A sanha privatista da Folha de S. Paulo – II

Imagem: Regina Silveira
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por CÉSAR LOCATELLI

As tarifas médias de energia elétrica para o consumidor residencial subiram 75% acima da inflação desde o início da privatização, este deveria ser o cerne da discussão

Uma enorme foto da iluminada favela Paraisópolis é estampada na capa da edição impressa da Folha de S. Paulo desse domingo, 4/9. A intenção é mostrar os benefícios da desestatização: o fornecimento de luz na região era precário até privatização do serviço, diz a linha fina.

Logo no início, mas lá na página 24, a alegria festiva da capa do jornal é obrigada a encarar a realidade: a última conta de uma moradora de Paraisópolis foi de 380 reais. Helena Santos conta ao jornal: “Hoje eu tenho muito mais conforto (…) Mas fiquei quase um ano sem conseguir pagar a luz, acertei há pouco, e ninguém consegue explicar, pois já fui na Enel perguntar, porque a luz é tão cara”.

Bem escondidinho, no canto inferior direito da página 25, figura o gráfico que deveria ter sido estampado na primeira página. O aumento real, ou seja, o aumento acima da inflação, da tarifa média para as residências foi de 75%. A tarifa em valores nominais, desconsiderando a inflação, foi de 76,3 reais por megawatt-hora para 643,1 reais.

Em resumo, a principal promessa não foi cumprida. Não foi e não será com a privatização da Eletrobras. Diversos especialistas em energia elétrica apontam que as tarifas subirão por conta da transferência do controle da empresa à iniciativa privada.

“O aumento da tarifa de energia está no DNA da proposta aprovada. Ela retira do consumidor o benefício atualmente usufruído pela geração mais barata de usinas hidrelétricas amortizadas. Permite que a Eletrobras venda essa energia por valor que pode atingir até três vezes o valor atualmente pago pelo consumidor”, afirmam os especialistas Maurício Tolmasquim, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética, e Nelson Hubner, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica.

Além de ouvir Helena Santos, a Folha ouviu Elena Landau, que foi a diretora do Programa Nacional de Desestatização do governo de Fernando Henrique Cardoso, que hoje apoia a candidatura de Simone Tebet: “O modelo que está aí gera a competição que gostaríamos? Não dá para reduzir tarifa? A gente está dando subsídio para quem precisa? Qual o objetivo maior da transição energética brasileira? Essas discussões de fundo não acompanharam a privatização e estão sendo empurradas com a barriga.”

Elena Landau, no entanto, parece não ter feito essas mesmas perguntas durante sua gestão frente ao programa de desestatização. Aloysio Biondi cita Elena Landau em seu livro (trecho reproduzido a seguir), O Brasil privatizado: Um balanço do desmonte do Estado, de 1999.

“Numa sexta-feira, cinco dias antes do leilão de ‘privatização’ da Cemig, empresa de energia de Minas Gerais, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto revolucionário. Por ele, o BNDES ficou ‘autorizado’ a – leia-se ‘recebeu ordens para’ – conceder empréstimos também a grupos estrangeiros. Reviravolta histórica – e inconcebível. Criado para dar apoio ao desenvolvimento nacional, o banco estatal se concentrou inicialmente no financiamento a projetos de infraestrutura e, posteriormente, como instrumento de política industrial, recebeu a incumbência de criar condições de competição para grupos nacionais. Para cumprir esse papel, o BNDES estava proibido por lei de financiar empresas estrangeiras. O decreto presidencial de 24 de maio de 1997 escancarou os cofres do BNDES às multinacionais, para que comprassem estatais. Isso ao mesmo tempo que o banco continuava proibido de conceder empréstimos exatamente às estatais brasileiras, incumbidas dos setores de infra-estrutura e básicos. Na quarta-feira seguinte, um grupo norte-americano comprou um bloco de um terço das ações da Cemig por 2 bilhões de reais, com metade desse valor financiado pelo BNDES . Pois é”.

