937 e 1945, aboliu o federalismo. Fortaleceram-se os atores e interesses urbanos dos trabalhadores e classes médias. Emergiram valores nacionalistas. A industrialização mudou a matriz produtiva, desenvolveu-se o mercado interno, superou-se o exclusivismo liberal, rural e agroexportador. Mas persistiu a concentração fundiária. Em síntese, arcaico e moderno rearticularam-se. No novo padrão de acumulação, ou o setor interno, que era subdesenvolvido no modelo agroexportador, modernizou conservadoramente o arcaico ou manteve-o instrumentalizando-o (Oliveira, 1972).

Em termos gerais, o pós-guerra abriu a segunda onda democrática (Huntington, 1991). Sobretudo na Europa – mas também nos EUA, que saiu fortalecido do conflito bélico –, keynesianismo e democracia combinaram-se, sob diferentes modalidades nacionais, configurando a fase mais bem-sucedida do capitalismo desenvolvido, que equacionou crescimento, pleno emprego, controle da inflação, políticas de bem-estar social, queda da desigualdade e regimes políticos que expandiram as liberdades e a cidadania (Boyer, Saillard [ed.], 2002). As ideias econômicas e políticas públicas desse casamento foram chamadas de consenso keynesiano e seu desdobramento nas relações entre capital e trabalho, de compromisso histórico ou de classe (Gourevitch, 1986; Skidelsky, 2009).

Nos EUA, o reformismo do pós-guerra foi mais fraco, freado pela oposição conservadora. Porém, um arranjo político entre Democratas e Republicanos moderados impediu que os retrocessos desejados pela direita, como nos direitos sindicais dos trabalhadores, avançassem além de certo limite. No contexto estrutural de reconfiguração conjunta do Estado e da economia, ensejado durante a Grande Depressão e alavancado politicamente pela New Deal Coalition, Lindon Johnson executou, em 1964-1965, o programa Great Society, com políticas sociais e antirraciais, embora a forte presença da classe média na coalizão implicou em um welfare state liberal (Esping-Andersen, 1990).

Entre os três países analisados, o compromisso histórico do pós-guerra expressou-se, sobretudo, na social market economy (doravante SME) alemã, combinando, pela liderança da Democracia Cristã (CDU/CSU), liberalismo, generosas políticas sociais, regulação do trabalho e participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Principalmente desde 1966, quando Willy Brandt (SPD) tornou-se vice-chanceler, o keynesianismo entrou em cena (Streeck, 1996; Van Hook, 2004; Dauderstädt, 2013). Uma coalizão reformista, à la Weimar, entre a indústria exportadora de produtos de ponta e seus trabalhadores alavancou este modelo alemão de capitalismo. O desaparecimento dos junkers na guerra, a retomada da organização sindical e a prioridade conferida ao mercado internacional, em contexto de reconstrução alemã e europeia, estimularam o abandono da aliança protecionista (Gourevitch, 1986). Desde a divisão do país em dois Estados distintos, em 1949, ergueu-se uma democracia estável na Alemanha Ocidental, impulsionada pelas forças de ocupação aliadas, a nova Constituição, a reconfiguração da relação de forças e a reforma partidária. A Democracia Cristã, de centro-direita, e o SPD, de centro-esquerda, tornaram-se os dois principais partidos, ideologicamente posicionados ao redor do centro. Em 1952, a Corte Constitucional Federal baniu o Partido Comunista da Alemanha, fundado em 1918. Alegou-se que ele visaria fins antidemocráticos. Mas, na reunificação da Alemanha, em 1990, surgiu um partido homônimo em Berlim, reivindicando seu legado. Há também o DIE LINKE, enraizado no antigo Partido Comunista da Alemanha Oriental.

No Brasil, encerrada a guerra, houve mudança de regime. O Exército depôs a ditadura de Getúlio Vargas, respaldado nos liberais e democratas. Novas eleições e a Constituição de 1946 inauguraram a democracia populista, que, ancorada na aliança desenvolvimentista (Cardoso, 1993, pp. 51-78) – com um teor nacionalista moderado, coexistindo com o capital estrangeiro em vários mercados internos –, incorporou as massas urbanas ao desenvolvimento. Na esfera político-institucional, essa aliança expressava-se pela coalizão entre o PSD e o PTB.[iv]

Crise de Estagflação (1973-1982)

A crise de estagflação conduziu ao encerramento do capitalismo do pós-guerra e ocorreu simultaneamente ao início da terceira onda democrática, em 1974. Ela manifestou-se em duas recessões internacionais, em 1973-1975 e 1980-1983, ambas ligadas a choques do petróleo. O primeiro deles, que quadruplicou os preços do barril, foi a principal causa da surpreendente coexistência de desemprego, inflação alta e crise do crescimento, ou seja, estagflação, recessão que, nos EUA, durou 16 meses.[v]

Dois anos antes, em 1971, ocorrera o Nixon shock, uma resposta à especulação contra o dólar, ao desemprego e à inflação. O presidente Nixon rompeu unilateralmente com a conversibilidade internacional estabelecida em Bretton Woods, o que demarcou uma mudança estrutural, que induziu ao regime de câmbio flutuante, padronizado no capitalismo neoliberal.[vi] O fim do padrão dólar-ouro foi uma vitória dos bancos privados sobre os governos quanto ao controle do sistema financeiro internacional, que passou a ser market-oriented. O desarranjo na economia mundial agravou-se com o embargo do petróleo por parte da OPEP, durante a guerra do Yom Kippur. O índice Dow Jones da bolsa de valores de Nova York caiu 50%, entre o pico, no final de 1972, ao vale, em 1974, sendo, então, o maior crash desde a Grande Depressão. Ademais, em 1979, a Revolução Iraniana causou outro choque do petróleo, que resultou na duplicação do preço do barril. Combinada com o choque monetarista do Federal Reserve (FED, Banco Central dos EUA), visando combater a inflação, o impacto dessa segunda crise do ouro negro foi pior que o da anterior, desencadeando, entre 1980 e 1983, a maior recessão internacional do pós-guerra (Moffitt, 1984; Davis, 2003; Kindleberger, Aliber, 2005).[vii]

Assim, deterioraram-se, nos países desenvolvidos, as condições econômicas e políticas de sustentação da Golden Age, cuja economia política expressava dois equilíbrios, um entre capital e trabalho, outro entre as potências do sistema internacional, EUA e URSS, que determinavam a bipolaridade da Guerra Fria.

A crise de estagflação ampliou as divergências dos economistas e atores políticos sobre como superar uma recessão. Ela ensejou, por processos econômico-estruturais e eleitorais, o neoliberalismo, onda conservadora internacional, ideologia cujas policies, ao abandonarem o sistema de taxa de câmbio fixa, a perspectiva do pleno emprego e o controle de capitais, desconstruíram as bases da economia mundial vigente por três décadas (Skidelsky, 2009). Devido a mudanças estruturais – internacionalização das manufaturas, aumento da competição das corporações no mercado mundial e o intenso crescimento das finanças –, os oligopólios de vários setores de atividade aderiram a esse novo ideário, que mirava contra o trabalho, os sindicatos e o Estado (salários, impostos, políticas sociais e regulação dos mercados), visando diminuir custos, privatizar empresas e serviços públicos, restaurar as taxas de lucro e os ganhos dos acionistas e gestores. Essa economia política opera uma tendência de coalização do capital em geral oposta ao trabalho e aos papeis social, regulador e empresarial do Estado (Gourevitch, 1986). Ela alavancou uma mudança estrutural no regime de acumulação, em direção a um capitalismo dirigido pelas finanças, desenhado nas políticas do Consenso de Washington, baseadas na teoria dos mercados desregulados (Skidelsky, 2009; Guttman, 2016), que se tornaram hegemônicas desde a queda do Muro de Berlim, em 1989 (Duménil, Lévy, 2011).

