Luiz Carlos Bresser-Pereira — um intelectual público nacionalista democrático

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Por MARCUS IANONI*

Bresser-Pereira posiciona-se como arquiteto do futuro, do projeto nacional, da construção política do Brasil, característica que exala de sua obra

A organização, produção e divulgação de pesquisa de Luiz Carlos Bresser-Pereira, assim como outras dimensões de sua ação pública, configuram, no lato sensu, uma obra tão ampla que a abordar, sobretudo visando arriscar um comentário geral, pode levar quem se proponha a tal ousadia, como é o caso aqui, a sentir-se em um labirinto. Qual é a saída para esse desafio, que fio da meada percorrer? Escolhi destacar e entrelaçar as distintas e numerosas fontes empíricas de suas ações e produções como portadoras de qualidades que, embora ancoradas no universo acadêmico, fazem de Bresser-Pereira mais ainda do que um scholar universitário: ele é um intelectual público da sociedade brasileira.

Jürgen Habermas, ao descrever e distinguir as esferas privada e pública, e Edward Said, entre outros, contribuíram para a abordagem do conceito de intelectual público, que diz respeito a um seleto grupo de pessoas que não são apenas, como parece ser mais frequente, academic scholars, mas, simultaneamente, ativistas políticos e/ou culturais. Tais pessoas entrelaçam de tal modo essas duas dimensões em seu trabalho e ação em geral que acabam tornando-se referências em determinados assuntos da esfera pública.

Porém, indivíduos não acadêmicos, como jornalistas, escritores e artistas, entre outros, também têm desempenhado o papel de intelectuais públicos. Foge ao propósito deste texto discutir se o termo intelectual público é redundante e uma categoria usada basicamente nos EUA. Tal crítica considera que o caráter público é inerente à condição intelectual e que tal ênfase seria uma reação, surgida naquele país nos anos 1970, no contexto da Guerra do Vietnã, contra o anti-intelectualismo lá existente.

Bresser-Pereira, por um lado, escreve para o público acadêmico da área de Economia e das Ciências Sociais em geral. Seu Google Scholar registra nada menos que 49.902 citações, e seu i10-index é 512. Ou seja, ele é um autor muitíssimo lido e citado das Ciências Sociais, no lato sensu desse campo do conhecimento. E isso não se deve, sobretudo, à sua longevidade, por estar com 89 anos, mas à sua alta produtividade, à qualidade, originalidade e ousadia autoral de sua produção e à consequente respeitabilidade perante os pares.

Para evitar eventuais injustiças, não mencionarei outros nomes, além do que, se o fizesse, compararia a produção de Bresser-Pereira com a de intelectuais brasileiros vivos de sua mesma faixa etária, mas estes parecem não ter se registrado no Google Scholar, um costume mais recente. Mas outras fontes podem fornecer indicadores comparativos. Desde 2022, por exemplo, têm sido divulgadas as informações do Ad Scientific Index. Bresser-Pereira tem sido o primeiro da lista dos 100 prin cipais economistas latino-americanos.

Por outro lado, ele escreveu e ainda escreve e fala para o grande público, nos principais jornais e revistas da mídia impressa do País, canais de televisão, estações de rádio e redes sociais. Outra dimensão de suas ações diz respeito à participação na gestão governamental e nas lutas pela democracia no Brasil. Nos anos 1980, na gestão do Governo do Estado de São Paulo encabeçada por Franco Montoro, foi presidente do Banco do Estado de São Paulo e Secretário do Governo, bem como Ministro da Fazenda do Presidente José Sarney, que o nomeou para enfrentar a persistente crise inflacionária que apenas o Plano Real, nos idos de 1993-1994, conseguiria equacionar.

Bresser-Pereira havia sido um dos pioneiros na formulação da teoria da inflação inercial, uma base de conhecimento fundamental do plano de estabilização colocado em prática no governo Itamar Franco. Nos anos 1990, foi Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, no primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, e Ministro da Ciência e Tecnologia no segundo governo desse presidente da República, cargo do qual saiu em 1999.

Desde os anos 1970, tomou partido ao lado da redemocratização do Brasil, tendo sido filiado ao MDB, depois PMDB, agremiação da qual saiu em 1988 para apoiar a fundação do PSDB, no qual se filiou. Rompeu com os tucanos em 2011, por conside- rar que esse partido havia migrado para a direita e que a posição social-democrata no espectro político-ideológico nacional estava ocupada pelo PT. Aliás, concordo com sua autoidentificação ideológica como intelectual de centro-esquerda, não comunista.

Nos últimos 10 anos, por exemplo, criticou o julgamento do chamado mensalão pelo STF, pela sua politização midiatizada contra o PT e pela adoção da teoria do domínio do fato, que teria implicado condenações sem provas de dirigentes petistas. Em seguida, argumentou que o modus operandi de combate à corrupção da Operação Lava Jato teria sido uma das causas da recessão de 2015-2016 e criticou a deposição de Dilma Rousseff, qualificando-a como um golpe, golpe branco, golpe parlamentar. Creio que esses dados, entre outros, permitem qualificá-lo, substantivamente, como intelectual público e adjetivá-lo como nacionalista democrático e republicano.

Abordarei tridimensionalmente a condição de Bresser-Pereira como intelectual público, levando em conta as variáveis tempo, espaço e conteúdo das ideias. Em um belo samba de Wilson Batista, regravado por Paulinho da Viola, lê-se: “Meu mundo é hoje, não existe amanhã pra mim”. O tempo no horizonte do intelectual público Bresser-Pereira tem sido tanto o hodierno, como o do sambista mencionado, quanto o do futuro. Sua atuação visa colocar o presente a serviço do amanhã, do devir, do vir a ser da transformação dialética de Hegel e Marx, horizonte que habita seu pensamento e que ele propõe ser construído diariamente.

O tempo de Bresser-Pereira é o tempo-destino do navegador que acredita que “navegar é preciso, viver não é preciso”. O horizonte de referência em sua viagem de mudança é a nação brasileira, por meio do desenvolvimento, objetivo nacional normativo ainda inconcluso. Bres ser-Pereira posiciona-se como arquiteto do futuro, do projeto nacional, da construção política do Brasil, característica que exala de sua obra (Miranda, 2014).

Por outro lado, na célebre passagem do Livro de Eclesiastes, mobilizam-se situações opos tas, como quando se lê que “para tudo há um tempo determinado e para tudo há um tempo debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou”, e assim por diante. Mas, quanto à temporalidade própria a Bresser-Pereira, destacaria a continuidade contextualizada de suas ideias-força nucleares, em especial nos últimos 20 anos, obstinadamente afirmadas e reafirmadas, sem passar por ciclos opostos e orientadas pelo ambicioso e relevante projeto do novo desenvolvimentismo.

Isso não significa que ele não tenha mudado alguns aspectos de suas reflexões, como a reformulação de sua abordagem do próprio desenvolvimentismo, que mudou do antigo modelo nacional e autóctone para o mencionado modelo novo, que engloba a perspectiva da participação ativa no mercado externo, pela exportação de mercadorias e serviços. Fica a dúvida sobre o que o novo desenvolvimentismo pensa em relação à exportação de capitais pelas empresas brasileiras, ou seja, sobre a instalação em outros países de multinacionais com sede no Brasil, controladas por capital autóctone.

Afinal, como ele não trabalha com modelos econômicos que prescindem da história, a adaptação às circunstâncias, sobretudo as que comportam mudanças de magnitude estrutural, faz parte de sua perspectiva científica. Ademais, ao arriscar-se corajosamente a escrever sobre temas da conjuntura, pode estar sujeito a rever algumas posições, fazendo-o sempre com transparência e honestidade. Mas os horizontes centrais de seus valores permaneceram, ainda que se adaptando à mutabilidade temporal: desenvolvimento da nação pela economia de mercado, democracia, justiça social e, nos últimos anos, sustentabilidade.