“A submissão do governo brasileiro aos interesses de outros países culminou com esse ‘arrombamento’ do BNDES pelas multinacionais. Mas essa submissão estava presente no processo de privatizações há muito tempo – sempre com imensos prejuízos aos interesses do país.

Exemplos: (1) Energia elétrica – às vésperas do leilão da Light, o governo brasileiro cedeu a uma série de pressões dos ‘compradores’ em potencial. Coube a Elena Landau, diretora de desestatização do ‘BNDES, e posteriormente diretora de um banco estrangeiro, anunciá-las na linguagem complicada de sempre, para evitar que a opinião pública se apercebesse da gravidade das decisões.

(a) Tarifas – enquanto dizia que as tarifas seriam reduzidas para beneficiar o consumidor, o governo já havia concordado em reajustá-las todos os anos, de acordo com a inflação medida pelo IGP – DI (isto é, o governo concedeu reajustes automáticos, indexou). Prazo previsto para essa indexação durar: cinco anos. Prazo anunciado por Elena Landau: oito anos. Mais três anos de reajuste automático.

(b) Tecnologia – foi concedida ‘liberdade’ para os compradores adotarem a tecnologia que bem entendessem. Em bom português, o que isso significava realmente? Tecnologia é sinônimo de equipamento. Então, o que o governo deu foi liberdade para a Light e outros futuros ‘compradores’ adotarem tecnologia de suas matrizes, fornecida, é óbvio, pelas fábricas de seus países de origem. Essa concessão trouxe a consequência previsível: as empresas “privatizadas” passaram a importar maciçamente equipamentos, peças, componentes. ‘Quebraram’ a indústria nacional. E ‘torraram’ dólares, contribuindo para a crise futura do real.

(c) Endividamento – outra ‘liberdade’ concedida aos compradores: decidirem livremente os meios de financiar seus investimentos futuros, isto é, desapareceu a exigência de que as multinacionais trouxessem capital próprio para aplicar no país. Elas puderam recorrer a empréstimos no mercado mundial, aumentando o endividamento e o pagamento de juros pelo Brasil. Outro fator de derrocada do real.

(d) Passa-moleque – finalmente, a senhora Elena Landau foi incumbida de noticiar, também, que o governo havia abandonado o modelo que sempre divulgara para a privatização das empresas de energia. Até então, assegurava-se – inclusive ao Congresso Nacional – que o governo participaria ativamente da gestão da administração das empresas privatizadas. A reviravolta: o governo desistia de ser cogestor, para concentrar-se no papel de fiscalizador do setor. Autonomia total para as multinacionais agirem de acordo com seus interesses. E de seus países.

(e) Quem manda no país – com as privatizações, o governo poderia até extinguir o Ministério da Energia, pois ele perdeu qualquer função. Como assim? Também inacreditavelmente, toda a política energética do Brasil passou a ser decidida por uma espécie de ‘condomínio’, como diz o governo, formado pelas empresas de energia agora privatizadas, ou “operadoras”… Seu nome? Operador do Sistema Nacional – ONS . Um ‘condomínio’ que, ao contrário do que os brasileiros pensam, não ficou responsável apenas pelo sistema de transmissão de energia, e do qual a opinião pública veio a tomar conhecimento por causa do ‘apagão’ de março de 1999. Seus poderes são totais: o “condomínio” de operadoras substituiu o governo e passou a decidir onde, quando e como devem ser construídas usinas, quais as regiões prioritárias etc. O problema de tarifas e qualidade de serviços ficou com a Agência de Energia Elétrica, do governo. O resto, com a ONS , das operadoras. Para que Ministério? O governo não manda mais nada mesmo. Nem governa mais.” (p. 57 a 59).

*César Locatelli é mestre em economia pela PUC-SP.

Para acessar o primeiro artigo da série clique em https://dpp.cce.myftpupload.com/a-sanha-privatista-da-folha-de-s-paulo/

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES