Por JULIO CESAR TELES*
Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Fernando Atique
Andar pelas ruas com o arquiteto e historiador das cidades Fernando Atique é uma experiência agradável. Através de seu mais novo lançamento, Crônicas das calçadas (2024), Fernando Atique nos leva a diversas questões contemporâneas das cidades em que vivemos. São reflexões que nos fazem pensar desde os lugares de memória[i] até os topónimos que nos perpassam todos os dias enquanto caminhamos rumo aos nossos compromissos. Ao fim de cada história, questões que são verdadeiros desafios ficam para análise.
O livro reúne diversos escritos de Fernando Atique que foram publicados na revista ArqXP. Além do brinde em termos de pensamento, o escrito conta ainda com diversas fotografias de Alex Reipert Filho que a cada capítulo provocam diversos sentidos do leitor por meio da estética e das próprias edificações, formas e questões visuais urbanas.
Particularmente, neste breve texto quero falar das quatro crônicas que me captaram mais.
Já em um dos primeiros escritos, “Minha casa é fogo!”, somos provocados a pensar na relação que há da nossa espécie, quando no Neolítico passamos a viver em casas, inclusive com a necessidade e técnica do domínio do fogo que permitia abrigo e segurança, o que se relaciona com a ideia da lareira. Isso, dados todos os desdobramentos, se diferencia de lar, que é um espaço de segurança e preservação da espécie rodeado por sentimento.
É curioso notar que ao escrever este texto durante a pandemia de Covid-19 (2020), os lares voltaram a ganhar a ideia de espaço seguro e cuidados por todos, mesmo que “Na América Latina de maneira geral, e com especial ênfase no Brasil, morar é um ato de resistência. Temos centenas de milhares de espaços sem preparação alguma para longa permanência” (p. 25).
Mais curioso ainda é notar que se passou o tempo e permanece o problema. Quantas pessoas ainda vivem em locais de risco, quantos não possuem espaço adequado para sua saúde e bem-estar, e, pior, quantos ainda vivem nas ruas sem abrigo, distantes de qualquer possibilidade de lar.
No segundo texto, “Filosofia das calçadas” apresenta-se que semelhantemente a nossa atitude de caminhar e pensar sobre inúmeras coisas, os nomes e personagens das cidades também possibilita um pensar constante.
A cidade como um espaço plural e de convivência dos diversos, ao mesmo tempo em que criou uma série de objetos que contam nossa história e vivência, foi excluindo e deixando de lado os atores que não se encaixavam nas regras sociais e morais dos tempos modernos. Por isso, “Fomos treinados, nos anos de vivência urbana, a ignorar os moradores e trabalhadores em situação de rua. Os invisíveis das cidades, são, na realidade, personagens cruciais para nossa atividade de pensadores urbanos […]” (p. 45).
A terceira e penúltima crônica sobre a qual quero neste texto relatar intitula-se “Memória das Coisas”. Como vimos, os lugares de memória estão presentes nas cidades e a memória está presente em nós e nas coisas. É verdade, que como apresenta Atique, os objetos em si não possuem essa faculdade humana usada no presente para nos constituir sobre quem fomos e quem desejamos/planejamos ser.
Porém, quando escolhemos guardar determinados objetos por questões afetivas, porque nos lembram algo que não desejamos esquecer, inferimos a eles a memória. Não à toa, nossos lares estão repletos de objetos que fazem sentido para nós, significados por nossa própria memória e expostos em nosso lar. Portanto, “quem faz a curadoria do que queremos guardar e do que queremos eliminar somos nós. Se os objetos nos abraçam, parece ser interessante tê-los por perto. Afinal, abraços entrosam, afagam e constroem.” (p. 71).
Por fim, no “A medida do mundo” somos pegos refletindo sobre uma sociedade que mede tudo, mas segue desigual. De fato, as medidas são indispensáveis para a arquitetura, para a engenharia e todas as demais ciências de edificação e planejamento urbano. Ao mesmo tempo, são as medidas também responsáveis pela desigualdade, pelos recortes segregacionistas e pela disparidade espacial de nossas áreas urbanas. “Quantas guerras e quantos conflitos fundiários não existem mundo afora por conta de medidas de fronteiras, de demarcação de limites e da fraude reptícia aplicada ao solo?” (p. 82).
Assim, essas são apenas quatro das diversas crônicas que compõem a obra de Fernando Atique. Textos que são necessários para nós que habitamos as cidades e muitas vezes naturalizamos aquilo que é produto do modo de viver, mas certamente não é natural e muito menos justo. Refletir sobre nossas habitações, cidades, hábitos e edificações é também refletir sobre nós, sobre o que estamos fazendo para mudar as realidades pelas quais passamos todos os dias e como estamos nos comportando diante dos desafios de habitar as cidades.
*Julio Cesar Teles é mestre em história da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Referência

Fernando Atique. Crônicas das calçadas: percepções e emoções de um arquiteto. Organização: Gustavo Curcio. São Paulo, Contente XP, 2024.
Nota
[i] “Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação. Valorizando, por natureza, mais o novo do que o antigo, mais o jovem do que o velho, mais o futuro do que o passado.” (NORA, Pierre. “Entre Memória e História. A problemática dos lugares”. p. 12-13).
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