Na economia, o neoliberalismo tem gerado maior instabilidade, taxas de crescimento menores e o aumento tanto da participação do setor financeiro no PIB como da desigualdade. Na política, as decisões governamentais tendem a reproduzir policies padronizadas, enraizadas na economia ortodoxa, mesmo quando o partido mandatário é de esquerda; os políticos conservadores, os investidores financeiros e as corporações empresariais demandam a moderação dos direitos democráticos, visando não prejudicar a disciplina de mercado, em função de seus custos (Godechot, 2016).[viii]

Nos EUA, a acachapante vitória eleitoral do Republicano Ronald Reagan sobre o Democrata Jimmy Carter abriu as portas do Estado para essa referida ideologia econômica e social conservadora, da nova direita, o neoliberalismo, que, em 1979, havia entrado firmemente no Reino Unido pelas mãos da Dama de Ferro, Margareth Thatcher.[ix] As políticas enraizadas na ortodoxia neoclássica ressurgiram com a reagonomics: redução de impostos para os ricos, cortes nos gastos sociais, desregulamentação dos mercados e intolerância com as greves e os sindicatos (Farber, Western, 2002).[x] Essa abrangente mudança ideológica configurou o Sexto Sistema Partidário, que sucedeu a New Deal Coalition, marcado pela ascensão dos conservadores no PR e dos liberais moderados no PD, desbancando os mais progressistas (Brewer, Maise, 2021). Reagan também venceu o pleito à reeleição e governou até 1989.

Thatcher, no RU, e Reagan, nos EUA, induziram à mudança na correlação de forças entre capital e trabalho em seus países, em prol dos empregadores. Dada sua importância na economia internacional, o impacto extrapolou as fronteiras anglo-saxônicas. Ambos restringiram o direito de greve e a prerrogativa dos sindicatos garantirem que as empresas contratassem apenas os trabalhadores sindicalizados. O monetarismo, a desregulamentação dos mercados e as privatizações também foram medidas pró-capital. Apesar das políticas neoliberais não superarem os conflitos de interesse interempresariais, elas consolidaram um ambiente estrutural que reforça, por um lado, o compromisso decisório market-oriented do Estado, no sentido de eliminar custos e regulações, e, por outro, a conformação da unidade ideológica do capital contra o trabalho, em todos os setores econômicos, dificultando a formação de coalizões políticas com projetos nacionais desenvolvimentistas e/ou social-democratas. Os países-chave da Ásia são exceções.

Os impactos políticos do fim do sistema de Bretton Woods e da crise de estagflação foram mais fortes nos EUA que na Alemanha, onde a SME, com seu compromisso estrutural entre capital e trabalho, moderou o neoliberalismo. Ademais, ideologicamente, os dois principais partidos alemães orbitam no centro político (Gourecitvh, 1986). Na política partidária, o principal desdobramento da crise foi a ruptura da coalizão social-liberal entre o SPD e o Partido Democrático Livre (FDP), instituída em 1969, no gabinete de Willy Brandt, e mantida, desde 1974, nos três governos de seu correligionário Helmut Schmidt. Nas eleições de 1982, o FPD aliou-se à CDU/CSU, liderada por Helmut Khol, que, mais próximo da ortodoxia neoclássica, governou por 16 anos, até 1998, metade sob a Alemanha reunificada. A coalizão social-liberal rompeu-se por divergências do FDP com o aumento do déficit público e por ele compartilhar a oposição da indústria aos custos trabalhistas, que, com o aumento da competição externa, estariam prejudicando as exportações. Assim, a princípio, a Alemanha ajustou-se ao neoliberalismo comedidamente. Entre outras variáveis, o propósito nacional de exportar produtos de ponta, contratando mão de obra qualificada, e a correlação de forças entre capital e trabalho, institucionalmente assentada na codetermination, promoveram um path dependence. A supply-side economics e as reformas market-oriented não desmontaram a social market economy, os sindicatos e o welfare state, mesmo após a reunificação. Mas reduziu-se o efeito das políticas redistributivas para os desempregados, sobretudo os imigrantes, menos qualificados. Remonta daí o crescimento da participação dos 10% mais ricos na renda nacional e a correlata queda desse indicador entre os 50% que compõem a metade inferior (Dauderstädt, 2013; Chancel, 2021). Ademais, esse ajuste ocorreu sem descontinuidade democrática.

Mas cabe mencionar que, no início deste século, enfrentando estagnação econômica, desemprego e enfraquecimento fiscal, o então chanceler Gerhard Schröder, apoiado na coalizão SPD/Green, implementou as reformas da Agenda 2010, que avançaram na liberalização da SME, flexibilizando os mercados de trabalho e de capitais e restringindo a seguridade social. A relação bancos-empresa sofreu mudanças: abriu-se mais espaço para investimentos globais. Essa liberalização gerou conflitos no SPD. Há controvérsias sobre o quanto restou da SME. Quanto aos indicadores, as medidas melhoraram as exportações, crescimento e emprego, mas caíram investimentos, produtividade, participação dos salários na renda e a desigualdade aumentou.

No Brasil, a crise de estagflação implicou em mudanças econômicas e políticas na estratégia do governo militar e no destino do regime. Em pouco tempo, o intervencionismo do Estado desenvolvimentista então existente e o autoritarismo em que se escorou desde 1964 foram colocados em questão. O primeiro choque do petróleo encerrou o milagre econômico, cujo financiamento dependeu muito de endividamento externo, facilitado pela abundância de crédito no mercado internacional. Até então, o saldo comercial positivo controlava o déficit externo. O país importava petróleo e bens de produção e os direcionava, sobretudo, à indústria de bens de consumo duráveis, liderada pelo setor automotivo. A crise do petróleo recolocou o problema estrutural do estrangulamento externo, ou seja, a capacidade de importação. Empossado em 1974, Geisel descartou um ajuste recessivo. Reformulou o desenvolvimentismo, por meio do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), visando superar gargalos na oferta de insumos básicos e de bens de produção. Mas o financiamento continuou dependente de endividamento externo. Segundo alguns economistas, o plano contribuiu para alavancar, na virada da década, um salto nas exportações (Castro, Souza, 1987; Mantega, 1997). Polêmicas à parte sobre o II PND, a partir de 1977, o empresariado reagiu contra a estatização e o autoritarismo, o que tensionou a sustentação da industrialização pela tríplice aliança entre os capitais estatal, estrangeiro e nacional (Evans, 1979).

Na virada da década, a segunda crise do petróleo e o Volcker shock agravaram o quadro, conformando um duplo choque de preços internacionais (da energia e do crédito), que desestruturou as contas externas do Estado. Temendo que os bancos estrangeiros parassem de rolar a dívida externa, o governo executou um ajuste externo ortodoxo, que causou recessão. O auge da crise ocorreu em 1982, com a moratória mexicana, quando o FMI aumentou as exigências para socorrer os países latino-americanos endividados externamente. A resposta ortodoxa à crise do endividamento encerrou o ciclo de crescimento dos anos 1970 e desestruturou a tríplice aliança. Este processo econômico articulou-se à transição democrática negociada entre militares e oposição, que encerrou o autoritarismo e deixou em aberto o desafio da retomada do desenvolvimento, mas, desta vez, com democracia e justiça social (Bresser-Pereira, Ianoni, 2017).

Grande recessão e desdobramentos (2007-2013)

A crise financeira internacional de 2007-2008 eclodiu nos EUA. Imediatamente, ela colapsou o sistema bancário islandês. Desde 2009, seu epicentro deslocou-se para a Eurozona, causando efeitos econômicos e políticos até 2013. Em seguida, desencadeou-se um terceiro problema: a desaceleração estrutural das economias emergentes, puxada por países que haviam sido mais resilientes nos primeiros anos (Wolf, 2014). Essa sucessão de crises impactou a democracia, institucional e ideologicamente, sobretudo, para este trabalho, nos EUA e no Brasil e, em menor medida, na Alemanha.

Logo após eclodir nos EUA, essa crise foi chamada de Grande Recessão e vista como a mais grave desde a Grande Depressão. Muitos a apreendem como crise do capitalismo neoliberal (Roberts, 2016; Keeley; Love, 2010). Nos EUA, a recessão durou até junho de 2009. O auge deu-se no estouro da bolha especulativa, em setembro de 2008, no mercado imobiliário mal regulado das hipotecas subprime, para clientes de alto risco, que levou à falência o Lehman Brothers, então o quarto maior banco de investimentos do país e intensamente envolvido no referido mercado. O sistema financeiro norte-americano entrou em colapso (Council of Economic Advisers, 2010; Wolf, 2014). Dado o caráter internacional e concentrado das finanças, a crise alastrou-se rapidamente para outras regiões e países, causando acentuada queda no crescimento da economia mundial. Entre meados de 2008 e fevereiro de 2009, dez países europeus resgataram mais de vinte bancos.

A bolha estourou no governo George Bush, durante a campanha eleitoral presidencial, vencida pelo Democrata Barack Obama. Bush executou as primeiras medidas de enfrentamento da crise financeira, adquirindo a Fannie Mae e a Freddie Mac, decretando a falência do Lehman Brothers e nacionalizando a American International Group (AIG), maior seguradora do mundo, cujo controle foi assumido pelo FED.

Em outubro, o Congresso aprovou, respaldado pelas duas candidaturas presidenciais e pela maioria dos parlamentares de seus respectivos partidos, o Emergency Economic Stabilization Act of 2008, que instituiu o Troubled Assets Relief Program (TARP), um conjunto de programas de US$ 700 bilhões. Entre outras medidas, o TARP autorizou a compra de ativos tóxicos, sobretudo do mercado secundário de hipotecas, absorvendo parcialmente perdas, e injetou capital em instituições financeiras, comprando ações de oito grandes bancos e seguradoras, entre os quais a AIG, para evitar o efeito dominó que sua falência causaria (Council of Economic Advisers, 2010).[xi]

Entre setembro de 2007 e dezembro de 2008, visando estimular a atividade econômica pela oferta de crédito, o FED reduziu a taxa de juros dos títulos federais para quase zero. Mas, como a economia não reagia, recorreu-se a uma política não convencional, o quantitative easing: ao invés de focar apenas na venda de títulos a juros baixíssimos, o Banco Central estimulou a demanda agregada, comprando, em grande escala, ativos de longo prazo em mãos das instituições financeiras. Essa política perdurou até outubro de 2014 e a injeção de liquidez chegou a US$ 4,48 trilhões (Bernanke, 2012).[xii]

Obama tomou posse em janeiro de 2009, tendo maioria nas duas casas parlamentares, que conseguiu manter só até o início de 2011. Imediatamente, ele aprovou na câmara baixa, sem nenhum apoio do PR, e com apenas três votos da oposição no Senado, o American Recovery and Reinvestment Act (ARRA), um amplo e inédito plano de recuperação econômica, via estímulo fiscal, orçado em US$ 787 bilhões.[xiii] O maior objetivo era combater o desemprego, cuja taxa, em dezembro de 2007, era 4.9%, mas, com a crise, subiu para 7.2% um ano após, às vésperas de sua posse. Em dezembro de 2016, ao final de seu segundo mandato, havia caído para 4.7%, nível inferior ao de 2007.[xiv] Porém, os 12 milhões de empregos gerados e o baixo desemprego não causaram aumento da renda salarial, pois cresceram os postos de trabalho em tempo parcial e/ou com baixa remuneração.

O ARRA acirrou a oposição Republicana, defendendo a redução da carga tributária, dos gastos públicos e da dívida pública. Há uma sinergia entre o acirramento da divergência sobre a política fiscal, as tensões na democracia e as coalizões entre os partidos, grupos de pressão e segmentos do eleitorado. A rejeição ao keynesianismo é inerente ao neoliberalismo, mas a radicalização desta ideologia tem alimentado uma oposição extremada, que descarta até uma limitada política fiscal anticíclica. Neste contexto, emergiu, entre 2009 e 2010, o paradigma da austeridade, veementemente contrário ao momento keynesiano de Obama, presidente que acabou cedendo, desde meados de 2010, à política de cortes orçamentários para reduzir o déficit público.[xv]Assim, em 2011, aprovou-se o Budget Control Act, que encerrou o disputado debate sobre o teto da dívida pública, cuja expansão, supostamente, estaria bloqueando o crescimento. Negociada entre oposição e governo, a lei acirrou divergências entre os partidos Democrata e Republicano e dentro deles.[xvi]

A aquisição da casa própria era central do American Dream, erguido na crença de que a liberdade garante a oportunidade de prosperar e ser bem-sucedido. Aproveitando-se deste sonho, o lobby imobiliário, desde o pós-guerra, logrou que o Estado não privilegiasse a habitação popular – restringindo-a apenas aos muito pobres –, deixando-a para o setor privado, pelo mercado hipotecário de longo prazo. Os credores recebiam garantias governamentais contra perdas, e os mutuários, subsídios. Este suposto livre-mercado evoluiu no sentido do setor privado avançar no que restava da política de moradia popular. Com a emergência e desenvolvimento do neoliberalismo, a desregulamentação financeira, apoiada por Republicanos e Democratas, retirou a proteção dos mutuários contra a exploração dos bancos. Ao final, o subsídio governamental beneficiou, basicamente, o oneroso sonho dos mutuários de classe média e ricos. Deflagrada a Grande Recessão pelo estouro da bolha financeira no mercado hipotecário subprime, hipotecas de mais que 10 milhões de casas foram executadas. Contudo, mesmo as tímidas medidas de Obama para defender os mutuários, pelo Home Affordable Modification Program, que não impediram milhões de perderem suas moradias, receberam duras críticas dos Republicanos, dada a imensa resistência do radicalismo neoliberal contra qualquer desfecho que não fosse a execução dos inadimplentes. O socorro a alguns causou ressentimento em outros. Há evidências de que os não socorridos e ressentidos apoiaram Trump em 2016 (Dayen, 2015; Fernholz, 2016; Chappell, 2017).

Em 2010, Obama implementou dois programas de saúde: o Affordable Care Act (ACA) popularizado como Obamacare, e o Health Care and Education Reconciliation Act. O segundo foi uma emenda ao primeiro, para contornar a oposição Republicana unânime às mudanças, mas também de uma minoria Democrata. A reforma da saúde foi um dos principais compromissos eleitorais de Obama. Visava tornar o seguro saúde mais barato e acessível, expandindo sua cobertura. Em 2009, 49 milhões de residentes não tinham seguro saúde. Com a nova legislação, mais 20 milhões tiveram acesso. O déficit caiu para 29 milhões em 2015 (Obama, 2016). Contudo, estados com governadores Republicanos resistiram a expandir seus programas de saúde e a aderirem ao Obamacare, limitando o cumprimento da meta do ACA de redução da desigualdade no atendimento à saúde (McCarty, Poole, Rosenthal, 2016).[xvii]

 Ainda em 2010, o Executivo aprovou o Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act, visando reconstruir a supervisão e regulação financeira das firmas e mercados, proteger consumidores e investidores contra abusos, propiciar ferramentas para o governo gerenciar crises nas finanças e, em nível internacional, elevar os padrões regulatórios e melhorar a cooperação. Críticos avaliam que, embora bem-intencionadas, as medidas propiciaram tímidos avanços, por não enfrentarem o problema de moral hazard dos too big to fail banks, ou seja, o salvamento dos bancos que se arriscam demasiadamente; ademais, em 2014, fontes do próprio governo alegavam que as decisões estavam sendo frustradas por reações dos Republicanos,dificultando sua implementação (Miller, 2019).[xviii]

Nas eleições congressuais de 2010, os Democratas perderam a maioria na Câmara dos Representantes e diminuíram-na no Senado, resultado repetido em 2012, na reeleição de Obama. Nas eleições de 2014, os Republicanos mantiveram a maioria na câmara baixa e fortaleceram-se no Senado. Essas derrotas eleitorais Democratas enfraqueceram a agenda legislativa de Obama.

Por exibir tendências claras de mudança, a eleição presidencial de 2016 demarcou a política dos EUA. Além da escolha de Donald Trump, até então um outsider no PR, como candidato do partido, houve a presença significativa, nas primárias Democratas, de outro nome surpreendente, Bernie Sanders, político da esquerda socialista. Ele perdeu a nomeação para Hillary Clinton, apoiada pelo establishment partidário, mas numa disputa acirrada e relativamente equilibrada. Esses dois fatos expressaram processos de mudança nos dois principais partidos e no eleitorado. Trump venceu no Colégio Eleitoral por 304 votos contra 227 de Clinton. Os Republicanos saíram das urnas amplamente vencedores, sobretudo os trumpistas, que se tornaram sua facção dominante.

