Por SÉRGIO BRAGA*
Breve homenagem ao professor de sociologia e ciência política da Unicamp**
No contexto das comemorações dos 50 anos do PPGCP-IFCH, colegas pedem um pequeno depoimento sobre o “Grupo de Estudos sobre o Pensamento de Louis Althusser”, que funcionou no instituto, e do qual participei como sócio-fundador, de novembro de 1987 a aproximadamente dezembro de 1993, antes de ir para Curitiba, para fazer concurso para professor de ciência política na UFPR, cidade na qual permaneço até os dias de hoje.
O grupo continuou depois sem a minha presença até não sei que data precisamente, pois, após ir a Curitiba, deixei de acompanhar os trabalhos do grupo com a mesma frequência, devido a outras atividades e afazeres.
Em primeiro lugar, gostaria de louvar a comissão de comemoração do cinquentenário por homenagear Décio Saes. Na minha modesta opinião, Décio Saes é um dos grandes cientistas sociais e políticos brasileiros que tive a oportunidade de conhecer e de estudar a obra, do mesmo nível que outros grandes professores com os quais tive aula ou que passaram pelo IFCH, tais como José Murilo de Carvalho, Luciano Martins, Juarez Rubens Brandão Lopes, Bolívar Lamounier, dentre outros.
Além do mais, nos anos 1980 e 1990, Décio Saes dedicou-se intensamente ao curso de graduação no IFCH-Unicamp, sendo, juntamente com Armando Boito Júnior, um dos grandes pólos de atração para estudantes com vocação para a pesquisa séria em ciência política, que posteriormente se tornaram pesquisadores e pós-graduandos no instituto. Por isso, muitos pesquisadores que depois tiveram uma bem-sucedida trajetória acadêmica foram orientados do Décio Saes na graduação ou pós.
Destaco, assim de memória, os hoje professores Adriano Codato, Angelita Matos Souza, Francisco Farias, Paulo Roberto Neves Costa, Renato Monseff Perissinotto, dentre outros. Portanto, são mais do que merecidas as homenagens, e faço votos para que elas se desdobrem em outras iniciativas visando a preservação da memória e do legado científico deste grande professor e pesquisador.
E ninguém mais qualificado para isso do que o Prof. Francisco Farias que, além de ex-orientado do Décio Saes, produziu relevantes trabalhos desenvolvendo e aprofundando a problemática de análise da formação social brasileira por ele inaugurada, sendo que alguns deles foram publicados no site A Terra é Redonda.
Já falei algo sobre a gênese do grupo em meu memorial para a promoção para professor titular, que está disponível na internet. Esse grupo surgiu num contexto em que eu estava elaborando meu projeto de Iniciação Científica para a Fapesp, e fortemente envolvido na leitura das obras de Nicos Poulantzas, além de estar cursando o primeiro ano da graduação em ciências econômicas, já que naquele tempo era possível frequentar dois cursos de graduação simultaneamente.
Como eu estava empolgado com a leitura de Nicos Poulantzas, sugeri a dois alunos que eram mais próximos a Décio Saes (de quem nunca fui muito próximo do ponto de vista pessoal, sempre mantendo uma relação de respeitosa deferência e distância para com nosso ilustre professor) para organizamos um grupo e nos aprofundarmos no estudo da obra de Nicos Poulantzas, pois considerava insuficientes as leituras que tínhamos da obra do autor nos cursos de graduação.
Cerca de duas semanas depois, o Pedro e Valdir (eram os nomes dos alunos) voltaram com a resposta positiva de Décio Saes, mas reformulada: Décio sugeriu estudarmos o “pensamento althusseriano” (autor que teve grande influência sobre Poulantzas em sua produção inicial), desde os primeiros textos elaborados por Althusser, publicados em Pour Marx, com foco em seus textos e de seus colaboradores que tratavam de teoria da história e de materialismo histórico.
Eu não me julgava com maturidade suficiente para empreender uma leitura sistemática de Althusser já no terceiro ano do curso, e tendo inúmeros outros afazeres simultâneos, mas mesmo assim embarquei na proposta do Décio, pois julgava uma oportunidade de exercer uma atividade intelectual extracurricular, fora das atividades regulares do curso, bem como ter a oportunidade de conviver com um pesquisador experiente que poderia nos orientar mais de perto em nossa formação acadêmica.
