Cumplicidade sórdida, sangrenta e financeira

Imagem: Natalya Letunova
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Por CLAUDIO SERGIO INGERFLOM*

A linha de frente já não separa esquerda e direita, mas democráticos de restauracionistas – um eixo que une desde teóricos do Kremlin até militantes neofascistas europeus na mesma batalha cultural contra o legado das Luzes

A história que vou contar não é a do maravilhoso novo mundo amoroso imaginado pelo “sonhador absoluto”, como Andrés Breton chamou Charles Fourier, visionário utópico, autor do livro com esse título. É outra história, não de amor, mas de cumplicidade sórdida, sangrenta e financeira.

No passado dia 6 de agosto, 80.º aniversário do inútil e cruel bombardeamento de Hiroshima, dois personagens reencontraram-se no Alasca, onde o clima tem semelhanças com eles, numa cidade chamada Anchorage – que, se passarmos para o português, poderia sugerir aos incrédulos uma “ancoragem”: estabilizar o barco, ou seja, a guerra contra o povo ucraniano.

Tapete vermelho e sorrisos. Mas um voltou com a alavanca que comanda a âncora, licença auto-concedida para assassinar civis ucranianos diariamente, enquanto o severo xerife que atuava como interlocutor partiu sem âncora, sem vela, sem leme, como um adolescente abandonado pelas evasivas de um amor parcialmente não correspondido.

A longo prazo, seus interesses são contraditórios. No momento, o adolescente atordoado e o dono da âncora têm em comum a consideração de que a Ucrânia é apenas um dano colateral: o que está em jogo vai muito além. Por isso, russos, europeus e americanos afirmam que, para eles, esta guerra é “existencial”, é “essencial” e afeta toda a humanidade. O conflito de fundo opõe duas famílias políticas e morais históricas.

A novidade é a composição inédita e heterogênea, bem como os objetivos, daquela que hoje tem o vento a seu favor. É sobre ela que trata esta nota. A essa família pertencem os dois que se encontraram no Alasca. Parecem um casal, mas num casamento aberto. A monogamia na política nunca esteve na moda. É sempre poligamia por cálculo. Até que um dia… tudo explode.

Reacionários de todos os países: uni-vos!

Há um quarto de século, as elites e os líderes russos vinham apresentando a “Rússia ortodoxa” como a única encarnação civilizacional de uma figura divina, uma Nêmesis moral e indignada punindo a “civilização ocidental” por sua “degradação moral” e restabelecendo a ordem “natural” e os “valores tradicionais”. Mas ocorreu um milagre: nada menos que os Estados Unidos se uniram à “Cruzada”.

Nasceu a internacional moralista, política e militar, combatendo não mais o capital, como outrora propôs a Internacional operária, mas dirigida contra todas as conquistas que as sociedades alcançaram enfrentando os poderes despóticos ao longo de vários séculos. EUA, Rússia e a extrema direita mundial – uma nova velha Santa Aliança, como a que, a pedido do czar Alexandre I, as monarquias formaram em Viena há 210 anos, contra o liberalismo político e em defesa de valores políticos, morais e religiosos arcaicos.

Hoje, o tema principal é a “mudança de época”. Ele é acompanhado por uma palavra onipresente, civilização. Mas quão profunda pode ser a transformação que os novos cruzados buscam?

De acordo com o documento do Departamento de Estado de 27 de maio passado, intitulado “A necessidade de aliados civilizacionais na Europa”, os laços estreitos entre os EUA e a Europa baseiam-se em “uma cultura e uma fé compartilhadas, […] em um patrimônio civilizacional comum”. A dívida intelectual dos EUA para com a Europa limitar-se-ia a uma tradição que remonta a Aristóteles e São Tomás de Aquino, plasmada nos “direitos inalienáveis concedidos aos seres humanos pelo Criador”.

É um hábito da extrema direita: cristianizar Aristóteles através de Tomás de Aquino, como se no século IV a.C. o Estagirita tivesse fundado na lei divina a ordem social “natural”, com a correspondente superioridade “natural” de uns sobre outros, postura que será a de Aquino, mas dezessete séculos mais tarde.

O Departamento de Estado ataca as democracias europeias e nomeia seus aliados civilizacionais: o Rassemblement National de Marine LePen, na França, o Alternative für Deutschland, na Alemanha, e o PiS (Lei e Justiça), na Polônia. Três partidos cujas precauções retóricas não conseguem esconder o racismo, o antissemitismo e a nostalgia nazista de seus quadros.

O objetivo é esterilizar politicamente a União Europeia, transformando-a em um mero aparelho de gestão, conforme definido pelo projeto The Great Reset (o grande reinício), apresentado em março à Casa Branca pela conservadora Heritage Foundation, pelo Mathias Corvinus Collegium, laboratório de ideias do governo húngaro, e pelo ultraconservador think tank Ordo Iurisque, do PiS.

Este documento acusa a União Europeia de apoiar “conceitos banais e nebulosos como diversidade, o respeito pela liberdade, os direitos e a dignidade, o Estado de direito, a igualdade, o pluralismo político, a separação de poderes, a democracia, a proteção das minorias e o respeito pela sociedade civil”, bem como de restringir na internet opiniões sobre temas como imigração, religião ou aborto, classificando-as como “discurso de ódio” ou “conteúdo discriminatório”.

Os aliados civilizacionais europeus de Vladimir Putin

De acordo com “O grande reinício”, é necessário restaurar na Europa os “valores tradicionais e nacionais” como a “família” e a “coesão religiosa”, para o que se deve transformar a União Europeia numa associação de “nações cristãs como a Hungria”. A referência a este país não é casual: o seu primeiro-ministro, Viktor Orbán, é aliado tanto de Donald Trump como de Vladimir Putin. Bancos sob o seu controle concederam empréstimos milionários aos partidos de extrema direita Vox e Rassemblement National. Um olhar sobre estas alianças mostra onde passa hoje a fronteira entre o neofascismo e a democracia.

Em 20 de maio, o Centro Nacional Russo, criado por Vladimir Putin, organizou um encontro com jornalistas e blogueiros estrangeiros para debater entre “especialistas” quatro temas, dois dos quais eram “a imagem e a importância de Vladimir Putin no exterior” e “a influência da Rússia nos processos de outros países”.

Entre os nove convidados estava Franck Pengam, blogueiro francês de extrema direita, obcecado por supostas conspirações internacionais lideradas por judeus para se apropriarem do planeta, que descreveu Vladimir Putin como “Salvador do mundo” e “Katechon” (aquele que impede a chegada do Anticristo, segundo o apóstolo Paulo). Alain Soral, também presente e outrora braço direito de Marine LePen, já havia estado em 2016 no fórum moscovita: “A nova era do jornalismo”, onde agradeceu “a Vladimir Putin por financiar minha visita, pois fui convidado, e muito bem convidado”.

Antissemita compulsivo, acusador sistemático dos “negros e muçulmanos parasitas” que vivem às custas dos franceses “brancos”, Alain Soral declarou em 19 de maio passado que Vladimir Putin é o único capaz de “impedir o triunfo definitivo do mal na Terra” e denunciou a “aliança diabólica” entre “os judeu-nazistas ucranianos e os judeu-nazistas sionistas e israelenses”.

Recentemente, Alain Soral parabenizou Donald Trump por sua cruzada contra “os antifascistas”, acrescentando que “se os antifascistas são o problema, isso significa que a solução são os fascistas”, reivindicou Benito Mussolini e anunciou a próxima “revolução fascista no verdadeiro sentido da palavra”.

Em março de 2024, seis “patriotas” franceses foram convidados a Moscou como observadores internacionais para legitimar a reeleição de Vladimir Putin. Entre eles: Franck Pengam, Yvan Benedetti – presidente da L’Œuvre française, movimento petainista fundado em 1968 por Pierre Sidos, um antigo colaborador dos ocupantes nazistas – e o ex-general Dominique Delawarde, convidado regular da TV russa e assíduo da Civitas, organização de católicos integristas, proibida em 2023 por suas homenagens ao regime nazista.

Os novos Lebensraum (espaço vital)

O mundo ficou surpreso quando Donald Trump anunciou que “Precisamos da Groenlândia por razões de segurança nacional. Nem sequer sabemos se a Dinamarca realmente tem direito legal sobre esse território. Mas se tiverem, deveriam renunciar a ele, porque precisamos dele para a segurança nacional. É essencial para proteger o Mundo Livre […] É provável que as pessoas votem pela independência ou pela união com os Estados Unidos […] É essencial para nossa segurança econômica e nacional”.

Menos surpreendente foi outra frase sua: “O Canal do Panamá é vital para o nosso país”. Poucos ficaram surpresos ou estranharam quando Putin se limitou a alertar que a Rússia já está muito presente no Ártico e seu ministro das Relações Exteriores aconselhou Donald Trump a “ouvir” o povo da Groenlândia “como a Rússia fez com os habitantes da Crimeia, Donbas e Novorossiia” e nem pestanejou diante da pretensão trumpista sobre o Panamá: quem cala consente.

Obviamente, chamam a atenção o paralelismo e a ousadia dos discursos: Donald Trump, assim como Vladimir Putin, questionam a legalidade de realidades geopolíticas antigas, estáveis e pacíficas – Groenlândia – e de governos democraticamente eleitos – na Ucrânia – cujos territórios desejam colonizar. Para disfarçar a conquista imperial com um falso manto jurídico, o ministro russo aconselha “ouvir” os futuros colonizados, mas com que direito impõem a uma população estrangeira essa obrigação, ou a de votar em eleições fraudulentas?

Outra coincidência linguística não é menos inquietante: os EUA, assim como a Rússia, usam em relação à Groenlândia, Panamá e Ucrânia os adjetivos “essencial”, “vital” e “existencial”. Ou seja, reativaram o Lebensraum, conceito-chave do nacionalismo imperial alemão, inventado no final do século XIX, mas central na retórica e na política de Hitler para justificar as agressões que culminaram na Segunda Guerra Mundial.

No caso russo, o conceito Lebensraum (zhiznennoe prostranstvo) é objeto de livros e debates. Os setores nacionalistas e reacionários que tomam emprestado do mapa político americano a denominação “paleoconservadores” com a qual se autodefinem, bem representados no Kremlin, defendem abandonar toda tentativa de construir relações de compreensão mútua com a Europa Ocidental, uma “civilização” já entrando, segundo eles, em degeneração terminal.

A atual ofensiva dos EUA contra as democracias europeias levou a Rússia a propor o abandono da fórmula “Ocidente coletivo”, que até agora designava o inimigo, e sua substituição pela de “Europa coletiva”, berço dos valores mais nefastos. Eles propõem deixar de prestar atenção à Europa, exceto no registro militar, para constituir um novo bloco geográfico, econômico, político e cultural: a Eurásia.

Conscientes da dificuldade, chamaram a essa “ideia russa” de “ideia-sonho”, mas apresentada como objetivo prioritário. Para isso, propõem virar a página dos últimos três séculos, nos quais a Rússia correu atrás da Europa, e “siberizar-se”.

A Eurásia é concebida como um espaço civilizacional consolidado sob a liderança da Rússia, porque a Rússia é, em si mesma, um “Estado civilizacional”, uma “civilização única” não só por seus próprios valores, mas porque, como escreve Serguei Karaganov, provavelmente o ideólogo mais ouvido por Vladimir Putin em matéria de relações internacionais, a Rússia é uma “Civilização das civilizações, chamada a unir as civilizações da Grande Eurásia e do mundo” e escolhida por Deus: “Devemos cultivar esta convicção: todos nós, russos russos, russos tártaros, russos buriatos, russos yakutos, chechenos, judeus, kalmukos, nenets e todos os outros, somos um povo escolhido pelo Altíssimo para salvar o país e a humanidade neste momento tão crucial da história”.

A Rússia começou a colonizar a Sibéria e a expandir-se para o leste no século XVI. A consciência de ser um país com uma forte presença asiática é antiga na Rússia. No entanto, a atual virada para o Oriente é igualmente a confissão de sua não integração à Europa, que a Rússia buscava há quatro séculos. A virada também traduz a angústia de seus líderes, uma fuga para frente para escapar da situação de mero fornecedor de petróleo e gás, protegido por armamento nuclear.