No início do governo Trump, o PR aprovou no Congresso o Tax Cuts and Jobs Act, uma enorme e importante revisão do código tributário federal, que cortou US$ 1,5 trilhão da receita prevista com impostos, sobretudo favorecendo as corporações e os ricos. Para a maioria dos cidadãos as reduções foram moderadas. Por ser um estímulo fiscal mediante renúncia de impostos, os Republicanos apoiaram-na.[xix] Em 2017, Trump tentou aprovar o American Health Care Act, que visava esvaziar o Obamacare, mas a medida só passou na Câmara, não no Senado. Ademais, em 2018, na contracorrente do Dodd–Frank, os Republicanos aprovaram o Economic Growth, Regulatory Relief and Consumer Protection Act, amenizando as exigências da reforma financeira de Obama.

A oposição da coalizão neoliberal às políticas intervencionistas, mesmo as mais tímidas, nas áreas fiscal, financeira, redistributiva e social, evoluiu no sentido da radicalização da tradicional polarização política nos EUA, sobretudo pelo fortalecimento da extrema-direita no PR. Até 1977, a polarização política nos Republicanos era baixa, mas, desde então, segue trajetória ascendente, o que tem prejudicado a democracia e o combate à desigualdade, problema com o qual ela se correlaciona (McCarty et. al., 2016).

Escrevendo logo após a eleição de Trump, Nancy Fraser (2017a; 2017b) identificou, apoiada nas variáveis distribuição e reconhecimento, três tipos do neoliberalismo nos EUA: o progressivo, o reacionário e o hiper-reacionário. O neoliberalismo progressivo surgiu e evoluiu na era Bill Clinton e foi hegemônico até Trump destroná-lo. Na verdade, qualificar o neoliberalismo dos Democratas de progressivo é quase um oxímoro, pois sua economia política é socialmente regressiva; suas políticas pró-mercado pressionam contra o princípio democrático da igualdade, por se oporem ao contrapeso do Estado às injustiças do mercado e restringirem os recursos fiscais para políticas públicas de promoção da igualdade de oportunidades. Enfim, Clinton formulou e defendeu o ideário dos New Democrats, primo do New Labour, de Tony Blair. A coalizão novo-democrática reunia os setores de serviço com alto poder simbólico e cognitivo – Wall Street, Vale do Silício e Hollywood –, empresários, classe média suburbana, novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, direitos identitários e sexuais, juventude). Era distinta da New Deal Coalition, que agregava sindicalizados, afro-americanos, classes médias urbanas e alguns segmentos do grande capital industrial. O ideário do neoliberalismo progressivo desejava equacionar a financeirização e a emancipação, as agendas de Wall Street e da diversidade, multiculturalismo e feminismo. Embutia uma concepção meritocrática de combate à desigualdade. Dada a herança política dos direitos, oriunda do New Deal, esta aliança garantiu a hegemonia neoliberal.

O neoliberalismo reacionário, representado por Reagan e os dois Bush (pai e filho), ancorava-se nas finanças e nas indústrias bélica e de energia extrativa e visava ao 1% mais rico. Reunia as grandes corporações (bancos, especuladores financeiros, firmas dos setores imobiliário e energético) e grupos conservadores (evangélicos, brancos [sulistas e trabalhadores] e habitantes do campo). A divergência com os progressistas não estava na distribuição, mas na demanda do reconhecimento, em relação à qual adotavam um padrão de conservadorismo tradicionalista, por assim dizer, que o neoliberalismo hiper-reacionário de Trump substituirá por um conservadorismo ampliado, antagonista e explicitamente autoritário. Além de afirmar a etnia nacional, o nacionalismo econômico, o unilateralismo do America First, a anti-imigração e a religião cristã, Trump levantou bandeiras opostas às do progressismo neoliberal: racismo, misoginia, homofobia, xenofobia e islamofobia.[xx] Na economia, inovou ao adotar o protecionismo, sobretudo na guerra tarifária com a China.[xxi] Entre as novidades político-ideológicas do neoliberalismo trumpista destacam-se o nacionalismo e a tendência neofascista, ausentes nas versões reacionária, dos Republicanos, e progressiva, dos Democratas.

O neoliberalismo-nacionalista exibiu forte retórica antiglobalização, afirmou a supremacia branca e defendeu uma concepção xenófoba de soberania nacional: o território do país é só para os norte-americanos. Na política econômica, apesar de algum protecionismo, o nacionalismo foi moderado pelo ideário neoliberal de desregulamentação dos mercados. Houve também redução dos gastos com programas sociais para os mais pobres, enquanto os ricos ganharam corte de impostos.[xxii] Ao reduzir a margem decisória da política de direitos democráticos e ao alavancar sua liderança com um discurso autocrático e mobilizador, opondo amigos a inimigos (os imigrantes e a esquerda), esse novo neoliberalismo é não só antidemocrático, como possui tendências neofascistas.

Fraser e outros avaliam que a desindustrialização e a deterioração das condições de vida dos trabalhadores e da classe média têm estreita relação com a vitória de Trump, que significaria não só uma revolta contra as finanças globais, mas também contra o neoliberalismo progressivo, cuja política econômica foi plutocrática, enfraqueceu os sindicatos, precarizou o trabalho, enquanto sua política distributiva revelou-se irrisória. A renda da metade mais pobre caiu de 19% em 1980, na virada neoliberal, para 13% em 2021, mas a dos 10% mais ricos subiu de 34% para 45% (Chancel et. al., 2021). A adesão ao neoliberalismo hiper-reacionário de Trump foi a válvula de escape dos quase 63 milhões de eleitores que votaram em seu programa, insatisfeitos com a falta de alternativa. Derrotada a via populista progressista, de Bernie Sanders, os Democratas ofereceram ao eleitorado mais do mesmo, ou seja, Hillary Clinton.

Para Fraser, a vitória do até então outsider no PR, Trump, evoca, a princípio, uma crise política nos EUA. Mas como seus sintomas também aparecem em vários outros países europeus e latino-americanos, tratar-se-ia de uma crise política global. Porém, ela apreende a crise política como expressão, na esfera política, de uma crise mais ampla, multidimensional – também econômica, social, ambiental –, uma crise geral, global, uma crise de hegemonia. A ascensão de Trump representaria uma ofensiva política para preencher essa lacuna hegemônica, uma fratura estrutural.

Na Alemanha, principal potência industrial e exportadora da Europa, a crise chegou durante o governo de Grande Coalizão entre os partidos CDU/CSU e SPD, encabeçado pela chanceler Angela Merkel.[xxiii] Em 2007, o PIB do país foi 3%; em 2008, desacelerou para 1%. Em 2009, caiu muito, negativando em 5.7%, resultado pior que os -4.3% da Europa. Esse péssimo desempenho deveu-se, sobretudo, ao colapso do comércio internacional. Mas o país recuperou-se bem em 2010 (4.2%) e 2011 (3.9%). A seguir, seu crescimento novamente desacelerou, tendo sido de apenas 0.4% no biênio 2012-2013, em meio à crise da dívida na Europa.[xxiv]

Apesar da forte queda do PIB na aurora da recessão, houve pouco desemprego, inclusive ele caiu continuamente entre 2009 e 2014. Esse fato foi uma das principais conquistas dos dois primeiros gabinetes de Merkel.[xxv] Tal desempenho positivo explica-se pela insuficiente contratação na expansão anterior à crise, pela moderação salarial e pela ampla adoção, na recessão, da política de flexibilidade das horas de trabalho, que permite reduzi-las, com reduções proporcionais dos salários e das contribuições à seguridade social (Burda, Hunt, 2011). Enfim, este desempenho tem relação com as políticas da SME e com as reformas da Agenda 2010 (Dauderstädt, 2013).