Além disso, embora realista, ele também é otimista, mas não ufanista. Vem à lembrança a equação formulada por Gramsci ao ponderar o otimismo da vontade com o pessimismo da razão. O realismo de Bresser-Pereira aparece, por exemplo, quando ele manifesta pessimismo em relação ao comportamento dos empresários industriais brasileiros, pelo seu nacionalismo fraco, ou com os caminhos erráticos da nação durante os governos conservadores e neoliberais de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Mas ele não descarta a esperança no futuro, de modo que não parece endossar ideias como a de entropia do sistema econômico e social (Streeck, 2016). Prefere, antes de tudo, direcionar a vontade e a razão na superação construtiva das contradições, em vez de aprisioná-las no pessimismo que, emanado da racionalidade, desestimula a volição.

O principal espaço físico e universo reflexivo de referência de seu pensamento e ação é o Brasil, a nação brasileira, que ocupa o território do País e nele ergue uma sociedade e um Estado nacionais. Mas a nação não apenas contextualiza o espaço físico-social de sua representação intelectual. Ela também é um objeto, um tema, uma preocupação essencial de sua obra, no sentido amplo acima evocado. Se há algo que caracteriza Bresser-Pereira, é o nacionalismo: ele é um nacionalista, nos sentidos econômico e político, de construção da nação soberana, um antidependentista e anti-imperialista orgânico de uma fração de classe, real ou imaginária, uma burguesia industrial brasileira interessada em liderar o desenvolvimento democrático do País.

Ele se apropria de conteúdos do marxismo, como certas análises das classes sociais e do imperialismo econômico. Mas faz isso também em relação a outros clássicos, como Weber, Keynes etc. Para Bresser-Pereira, o capital se faz em casa, de modo que ele rejeita a estratégia de crescimento com poupança externa proposta pelos países desenvolvidos a países como o Brasil, por não acreditar que esse caminho induza ao aumento dos investimentos, ao passo que tende a produzir déficits em conta corrente, a apreciar a taxa de câmbio e a estancar o crescimento (Bresser-Pereira & Gala, 2007). O nacionalismo de Bresser-Pereira é econômico, não militarista, muito menos étnico. Mas, por não renunciar à democracia, defende o nacionalismo democrático, elemento central de sua economia política. Essa dimensão do pensamento-ação desse intelectual público é fundamental, de modo que cabe agora avançar um pouco no con- teúdo de sua obra.

Seu comprometimento com a transformação da realidade orienta-se pela ideia-força de que a nação deve se organizar em uma república democrática, independente e desenvolvida. Teme que a ideia de nação seja perdida, abandonada. Seu principal momento histórico-nacional de referência é o nacionalismo construído na trilha de Getúlio Vargas – visto por ele como um grande estadista – e do correspondente varguismo, que, como se sabe, prosseguiu após a morte desse presidente da República e líder político histórico da modernização brasileira.

A ideologia nacionalista também inspirou outras duas referências de Bresser-Pereira, sem pre- juízo de seu distanciamento crítico em relação a elas, Celso Furtado e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que estão entre as principais fontes de formulação do nacional-desenvolvimentismo. O intelectual público aqui abordado é um continuador da tradição desenvolvimentista brasileira de economistas e instituições, que, além dos já citados, conta com referências como Inácio Rangel, Rômulo de Almeida e Delfim Netto (orientador de sua tese de doutorado), entre outros.

Enfim, a partir da Revolução de 1930, ocorreu, segundo Bresser-Pereira, a revolução nacional e industrial brasileira, que tanto lhe orgulha, embora também reconheça suas limitações, como a concentração de renda, e inevitabilidades, como o autoritarismo modernizador (Bresser-Pereira, 1972, 2016).

Bresser-Pereira ergue a bandeira do reformismo liberal-democrático, com inspiração social-democrata, mas formulado com o intuito de adaptar-se às condições estruturais brasileiras, distintas das europeias. Nesse empenho incansável, levado a cabo desde os anos 1970, ele tem logrado abrir e sustentar canais de interlocução com atores relevantes da sociedade civil brasileira, ou seja, não só os paulistas e, em particular, os paulistanos, da cidade onde nasceu e vive, mas de várias regiões e estados. Entre tais interlocutores, destacam-se vários membros da comunidade acadêmica das Ciências Sociais e Humanas, começando pelos economistas, cientistas políticos, sociólogos, administradores de empresa dos setores público e privado, historiadores, entre outros, como jornalistas e lideranças políticas.

Um dos principais frutos acadêmicos dessas interlocuções e esforço intelectual tem sido a construção de uma alternativa à ortodoxia neoclássica, denominada novo desenvolvimentismo, definido como “um sistema teórico em formação aplicado a países de renda média, constituído por uma macroeconomia e uma economia política já relativamente bem desenvolvidas e uma microeconomia em construção” (Bresser-Pereira, 2016, p. 31).

Tal empreitada sintetiza duas faces da mesma moeda da ação estratégica de Bresser-Pereira: trata-se de trabalho produtivo acadêmico e, simultaneamente, uma contribuição endereçada aos debates na esfera pública. A corrente de pensamento econômico novo-desenvolvimentista originou-se no processo de virada na conjuntura nacional, estimulado pelo fracasso das políticas neoliberais na América Latina, desde o final dos anos 1990, em que se inscreveram as vitórias eleitorais de Hugo Chávez, na Venezuela, em 1998, e de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, em 2002, entre outros líderes de esquerda que chegaram à presidência em seus países, a maioria de perfil ideológico moderado.

Posteriormente, esse processo de renovação política latino-americana foi denominado Onda Rosa. Vários anos de governos adeptos, uns mais, outros menos, ao malsucedido ideário neoliberal, iniciados, no caso brasileiro, na presidência de Fernando Collor de Mello, passando pelas de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, ensejaram uma janela de oportunidade para novas ideias, coalizões, políticas públicas e renovação democrática. Vários parceiros unem-se a Bresser-Pereira nessa empreitada intelectual de pensar sobre uma alternativa para o desenvolvimento brasileiro no contexto de um sistema capitalista internacional dirigido pelas finanças (Guttman, 2008), que pressiona os países no sentido de se conformarem a um arranjo estrutural de política macroeconômica fomentador de estagnação e crises.

Nesse sentido, correndo o risco de, involuntariamente, ser injusto com outros colegas, destacaria suas parcerias com os economistas Nelson Marconi e José Luis Oreiro (Bresser-Pereira et al., 2017). Na verdade, Bresser-Pereira produziu em parcerias com dezenas de autores, algumas delas publicadas na Revista de Economia Política, ou Brazilian Journal of Political Economy, periódico trimestral que ele edita desde 1981, tendo alcançado um status importante entre economistas e cientistas sociais em geral, bem como no Qualis Periódicos.

Embora o novo desenvolvimentismo não seja a única vertente de pensamento desenvolvimentista no Brasil atual, nem mesmo a principal delas, ao menos em termos de capacidade de impacto que teve nas políticas públicas dos governos progressistas de Lula I e II e de Dilma I (Dilma II foi forçado a retroceder em sua agenda decisória), parece não haver outro grupo tão organizado, formulando de modo tão sistemático suas ideias e propostas de como superar as persistentes décadas de estagnação econômica no Brasil quanto o liderado por Bresser-Pereira, intelectual que, em termos acadêmicos, pertence à Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), instituição na qual ele já liderou 18 edições do Fórum de Economia e onde está agora organizando a sexta edição do Workshop on New Developmentalism, de caráter internacional.

Nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, Nelson Marconi ocupou posição de destaque na assessoria econômica do candidato Ciro Gomes (PDT), que acabou incorporando às suas propostas de governo algumas ideias do novo desenvolvimentismo. Por outro lado, avalio que o ideário da corrente social-desenvolvimentista, presente sobretudo em produções de pesquisadores da Unicamp e do Instituto de Economia da UFRJ, teve mais penetração ideológica nos governos encabeçados por presidentes petistas, mas seus formuladores intelectuais parecem ser menos articulados como grupo organizado de pesquisa acadêmica.