No entanto, além dessas considerações e do grau de viabilidade desse novo milenarismo, não fica claro como seus autores imaginam o futuro em caso de sucesso. Um futuro mundial pacífico? Mas por que a Índia e, sobretudo, a China aceitariam ser vassalas? Por que as ideias europeias de liberdade, tolerância e pluralismo deixariam de seduzir os povos privados de democracia? Que posição adotará essa Eurásia se o conflito entre os EUA e a China se agravar? Por que os Estados Unidos limitariam seu espaço vital ao canal do Panamá e à Groenlândia? Por que não haveria conflito entre os EUA e a Eurásia? Será que esquecemos que a Primeira Guerra Mundial eclodiu por causa da divisão das colônias?

A restauração político-moral

O que a administração americana e o Grande Reinício pretendem através da “Aliança Civilizacional” coincide fundamentalmente com o que os ideólogos do Kremlin chamam de “Paradigma Civilizacional Russo”. A coincidência, a preeminência e a recorrência tenaz da palavra civilização em ambos os projetos indicam que não se trata de uma mudança simplesmente política, nem da mera aspiração a um mundo multipolar – que na realidade já existe como tal –, mas sim de aniquilar os fundamentos civilizacionais.

De ambos os lados, com algumas nuances e nomes diferentes, concentram o fogo sobre a “degradação moral” euro-ocidental que se expressaria na secularização, no multiculturalismo, no pluralismo, no pensamento crítico, etc.

Entrevistado pela revista Le Grand Continent, Serguei Karaganov foi claro: “Seria benéfico para a Rússia que surgisse um eixo transatlântico «iliberal», já que o liberalismo chegou ao fim de seu ciclo – assim como antes o comunismo e o nazismo”. Para substituir o liberalismo político, ele propõe – tomando o cuidado de especificar que está falando da Rússia, mas o que ele projeta é o modelo de pós-liberalismo que ele prefere – um regime em que aqueles que aspiram “fazer parte da classe dominante russa devem compartilhar esses valores e essa política, promover essa identidade”.

Aqueles que se recusarem a fazê-lo devem ser relegados a uma espécie de semi-isolamento”. Hoje, explica ele, os substitutos da ideologia correta se espalham pelo mundo moderno. Eles são “a democracia como religião, o LGBT, o Me Too, o feminismo, o Black Lives Matter, etc.”. Devemos nos libertar da “infecção de seus pseudovalores”.

A guerra contra a Ucrânia conseguiu, pelo menos, que aqueles que na Rússia concordam com esses pseudovalores, ou seja, a “imundície (shval)” da sociedade, tenham fugido para o Ocidente. A Rússia poderia considerar relações amigáveis com a Europa apenas se esta “se reconectasse com sua cultura, seus valores tradicionais e formas mais autoritárias de governo”, recuperando assim os “valores políticos normais”.

É verdade, acrescentou, que “o autoritarismo não é a panaceia. Mas…”. Em outro de seus escritos, fica claro o sentido desse “mas”: “politicamente, não estamos construindo uma democracia no sentido ocidental moderno, mas uma meritocracia de liderança: o poder dos melhores”. Essa nova ordem não é, portanto, a superação positiva do liberalismo político.

É a expressão mais completa das injustiças, privilégios, sistemas de castas, despotismo e ausência de liberdades elementares, ou seja, de tudo aquilo contra o que se insurgiram o parlamento inglês no século XVII, o povo francês em 1789, 1848 e 1871, os operários e camponeses russos em 1905 e 1917, bem como Voltaire, Rousseau, Kant, Castelli, Moreno, Ingenieros…

Parafraseando Serguei Karaganov: não, o liberalismo político não é uma “panaceia”, mas é o sistema em que melhor se pode agir para atenuar suas deficiências, conquistando mais liberdade, mais representatividade social no poder, mais igualdade e mais fraternidade, no político, no econômico, no moral e no cultural.

América Latina

No Relatório coletivo do final de 2023, elaborado por vários especialistas a pedido do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, e que hoje funciona como doutrina do governo, lemos que “a América Latina é indiscutivelmente uma das prioridades da política russa num futuro previsível […] Na América Latina e no Caribe, a Rússia conta com vários bastiões, em primeiro lugar, Estados politicamente próximos da Rússia (Cuba, Nicarágua, Venezuela); um gigante regional como o Brasil; e outros grandes países como a Argentina e o México. […] A ênfase nas relações deve recair sobre o desenvolvimento de laços econômicos […] e a promoção de narrativas sobre temas globais até o desenvolvimento de posições comuns […]. Sob certas condições, alguns países latino-americanos podem ser considerados, com o consentimento de seus governos, como territórios para o uso das Forças Armadas russas”.