Os primeiros sinais de transmissão da crise surgiram em julho de 2007, quando o IKB Deutsche Industriebank, exposto às hipotecas do subprime, anunciou queda volumosa de lucros, indicando necessidade de resgate, com injeção de capital, para não falir. O salvamento veio logo, por um fundo de € 3.5 bilhões, reunido pelo banco público KfW e bancos privados (Schneider, 2014).[xxvi] Em fevereiro de 2008, o IKB obteve outro grande pacote de resgate, de € 1,5 bilhão, dois terços com recursos do governo federal, que ainda concedeu, em agosto, um último socorro, de € 1.05 bilhão. Por fim, a investidora americana Lone Star comprou o IKB.[xxvii] Em outubro de 2008, o Bundestag aprovou, em votação incomumente rápida e com o apoio de 82.6% dos votantes, um impactante pacote de resgate do sistema financeiro, de € 500 bilhões, para restaurar a confiança e estabilizá-lo.[xxviii] Mas note-se que, tal qual nos EUA e noutros países, Merkel, em 2010, implementou um plano de austeridade para controlar o déficit público.[xxix]

Quanto à competição política e às alianças, na Grande Recessão, houve dois fortalecimentos relevantes, o do bloco de centro e o da extrema-direita. Nas eleições de 2009, Merkel garantiu maioria parlamentar sem o SPD, com a coalizão de centro-direita entre a CDU e seu velho aliado, o FDP. Este gabinete enfrentou a crise da dívida europeia, um desdobramento da Grande Recessão. Merkel compôs a liderança do acordo que instituiu o Mecanismo Europeu de Estabilidade, fundo que, mediante metas de austeridade fiscal, concedeu empréstimos aos Estados-membros da Eurozona em dificuldade. Esta atuação externa da chanceler estimulou a organização da oposição eurocéptica alemã. Uma segunda Grande Coalizão foi formada a partir do resultado das eleições de 2013, mas desta vez entre CDU/CSU e SPD, pois o FDP não superou a barreira dos 5% de votos para ter assento no Bundestag. Em 2015, este novo gabinete centrista deparou-se com a crise humanitária da migração europeia. Merkel surpreendeu: liberalizou as restrições legais para abrir as fronteiras a imigrantes e refugiados. A terceira e a quarta Grande Coalizão da era Merkel decorreram, respectivamente, das eleições de 2017 e 2021, que consolidaram o centrismo CDU/SPD como fiador da governabilidade democrática, mantendo, assim, sob relativo controle a outra mudança, o fortalecimento da extrema-direita. Em 2013, foi criado o partido neonazista Alternativa para a Alemanha (AfD). Nas eleições de então, ele quase superou a barreira de votos, com 4.7% do sufrágio, feito que logrou alcançar em 2017, quando foi sufragado por 12.6% dos eleitores, tornando-se o terceiro maior partido do Bundestag (Klikauer, 2019).[xxx] Em 2014, recebera 7.1% dos votos nacionais nas eleições para o Parlamento Europeu, elegendo sete membros, inclusive com o apoio do movimento extremista Europeus patrióticos contra a islamização do Ocidente (PEGIDA), surgido então. Sua ideologia é eurocéptica, nacionalista, anti-imigração e anti-islâmica (Mushaben, 2017).

Mesmo na maior economia europeia, a desigualdade de renda cresceu nas duas crises correlatas. Em 2005, 2010, 2015 e 2018, a renda nacional pós-imposto nas mãos dos 10% mais ricos foi, respectivamente, 25.1%, 28.5%, 30.3% e 29.6%, enquanto nos 50% que compõem a metade inferior esses resultados foram 26.9%, 26.6%, 25.3% e 25.8%.[xxxi] Segundo a OCDE, entre 1995 e 2018, a percentagem de alemães na classe média caiu de 70% para 64%. A satisfação desse segmento social é importante tanto para o fortalecimento como para o enfraquecimento da democracia (Germani, 1978).[xxxii] Contudo, apesar da maior desigualdade e do ressurgimento da extrema-direita, as agências internacionais que medem a qualidade da democracia incluem a Alemanha, de 2006 até hoje, na 13ª ou 14ª posição do seleto grupo de cerca de 20-25 países qualificados como democracias plenas. Não tenho aqui o objetivo de questionar os pressupostos e a metodologia dessa avaliação.[xxxiii]

Por fim, a Grande Recessão e a crise da dívida europeia impactaram a política brasileira, que também foi influenciada por um outro processo no mercado internacional, o fim do boom das commodities. Tais eventos externos não são causas exclusivas dos rumos do país desde então, pois seus impactos interagiram com variáveis econômicas e políticas internas. Ademais, a influência externa não foi somente de ordem econômica, mas também política, destacando-se a autocratização extremada, observada no trumpismo e em suas expressões europeias e latino-americanas. A interação das variáveis internacionais e nacionais resultou no fim do ciclo de quatro governos federais consecutivos do Partido dos Trabalhadores (PT), mediante uma deposição presidencial polêmica, apoiada numa ampla coalizão ultraliberal, liderada, inicialmente, pela direita e, logo após, pela extrema-direita. Foi um processo conflituoso, que implicou em autocratização crescente, devido à emergência de uma liderança política de perfil neofascista, portanto, com respaldo de massa, inspirada no trumpismo e a ele articulada.[xxxiv]

Ao assumir a Presidência da República, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva propôs-se a implementar um programa e uma coalizão social-desenvolvimentista (CSD) entre capital e trabalho. A coalizão partidária governista era heterogênea, abarcando desde a esquerda moderada até a direita tradicional. A partir de 2006, com a posse de Guido Mantega no Ministério da Fazenda, a política econômica foi mudando (Barbosa, Souza, 2010). Com o tempo, as tensões entre as tendências social-desenvolvimentistas e neoliberais dentro e fora do governo aumentaram e desmontaram a coexistência pacífica inicialmente observada. Seguiu-se a competição política e logo depois, o conflito, sobretudo desde 2013, já no governo de Dilma Rousseff.

Diante da Grande Recessão, Lula adotou medidas, gerais e específicas, para estimular a economia e manter os investimentos.[xxxv] As medidas gerais foram, sobretudo, nas áreas fiscal, monetária, creditícia e cambial e configuraram uma flexibilização do tripé macroeconômico, visando compatibilizar estabilidade e crescimento, pelo estímulo à demanda (Oreiro, 2016). As específicas focaram em setores mais prejudicados, como construção civil, indústria automotiva, agricultura e venda no varejo, que foram contemplados, por exemplo, com redução de tarifas de importação e de impostos (TCU, 2009). Na área fiscal, após um resultado primário recorde, em 2008, de 4.07% do PIB, o Congresso Nacional reduziu a meta de 3.8%, em 2009, para 2.5%. Autorizou-se que a Petrobras aumentasse seus investimentos.[xxxvi] Na área monetária, o governo estimulou a política creditícia, inclusive ampliando o poder do Banco Central comprar carteiras de crédito de bancos em dificuldade, devido à crise, conforme fizeram os demais países aqui investigados.[xxxvii] Na área cambial, combateu-se a volatilidade do preço do dólar. Embora o crescimento em 2009 tenha sido negativo, houve uma excelente recuperação em 2010. A variação do PIB no período foi a seguinte: 5.2% em 2008, -0.2% em 2009 e 7.5% em 2010. Considerando seis metas – pleno emprego, distribuição de renda, crescimento, estabilidade de preços e os equilíbrios fiscal e de transações correntes, o desempenho de Lula na crise internacional foi bom nas três primeiras e na quinta, regular na quarta e ruim na sexta. Ele saiu do segundo mandato com aprovação recorde, de 87%, e elegeu sua sucessora, Dilma Rousseff.[xxxviii]

Nos governos de Rousseff, as tensões políticas aumentaram por vários fatores, desde dois impactos negativos da economia internacional – a crise da dívida na Europa e o fim do boom das commodities – até causas internas: oposição do mercado à política econômica, competição partidária nas eleições de 2014 e o escândalo de corrupção decorrente da Operação Lava Jato. Com o tempo, romperam-se, nos governos Rousseff, as tendências de conciliação, observadas nas gestões de Lula, entre as forças social-desenvolvimentistas e neoliberais, quando distintas preferências de política macroeconômica se acomodaram e flexibilizaram-se, dentro da disciplina de mercado, ensejando a implementação de várias políticas sociais e novos direitos de cidadania.