Chegou a haver uma discussão sobre se a Nova Matriz Econômica (NME), implementada no primeiro governo de Dilma Rousseff, teria ou não sido influenciada pelo novo desenvolvimentismo, em função das medidas destinadas a baixar os juros e depreciar a taxa de câmbio. Em todo caso, Bresser-Pereira criticou a NME, política macroeconômica que, apoiada na mudança de alguns preços relativos, não alcançou as diretrizes almejadas pelo novo desenvolvimentismo, a começar pela reversão da desindustrialização.

Outra característica do conteúdo da obra de Bresser-Pereira é seu caráter interdisciplinar, uma vez que ela abrange temas, conceitos e argumentos de várias áreas acadêmicas: Ciência Econômica, incluindo a metodologia dessa disciplina, Economia Política, História Nacional e das Relações Internacionais, Sociologia, Ciência Política, Filosofia Política, Ciências da Administração, sobretudo a gestão pública, entre outras áreas da cultura acadêmica.

Da mesma maneira, ele se preocupa com o rigor teórico e, tendo uma perspectiva metodológica histórica, indutiva (mas sem desvalorizar a lógica, a dedução) e, não raramente, comparada, é atento à dialética entre o geral e o particular, perspectiva-chave para entender o sistema econômico e social capitalista como uma totalidade abstrata, um modo de produção distinto de outros já existentes, mas também como formação social, ou seja, com distintas manifestações concretas. Em relação ao Brasil, por exemplo, sua leitura histórica o leva a enxergar ciclos, em diálogo com outros autores, como Celso Furtado e Caio Prado Junior.

Mas ele não identifica apenas ciclos econômicos, pois são também políticos, ou ciclos de economia política, que passam pela construção do Estado nacional, no século XIX, pela revolução capitalista desde a Revolução de 1930 e pela democracia, a partir da Constituição de 1988.

Penso ser importante destacar sua abordagem interdisciplinar, por considerá-la um mérito. Nas últimas décadas, a especialização nas Ciências Humanas, que se deu, por exemplo, mas não só, na Ciência Política, prejudicou o diálogo com outras disciplinas. Sua obra A construção política do Brasil, para citar uma referência, contém um pensamento econômico e social brasileiro tecido no diálogo na fronteira disciplinar, como mostram o texto e a bibliografia desse livro e de tantos outros, assim como centenas de artigos desse ultraprodutivo professor e pesquisador.

Ao analisar a obra Desenvolvimento e crise no Brasil, publicada em 2003 pelo intelectual público aqui abordado, Fonseca (2015) caracteriza Bresser-Pereira tanto como um dos intér- pretes do desenvolvimento brasileiro quanto como um autor cuja criatividade assenta-se no ecletismo. De fato, uma das qualidades de Bresser-Pereira, enraizada em sua sede de conhecimento (inerente ao cientista por vocação), é sua postura de beber da fonte ampla do universo das Ciências Humanas e da Filosofia, sem contar seu apego às artes em geral.

Daí advêm os estímulos à sua imaginação e criatividade, à sua ousadia pensante, bem como sua originalidade e não aversão ao risco, virtudes típicas do intelectual público. Exemplos disso manifestam-se em ideias e conceitos como perda da ideia de nação, sociedade nacional-dependente, burguesia nacional-dependente, nacionalismo fraco, acesso à demanda (quando discute um de seus temas-chave, a sobrevalorização da taxa de câmbio no Brasil), entre tantos outros.

Mas ele concilia a abordagem interdisciplinar com a especialidade técnica, como quando foca mais especificamente alguns conceitos ou problemas, por exemplo, na taxa de câmbio competitiva, tema central na estratégia novo-desenvolvimentista, que valoriza as exportações, as vendas de produtos e serviços no mercado internacional, configurando o chamado modelo export-led ou export-oriented industrialization.

Ao abordar a taxa de câmbio, ele percorre vários níveis da espiral dialética, dos mais concretos aos mais abstratos, como a distinção entre valor e preço, sua importância para o desenvolvimento, seus usos históricos, como no caso dos países do Leste da Ásia, o problema da doença holandesa, que tanto o preocupa, além de conceitos como taxa de câmbio de equilíbrio corrente e de equilíbrio industrial. Ao aprofundar-se nessa abordagem técnica sobre a taxa de câmbio, não hesita em ser polêmico e transparente, deixando claro que sua proposta pode, de início, implicar queda dos salários e inflação, e que o combate do Estado à doença holandesa pode passar por aumento de impostos para os exportadores de commodities.

Ademais, como já dito, a afirmação da nação passa pelo desenvolvimento, processo que Bresser-Pereira concebe, na boa tradição da economia política clássica, como tendo uma clara dimensão política, não sendo, então, uma mera decorrência do funcionamento autônomo do livre-mercado, especialmente nas fases iniciais da acumulação de capital. Mas ele não renuncia à perspectiva do Estado desenvolvimentista, particularmente imprescindível a países como o Brasil no atual contexto internacional da globalização.

Não há processo de desenvolvimento, seja ele falho ou bem-sucedido, que prescinda da interação entre, por um lado, o Estado e, por outro, a sociedade e a economia. Porém, o catching up requer projeto e estratégia, requer coalizão entre classes e frações de classe, requer um Estado desenvolvimentista que, munido com ideias de efetiva qualidade e suporte (força de apoio), lidere uma ação coletiva da comunidade nacional, um amplo processo de transformação econômica, social, política e ideológica.

Mas o Estado, instrumento-chave de ação coletiva, precisa articular-se com os agentes do mercado, para superar desafios, como se fosse um partido político amplamente democrático a serviço do desenvolvimento da nação, objetivo que passa por uma alavanca básica, a industrialização direcionada para a fronteira tecnológica, ou seja, não se trata de qualquer industrialização. Cabe ao Estado desenvolvimentista induzir o investimento empresarial na indústria, que deve se desdobrar no lucro dos empresários, na acumulação de capital e na elevação da renda nacional, na perspectiva de combater as desigualdades.

Sair da renda média e alcançar a renda alta é uma meta-chave. Na visão de Estado de Bresser-Pereira, a economia de mercado não implica necessariamente uma ordem político-decisória norteada pelo liberalismo econômico. Economia de mercado não requer Estado (neo)liberal, perspectiva também chamada de Estado mínimo. A opção política que, em tese, pode conduzir países de renda média ao catching up é o Estado desenvolvimentista, sob pena das nações não desenvolvidas estagnarem, perderem o bonde histórico do desenvolvimento.

Como já mencionado, por meio do novo desenvolvimentismo, Bresser-Pereira tem sido pioneiro, neste terceiro milênio, na formulação teórica do tema do desenvolvimento no Brasil. O esforço desenvolvimentista atual visa adaptar as ideias ao contexto da globalização, das regras comerciais internacionais e das políticas de integração regional, que é bem distinto do pós-guerra; visa também superar a armadilha da renda média e, por fim, formular uma teoria macroeconômica e uma economia política, que possam, juntas, desdobrar-se em um projeto e, oxalá a democracia contemple, em uma efetiva estratégia de ação e de decisões governamen- tais de políticas públicas alternativas ao cabedal decisório de horizonte neoliberal.

Mas sua valorização do Estado não desrespeita os direitos civis e as liberdades individuais, pelo contrá rio. Bresser-Pereira rejeita o liberalismo econômico, mas não o liberalismo político, desde que este alavanque um sistema representativo democrático, não o oligárquico, como aquele que possui sufrágio censitário ou aquele que tenha um arranjo institucional voltado à restrição do alcance da democracia. Pelo contrário, ele apoia a democracia participativa.

Enfim, ousei um comentário geral sobre a obra e ação de Bresser-Pereira, tomando-o como um intelectual público nacionalista democrático da sociedade brasileira, de centro-esquerda, que interage tanto com seus pares acadêmicos quanto com diversos outros atores, inclusive membros da chamada classe política, leitores em geral etc. Um intelectual, acima de tudo, otimista, tanto por vontade quanto por racionalidade: afinal, como pode a razão investir toda uma vida na construção da nação brasileira sem estar embebida na crença de que é possível viabilizá-la? Ocorre-me o célebre argumento de David Hume (2003): “Reason is, and ought only to be the slave of the passions, and can never pretend to any other office than to serve and obey them” (Sect. III).

Seu nacionalismo, sua ideia-força de construção da nação, ao menos no que diz respeito à fração de classe que é a principal interlocutora de sua imaginação transformadora, uma burguesia industrial progressista e reformista, que ele, indireta e/ou diretamente, convoca à ação política, parece tornar Bresser-Pereira um “último dos moicanos” do empresariado nacional democrático, em luta heroica contra a dependência nacional, pela sobrevivência do País autônomo, soberano, efetivamente condutor de seu próprio destino, por meio do desenvolvimento, processo que deve centrar-se na industrialização de ponta.

Por outro lado, no que diz respeito à intelectualidade desenvolvimentista, esta existe, resiste e atua, tanto que é em seu seio que ele tem construído uma das principais correntes organizadas do desenvolvimentismo brasileiro atual, o novo desenvolvimentismo, sua principal paixão racional, algo como o significado de interesse para Albert Hirschman, (1977), conceito que sintetiza razão e desejo.

Diante dos desafios do País para superar as desigualdades, desafios cuja importância só aumentaram em decorrência da regressão nacional entre 2016 e 2022, as ideias, as motivações e o exemplo de Bresser-Pereira, autor que clama pela formulação e implementação de um projeto de nação, centrado no desenvolvimento, capaz de alavancar um casamento frutífero entre a ordem econômico-social e a ordem política, tornam esse intelectual público um brilhante da sociedade brasileira. Como escreveu Caetano Veloso, “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.

*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Publicado originalmente nos Cadernos de gestão pública, v. 29, 2024.

Referências


Ad Scientific Index. Latin America world scientists rankings: World top 100 rankings. https:// www.adscientificindex.com/

Bresser-Pereira, L. C. (1972). Desenvolvimento e crise no Brasil (3a ed.). Brasiliense. [https://amzn.to/4dVZ75B]

Bresser-Pereira, L. C. (2016). A construção política do Brasil: Sociedade, economia e Estado desde a Independência (3a ed.). Editora 34. [https://amzn.to/44Wj4FA]

Bresser-Pereira, L. C., & Gala, P. (2007). Por que a poupança externa não promove crescimento. Brazilian Journal of Political Economy, 27, 3-19. https://doi.org/10.1590/S0101-31572007000100001

Bresser-Pereira, L. C., Oreiro, J. L., & Marconi, N. (2017). Macroeconomia desenvolvimentista: Teoria e política econômica do novo desenvolvimentismo. Elsevier Brasil. [https://amzn.to/3Kge1WU]

Fonseca, P. C. D. (2015). O ecletismo inovador: Bresser-Pereira e o desenvolvimento brasileiro. In J. L. Oreiro, L. F. de Paula & N. Marconi, A teoria econômica na obra de Bresser-Pereira (pp. 39-67). UFSM.

Guttman, R. (2008, novembro). Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças. Novos Estudos Cebrap, (82), 11-33. https://doi.org/10.1590/S0101-33002008000300001

Habermas, J. (1989). The structural transformation of the public sphere: An inquiry into a category of bourgeois society. Polity Press.

Hirschman, A. O. (1977). The passions and the interests: Political arguments for capitalism before its triumph. Princeton University Press.

Hume, D. (1739). A treatise of human nature (Sect III). The Project Gutemberg eBook. https:// www.gutenberg.org/cache/epub/4705/pg4705-images.html

Miranda, D. E. R. de. (2014). Bresser-Pereira: Pensamento como ação política (Tese de doutorado em Ciência Política, Universidade Federal de São Carlos, UFSCAR).

Said, E. W. (1996). Representations of the intellectual: The 1993 Reith Lectures. Vintage Editions.

Streeck, W. (2016). How will capitalism end? Essays on a failing system. Verso Books.


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