Em outras palavras: para Moscou, trata-se, por um lado, de alcançar um compromisso ideológico e, por outro, de comprometer a América Latina em um eventual conflito militar contra os Estados Unidos.

O discurso oficial russo, assim como o único discurso não oficial permitido, apropriou-se de dois capítulos da linguagem da esquerda mundial: o anti-imperialismo e o anticolonialismo. Mas, para a esquerda, esses dois momentos não estão – ou não podem estar – isolados de uma concepção global que inclui a luta contra o neoliberalismo, por um futuro que supere o sistema capitalista, pelas liberdades políticas e pela justiça social, contra o racismo, pelos direitos das mulheres, pela superação dos limites da democracia liberal – e não sua rejeição, porque é a democracia que permite fazer política e sabemos muito bem o que buscam e quem são aqueles que aspiram proibir a política – etc. etc., ou seja, todo um programa inaceitável para o governo russo, que está perseguindo e condenando a penas de prisão muito severas – de 7 a 24 anos – aqueles que ousam defender esses slogans na Rússia. Nessas condições, o anti-imperialismo russo é apenas um disfarce que esconde suas próprias ambições hegemônicas e ditatoriais.

A esquerda é uma família política ampla e plural. Aqueles que nos reconhecemos nela aderimos a sensibilidades diversas, mas não podemos transigir no que diz respeito aos fundamentos de ideias que nos é comum. Qualquer solidariedade política com o atual governo russo implica a aceitação de uma ideologia coerente, radicalmente estranha à cultura da esquerda.

Hoje fala-se muito, e com razão, das batalhas culturais. No nosso continente, como no resto do planeta, traça-se uma nova e decisiva linha que separa os atores. Uma linha que atravessa a política, a cultura, a moral, a ética…

De um lado estão todas as mulheres e todos os homens que se reconhecem no sistema democrático, desde aqueles que não desejam mudar o status quo até aqueles que aspiram aprofundar a democracia, ampliando-a para a esfera social e para o reconhecimento da heterogeneidade da população, o que em nosso continente inclui especialmente os povos originários. Do outro lado da trincheira estão aqueles que se mobilizam para aumentar as desigualdades sociais e étnicas, o autoritarismo, a repressão política, a limitação das liberdades, a difamação e o ódio.

Para que essa trincheira adquira consistência, é necessária uma mudança nos posicionamentos tradicionais que isolam politicamente aqueles que atualizam o obscurantismo e estão dispostos a matar por ideias. É uma política que terá sucesso se cada responsável se tornar generoso, sob pena de estar entre as primeiras vítimas, e se, na pedagogia e nas medidas econômicas, sociais e políticas, essa generosidade se estender às maiorias populares.

É o que chamamos e cantamos com alegria: cuidar “dos louros que conquistamos”. Para que possamos pensar sem medo, falar e agir sem sermos punidos, amar quem queremos, não temer que seu parceiro te mate impunemente – é o que acontece hoje na Rússia: se o estuprador ou o assassino se alistar por seis meses para ir à guerra, ele é anistiado –, exercer seu direito à greve porque ele existe, não odiar, mas respeitar o outro, entender sua verdade, mesmo que não coincida com a sua e que todos e todas compreendamos que é melhor intervir na política, porque, embora possamos não o fazer, ela sempre se intromete na sua vida… Simplesmente, para viver numa sociedade antagônica àquela que, de um lado e do outro do planeta, propõem os restauradores da velha ordem moral e política.

*Claudio Sergio Ingerflom, ex-diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), França, é profesor de história na Universidade Nacional de San Martín, Argentina.

Tradução: Daniel Aarão Reis.

Publicado originalmente na “Revista Ñ, Clarín“, sob o título “O Grande Reinício: Rússia inquieta com sua nova ordem”. Modificado ligeramente pelo autor para a edição brasileira.


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