No início do primeiro mandato de Rousseff, em 2011, o governo prosseguiu com as restrições fiscais e monetárias iniciadas no fim de 2010. Optou por reduzir a inflação e o ritmo de crescimento. Nos dois anos anteriores, os estímulos à economia provocaram aumento da inflação e do déficit nominal, indicador que, em 2008, fora de apenas 1.53% do PIB, passando para 3.34% em 2009 e recuando para 2.56% em 2010. O mercado criticou esse desempenho, devido ao aumento da dívida líquida do setor público, que subiu, no período, de 38.5% do PIB para 42.1%.[xxxix] De janeiro a julho de 2011, a taxa básica de juros, em elevação desde meados de 2010, passou de 10.75% para 12.5%. Ademais, o novo governo anunciou um contingenciamento fiscal de 1.2% do PIB. Porém, esse freio coincidiu com a crise europeia, que então enfraquecia o mercado mundial. Os governos europeus enfrentaram-na com austeridade e estímulos monetários, que desvalorizaram o euro e valorizaram moedas de países emergentes com juros atrativos, como era o caso do Brasil. Por isto, apesar das medidas restritivas terem gerado a desaceleração almejada, ela extrapolou o esperado pelo governo. O PIB de 2011 cresceu apenas 2.7%, abaixo dos 5% previstos.

Desde agosto de 2011, em resposta à piora na economia mundial, o governo executou medidas para expandir a atividade econômica e promover crescimento. A estratégia adotada foi mudar os preços macroeconômicos e outros preços relativos para estimular o investimento privado, sobretudo na indústria. Na política monetária, iniciou-se um ciclo de redução da taxa básica de juros, que, em outubro de 2012, desceu para o nível mais baixo, até então, do regime de metas de inflação: 7.25% ao ano. Em 2013, os juros reais caíram para 2%. Reduziram-se impostos sobre o crédito pessoal e amenizaram-se exigências de depósito compulsório dos bancos. Denominou-se esse conjunto de medidas de Nova Matriz Econômica (NME). Elas geraram conflitos com as instituições financeiras, que, em pouco tempo, extrapolaram a esfera das divergências sobre política econômica e evoluíram para um veto político das finanças à presidente, cuja candidatura à reeleição, em 2014, o mercado rejeitou.

Ademais, encerrou-se o boom das commodities. Embora esse fato econômico não tenha relação direta com as crises de 2008 e na Europa, a valorização das commodities vinha sendo importante na sustentação da Onda Rosa na América Latina, região especializada na exportação de produtos primários e da indústria extrativa. O All Commodity Price Index, do FMI, cresceu ininterruptamente de 2003 a 2008, passando de 65.70 para 163.13; caiu até 2009, na Grande Recessão; recuperou-se até 2011, chegando a ultrapassar o nível de 2008, mas caiu até 2014 (159.12) e despencou para 108.28, em 2015, tendo prosseguido em queda até 100 em 2016 (ano-base do cálculo).[xl]

Na eleição presidencial de 2014, Rousseff, o PT e demais aliados enfrentaram a oposição à NME e a queda dos preços das commodities (que induzia à recessão). Ademais, emergiu o mencionado escândalo de corrupção, cujo impacto midiático alimentou a insatisfação com os partidos e com a democracia, descontentamento evidenciado desde as Jornadas de Junho, em 2013, uma espécie de Primavera Árabe Brasileira. A princípio, o escândalo envolvia a Petrobras, companhia mista e principal empresa latino-americana. Apesar de tudo, Rousseff reelegeu-se, mas numa disputa apertada contra o principal partido de oposição até então, o PSDB. Encerradas as eleições, os derrotados pediram a recontagem dos votos. Àquela altura, mesmo com a vitória de Rousseff, a coalizão social-desenvolvimentista estava volátil, enquanto a coalizão neoliberal se fortalecia, indisposta a tolerar qualquer flexibilização na política econômica.

Em 2015, à medida que as revelações do escândalo da Lava Jato chegavam ao público, as pressões sociais oposicionistas aumentavam, repercutindo no Congresso recém-empossado. Embora o presidente da Câmara dos Deputados compusesse a coalizão governista, elegera-se para esta função disputando contra o candidato do PT. Nos meses seguintes, ele rompeu com o governo, que, com uma base partidária frágil e em trânsito para a oposição, deparou-se com uma crise de ingovernabilidade. A guinada na política econômica do novo governo foi importante. Muito pressionada, Rousseff aderiu ao ajuste fiscal, enquanto a maioria conservadora do Congresso opunha-se, junto com a esquerda, à aprovação das medidas presidenciais. Fragilizado, o governo perdia apoio dos eleitores e, simultaneamente, era encurralado pela oposição, que acabou encontrando nas contas governamentais motivos fiscais para propor o impeachment presidencial. Embora os motivos levantados para a deposição de Rousseff fossem bastante duvidosos, por terem sido praticados pelos presidentes anteriores, sem que tivesse havido questionamento de sua legalidade, eles ensejaram que, em abril de 2016, a Câmara dos Deputados autorizasse a instauração do processo de impeachment. Consumada sua deposição, com amplo apoio do empresariado, o vice-presidente Michel Temer tomou posse, estando completamente rompido com o social-desenvolvimentismo. Executou políticas ultraliberais. Estes fatos alteraram a relação de forças, que ficou desfavorável para a heterodoxia desenvolvimentista e, sobretudo, para a esquerda, mesmo a moderada. Enfraqueceram-se também o Estado da Lei e a democracia, inclusive devido à emergência inédita de novas forças de direita, inclinadas ao extremismo, que passaram a mobilizar-se nas ruas, espaço político até então associado aos democratas e à esquerda. A rivalidade contra o PT tornou-se o centro de gravidade da luta política. A bandeira antipetista acabou sendo liderada pela extrema-direita, precisamente pelo deputado federal Jair Bolsonaro, que acabou se candidatando à presidência da República e vencendo as eleições de 2018, num contexto de mudança no sistema partidário nacional.

Enfim, interessa destacar que, embora, inicialmente, o governo Lula contornou a crise de 2008, seus desdobramentos na Europa desafiaram os dois primeiros anos do primeiro mandato de Rousseff, que, após tentativas heterodoxas malsucedidas, prejudicada pelo fim do boom das commodities e pressionada pelo business, cedeu à austeridade no início do segundo mandato, em meio à crise dos principais partidos, ao rearranjo das coalizões e à disputa pelo comando do governo. No Brasil, a retomada do neoliberalismo foi politicamente radical, por apoiar-se num conteúdo ultraliberal e por ocorrer em contexto de forte guinada desdemocratizante, primeiro à direita, em seguida, à extrema-direita, força política que venceu as eleições de 2018 e fortaleceu a autocratização, embora sob vigência formal da democracia.

Conclusão

Tomando quatro crises econômicas internacionais como variáveis independentes, analisei, pelo método histórico-comparativo, seus impactos nos Estados de três países, EUA, Alemanha e Brasil. Concebi o conceito de Estado como síntese de três variáveis dependentes: decisões (de política econômica e regras institucionais), coalizões de sustentação e regime político. Essa concepção do Estado norteou a comparação.

Na Longa Depressão, Alemanha e Brasil implementaram regimes autoritário-competitivos, decorrentes, entre outros, das respostas (decisões) dos atores político-institucionais e sociais (coalizões) aos efeitos internos desta crise internacional. Nos EUA, ela impactou no sistema político – mas não exatamente no eixo autocratização-democratização do regime –, abrindo o Quarto Sistema Partidário, caracterizado pela supremacia dos Republicanos sobre os Democratas e da indústria (que conquistou proteção tarifária) sobre a agricultura (exposta ao livre-comércio).

Na Grande Depressão, a economia mista emergiu como paradigma, desbancando a ortodoxia. Houve também inovação nas coalizões e nos regimes. Esta crise, que emergiu na primeira onda reversa da democracia, iniciada em 1922 pelo fascismo italiano, contextualizou três décadas de autoritarismo. Em 1933, o nazismo fascistizou o regime político alemão (tendência observada também em Portugal, Espanha, Japão etc). Uma ampla coalizão do big business contra as organizações proletárias apoiou o keynesianismo militar do Führer. No Brasil da Revolução de 1930, uma coalizão de oligarquias dissidentes, políticos da oposição, camadas médias urbanas e oficiais militares derrubou a República Oligárquica. O novo regime modernizou o Estado e a economia, mas mediante conflitos, como a Revolução Constitucionalista de 1932, a insurreição de 1935 e o Integralismo, desaguando, em 1937, numa ditadura desenvolvimentista, que perdurou até acabar a Segunda Guerra. Nos EUA, a mudança foi democratizante, amparada na New Deal Coalition, uma versão yankee do compromisso histórico, que promoveu interesses empresariais urbanos e rurais e incorporou direitos trabalhistas, sindicais e sociais.

Após a guerra – desdobramento da Grande Depressão e do imperialismo econômico-militar – emergiu a segunda onda democrática, que banhou os três países investigados. Na Alemanha (por intervenção externa) e no Brasil (por golpe militar), as ditaduras caíram. A nação alemã direcionou-se para o desenvolvimento democrático, amparada na social market economy. O Brasil ingressou na democracia populista, escorado na aliança desenvolvimentista PSD-PTB, aproximando políticos progressistas e conservadores, grupos industriais e trabalhadores. Nos EUA, apesar da Guerra Fria e do conservadorismo, o capitalismo democrático prosseguiu, sustentado institucionalmente, sobretudo, pelos Democratas.

A Crise de Estagflação descortinou a reviravolta neoliberal, que, desde 1979-1980 foi se hegemonizando. No Reino Unido, Thatcher rompeu o consenso keynesiano, liderando a adesão radical dos Conservadores à restauração da autoridade do mercado.[xli] Em seguida, acentuou-se, nos EUA de Reagan, o conservadorismo e a polarização à direitados Republicanos. O sexto sistema partidário desbancou a New Deal Coalition e, desde então, as clivagens partidárias aprofundam-se.

Na Alemanha, a coalizão de centro-direita CDU/CSU desbancou eleitoralmente o SPD durante16 anos. Manteve-se a economia social de mercado, mas a desigualdade de renda e riqueza entre os 10% do topo e os 50% inferiores vem aumentando, tendência observada também nos EUA. Emergiram pressões contra o welfare state e contra a intervenção estatal na economia.

Esta forte tendência market oriented desenvolveu-se concomitantemente à terceira onda democrática, configurando uma contradição entre os processos econômicos e políticos. Hoje, após quarenta anos, ao invés do livre mercado desenvolver a democracia, evidencia-se uma terceira onda reversa (Lührmann, Lindberg, 2019).

No Brasil, o contexto da Crise de Estagflação ensejou a liberalização da ditadura militar e ações estatais industrializantes, em resposta ao choque do petróleo, que foram criticadas pelos industriais. Ademais, a crise da dívida externa – um desdobramento da resposta ortodoxa dos EUA à estagflação – e o ajuste recessivo do governo Figueiredo desestruturaram a aliança desenvolvimentista-autoritária entre os capitais privados (estrangeiro e nacional) e o capital estatal. Os conflitos e acordos ocorridos neste processo político colocaram o país na transição democrática, que encerrou a ditadura, mas preservando variáveis institucionais autoritárias.[xlii]

Por fim, a Grande Recessão delimita a história do capitalismo neoliberal, sendo a base estrutural do debate hodierno sobre a crise da democracia e a autocratização. Nos três países estudados, a resposta a ela ensejou inovação, pela retomada de um keynesianismo moderado, com estímulo fiscal e expansão monetária. Apesar da moderação, sua adoção gerou reação. Desde 2010, economistas ortodoxos, respaldados pela comunidade das finanças, defenderam, enfaticamente, a contração fiscal expansionista, a austeridade, perspectiva à qual vários governos aderiram, convictos ou pressionados, como Obama, Merkel e Rousseff, nesse caso, em 2015.[xliii]

Quanto ao regime político, a Grande Recessão e sua correlata crise na Europa impactaram os três países. No Brasil, o fim do boom das commodities foi outro elemento de pressão conjuntural. Com intensidades variadas, ou houve autocratização (EUA e Brasil) ou fortaleceram-se forças político-ideológicas de extrema-direita (Alemanha). Um ano-chave foi 2016: em maio, oposicionistas afastaram Rousseff do cargo, visando seu impeachment; em junho, o Brexit venceu o referendum no RU e, em novembro, Trump ganhou as eleições presidenciais nos EUA, país que, desde então, para mencionar um dado, a Economist Intelligence Unit caracteriza como democracia falha, e não mais como democracia plena.[xliv] Embora esta agência qualifique a Alemanha como democracia plena, lá a extrema-direita cresceu. Nos três países, a desigualdade tem aumentado. No Brasil, medida pelo Índice de Gini, vinha caindo até 2015, quando passou a crescer ininterruptamente (Neri, 2019).

Restam as hipóteses. A primeira supõe que as crises do capitalismo reforçam a chance dos regimes mudarem ou de aumentarem ou diminuírem seus níveis de democracia ou autocracia. Há quinze resultados possíveis, pois são cinco situações de crise em três países – examinei a Grande Depressão antes e após a guerra, conflito que ela ajudou a causar, além de descortinar a estruturação da economia mista.

Houve mudança de regime em seis casos, três autoritários e três democráticos: Brasil (Longa Depressão); Alemanha e Brasil (Grande Depressão e pós-guerra); e nos desdobramentos da Crise de Estagflação no Brasil. Quanto aos processos de aumento ou diminuição da quantidade de autoritarismo ou democracia nos regimes, sem haver mudança qualitativa, houve autocratização em três casos: na Alemanha (Longa Depressão) e nos desdobramentos da Grande Recessão nos EUA e no Brasil, desde 2016, respectivamente, com Trump, Temer e, sobretudo, Bolsonaro. Houve também um caso polêmico de autocratização, os EUA na Crise de Estagflação, pois alguns viram Reagan como expoente do neoliberalismo reacionário; tal como Thatcher no RU, ele posicionou-se duramente contra os sindicatos; ao menos, suponho que não houve democratização da democracia em seus governos, fenômeno que, no entanto, ocorreu em dois casos, ambos neste mesmo país, na Grande Depressão e no pós-guerra.

 Por fim, há três situações em que houve mudanças no sistema político, mas não exatamente no regime político. Na Longa Depressão, o sistema partidário nos EUA passou à dominância dos Republicanos. Na Crise de Estagflação, a centro-direita alemã desbancou a centro-esquerda do governo durante 16 anos. Na Alemanha, o contexto da Grande Recessão ensejou quatro situações de Grande Coalizão, afora a já existente no primeiro gabinete de Merkel (2005-2009); tal dado é relevante, pois, apesar do fortalecimento da extrema-direita (AfD), a consolidação do centrismo CDU-SPD tem garantido a governabilidade democrática.

Nos casos acima, as mudanças processadas nas crises do capitalismo, impactaram uma das três variáveis do conceito de Estado, o regime, sendo as outras duas as coalizões e as decisões sobre políticas públicas, direitos e regras institucionais. Estas três variáveis combinam-se, resultando em diferentes sínteses ou equações do Estado, todas elas associadas às relações mutantes dos atores sociais e políticos com o Leviatã nas diversas conjunturas críticas de distintas fases do capitalismo. Tais dados corroboram a primeira hipótese. A austeridade, por exemplo, mostrou-se uma resposta à Grande Recessão tendencialmente autocratizante, por ser anti-igualitária, ao restringir a oferta dos recursos materiais necessários para a efetividade mínima do princípio democrático da igualdade política.

Segunda hipótese: a autocratização, induzida nas crises internacionais, requer uma relação de forças pró-empresarial, que garanta a subordinação dos trabalhadores. Essas condições gerais ocorreram nas autocratizações aqui examinadas (desconsiderando o governo Reagan). Identifiquei três situações desse tipo:

  1. no fascismo de Hitler (Grande Depressão), líder que forjou – mobilizando as massas, no caos da depressão, hiperinflação e ingovernabilidade da Weimar Republic, e beneficiado pela divisão da esquerda – uma unificação empresarial em apoio ao totalitarismo;
  2. nos governos de Trump e Bolsonaro (Grande Recessão), líderes que, diante da crise de legitimidade democrática e de corrupção (Brasil), mobilizando as massas e cerceando politicamente atores identificados como inimigos, unificaram o empresariado (ou parte dele) e os conservadores numa agenda ultraliberal e de corrosão democrática;
  3. na Alemanha da Longa Depressão, diante do equilíbrio de classes, Bismarck arbitrou um acordo e articulou uma coalizão protecionista entre indústria e agricultura, com inclinação nacionalista-militar e imperialista e de restrição à ação da social-democracia; no Brasil da Grande Depressão, Vargas, diante da desagregação da aliança de suporte à Revolução de 1930, conquistou apoio militar para o golpe ditatorial do Estado Novo, que resultou em aumento da autonomia do Estado.

A terceira hipótese argumenta que o compromisso democrático dos atores é uma barreira contra a autocratização. Confirmo-a nos seguintes casos em que as extremas-direitas foram contidas: nos EUA, na Grande Depressão e no pós-guerra; no Brasil, na Crise de Estagflação; e na Alemanha, na Grande Recessão.

Examinadas interdisciplinarmente e histórico-comparativamente, as crises econômicas internacionais permitem compreender o deslocamento dos regimes no eixo autocratização-democratização como respostas nacionais nelas processadas, circunscritas na economia política das relações cambiantes entre Estado e sociedade em cada país, e não como processos exclusivamente político-institucionais. Tais deslocamentos mobilizam estruturas e ações. Sem ignorar as suas especificidades, as tendências autocráticas de Trump e Bolsonaro enraízam-se no aumento dadesigualdade, no acirramento do conflito distributivo e na emergência de líderes de extrema-direita, que, coalizados com políticos, empresários e eleitores conservadores, definem seus inimigos e dirigem-se às massas, para construir um padrão protofascista de legitimação, alternativo à crise de legitimidade da democracia, regime representativo enfraquecido pelas insatisfações dos cidadãos com sua atual balança entre benefícios e custos. A autocratização corrente emana das contradições entre o capitalismo neoliberal, em crise, e o Estado democrático, que têm desafiado internacionalmente os partidos políticos de todo o espectro político-ideológico.

*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de Estado e coalizões No Brasil (2003-2016): social-desenvolvimentismo e neoliberalismo (Contraponto).[https://amzn.to/3xXtXe0]

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Notas


[i] A identificação das quatro crises está em Gourevitch (1986), Stiglitz (2009) e Roberts (2009). Os dois últimos denominam a crise de 2007-2008 de Grande Recessão.

[ii] O Estado também toma decisões judiciais, administrativas e exerce função ideológica.

[iii] Reportagens sobre a recessão estão em nestes links: Folha de São Paulo, Folha de São Paulo e Financial Times. Acessos: 10/09/2019.

[iv] Em 1934, houve uma mudança de regime, constitucionalmente respaldada, que durou apenas três anos.

[v] Segundo o Banco Mundial [BIRD], o PIB mundial assim variou: 1973 (6.5%), 1974 (1.9%) e 1975 (0.6%). A inflação foi, respectivamente, 11.7%, 16.3% e 11.7%; ver neste link . Acesso:15/08/2020.

[vi] Até 2009, 79 países adotavam o câmbio flutuante. Em 2013, eram 65, cf. neste link. Acesso: 10/08/2020.

[vii] Ver reportagem do FED neste link. Acesso: 28/08/2020.

[viii] Reportagem sobre o aumento da participação das finanças no PIB, entre 1950 e 2010, neste link. Acesso: 10/08/2020.

[ix] Reportagem sobre os eleitores de Reagan está neste link. Acesso: 20/08/2020.

[x] Reportagem sobre a ação de Reagan contra a greve dos controladores de tráfego aéreo está neste link. Informações oficiais sobre a reaganomics estão neste link. Acessos: 10/08/2020.

[xi] Informações do Departamento do Tesouro dos EUA sobre o TARP estão neste link. Acesso: 12/06/2021.

[xii] Quantitative easing (flexibilização quantitativa) é uma política monetária de compra, pelo banco central, de certos montantes de títulos públicos ou outros ativos financeiros visando estimular a economia. Ver reportagens sobre o quantitative easing neste link. Acessos: 12/06/2021.

[xiii] Reportagem sobre a aprovação do plano de Obama está neste link. Acesso: 13/06/2021.

[xiv] Dados oficiais do U.S. Bureau of Labor Statistics estão neste link. Reportagem sobre o emprego nos governos Obama está neste link. Acesso: 26/12/2021.

[xv] Reportagens sobre a austeridade nos governos Obama estão neste link e neste outro link. Acessos: 27/12/2021.

[xvi] Reportagem sobre o corte orçamentário em 2011 está neste link . Acesso: 31/12/2021.

[xvii] Em novembro de 2021, 12 estados não haviam expandido o Medicaid, para aderirem ao Obamacare. Reportagens sobre a política de saúde de Obama estão neste link e neste outro link. Acessos: 01/01/2022.

[xviii] Informações do U.S House Committe on Financial Services sobre a reforma regulatória das finanças estão neste link. Acesso: 30/12/2021.

[xix] Reportagem sobre o estímulo fiscal de Trump está neste link. Acesso: 30/12/2021.

[xx] Adjetivei o conservadorismo inspirando-me em Fraser.

[xxi] Uma descrição de fatos do governo Trump está neste link. Acesso: 24/04/2022.

[xxii] Relatório do Center on Budget and Policy Priorities sobre a política orçamentária de Trump está neste link. Acesso: 24/04/2022.

[xxiii] CDU é a União Democrata Cristã e CSU, a União Social Cristã. Reportagem da BBC News sobre a primeira Grande Coalizão de Merkel está neste link. Acesso: 12/06/2022.

[xxiv] Consultar BIRD neste link. Acesso: 31/05/2022.

[xxv] Sobre o desemprego total na Alemanha, consultar este link. Acesso: 31/05/2022.

[xxvi] Reportagens sobre a crise das hipotecas em bancos europeus estão neste link e neste outro link. Acessos: 11/06/2022.

[xxvii] Reportagem sobre a venda do IKB está neste link. Acesso: 11/06/2022.

[xxviii] Reportagem sobre o pacote de resgate alemão está neste link. Acesso: 12/06/2022.

[xxix] Reportagem sobre a austeridade na Alemanha está neste link . Acesso: 19/06/2022.

[xxx] Reportagem sobre as eleições na Alemanha em 2013 está neste link. Acesso: 19/06/2022.

[xxxi] Estes dados constam neste link. Acesso: 19/06/2022.

[xxxii] Reportagem sobre a classe média alemã está neste link. Acesso: 19/06/2022.

[xxxiii] Consultar https://www.eiu.com/n/.

[xxxiv] Reportagem sobre vínculos dos Bolsonaro com Bannon, assessor de Trump, está neste link. Acesso: 26/06/2022.

[xxxv] Reportagem sobre o posicionamento de Lula diante da Grande Recessão está neste link. Acesso: 26/06/2022.

[xxxvi] Reportagens sobre a política fiscal e os investimentos dos governos Lula estão neste link, neste outro link e ainda neste link. Acessos: 26/06/2022.

[xxxvii] Reportagem sobre medidas de Lula para combater a crise está neste link. Uma matéria opinativa está neste outro link. Acessos: 02/07/2022.

[xxxviii] Reportagem sobre a popularidade de Lula ao deixar o governo está neste link. Acesso: 02/07/2022.

[xxxix] Reportagem sobre o déficit nominal de 2010 está neste link. Acesso: 02/07/2022.

[xl] Dados do FMI sobre as commodities estão neste link. Acesso: 03/07/2022.

[xli] Sobre a revolução de Thatcher, consultar este link. Acesso em: 20/07/2022.

[xlii] O Documento dos Oito, que marcou o pleito empresarial pela redemocratização, está neste link. Acesso: 20/07/22.

[xliii] Sobre a austeridade, consultar este link. Acesso: 20/07/2022.

[xliv] Consultar neste link. Acesso: 20/07/2022.


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