Eu mal imaginava que começava ali uma grande aventura intelectual, que seria minha principal atividade nos anos subsequentes. Fazíamos reuniões com frequência média de 15 dias e/ou três semanas a depender do período do ano e dos afazeres dos membros do grupo, e discutíamos os textos selecionados para leitura. Numa primeira fase do grupo, frequentavam as reuniões o Pedro e o Valdir e, posteriormente, a hoje professora Angelita Matos Souza veio incorporar-se ao grupo.
Posteriormente, também participaram regularmente das reuniões Luciano Martorano, Francisco Farias, e, pasmem os senhores e as senhoras, o hoje “articulista” da Folha de S. Paulo e celebridade jornalística, Celso de Barros, por um curto período, o que demonstra que o ambiente do grupo era sério, mas não sisudo.
Desde o início das reuniões, eu gravava e transcrevia os textos, inclusive tenho a transcrição ou as notas resumidas de todas as reuniões e tinha as fitas gravadas, mas estas se perderam nas mudanças ou se deterioraram, o que é uma pena pois revelavam uma faceta pouco conhecida do Décio Saes que era o seu senso de humor, que algumas vezes tinha como alvo alguns dos “althusserianos” mais ortodoxos, bem como alguns de seus críticos mais furibundos e notórios. Essas anotações estão contidas em seis cadernos manuscritos, que ainda hoje consulto, buscando inspiração para novas leituras ou interpretação de leituras.
Na verdade, embora fosse dedicado principalmente a estudar o pensamento dito “althusseriano” ou estrutural-marxista, como prefiro dizer, discutimos diversos outros autores, inclusive muito críticos ao pensamento de Louis Althusser e seus epígonos (Étienne Balibar etc.), e mesmo ao marxismo em geral, tais como Raymond Aron, Edward Thompson, José Arthur Giannotti, Carlos Nelson Coutinho, Fernando Henrique Cardoso, Jürgen Habermas, Perry Anderson, dentre outros, em função da posterior elaboração, pelo Décio Saes, numa segunda fase de funcionamento do grupo, do artigo que foi publicado no volume 2 da História do Marxismo no Brasil, organizado por João Quartim de Morais.
Além de sua enorme paciência, me impressionava a facilidade com que Décio Saes destrinchava e analisava criticamente os fundamentos (e fragilidades lógicas) de textos clássicos de vários nomes consagrados das ciências humanas autóctones. Deixei devidamente consignada essa admiração pelo nosso grande mestre e professor da graduação na introdução de minha dissertação de mestrado, quando ela foi publicada.
Há vários episódios relacionados ao grupo e sobre os quais eu poderia discorrer com mais detalhe, mas é inviável fazê-lo aqui. Por exemplo, eu sempre quis “abrir” o grupo com vistas a incorporar mais gente nas discussões, mas Décio Saes sempre preferiu manter um grupo pequeno e pouco institucionalizado. Décio também sempre teve uma preferência por artigos teóricos, e gostaria que mantivéssemos esse padrão enviando artigos de alto coturno teórico para publicações acadêmicas, especialmente a revista Critica Marxista.
Eu sempre fui mais modesto, ou realista, e procurei iniciar minha trajetória publicando artigos empíricos ou comentários a autores (resenhas), onde os riscos de erros são menores e os retornos intelectuais de curto prazo são maiores. Décio Saes também era mais “ortodoxo” em sua adesão e em seu compromisso com o “althusserianismo”, eu sempre fui mais flexível e influenciado por outras correntes.
Sempre gostei muito de Bertrand Russell, em filosofia, dos sistêmicos e pluralistas em ciência política, Hans Kelsen em Direito etc. e sempre achei que o estrutural-marxismo poderia se enriquecer do diálogo crítico com essas correntes, sem incorporar de contrabando nenhumas de suas limitações ou amarras ideológicas, como, por exemplo, a apologia das democracias capitalistas (ditas “poliarquias”) ou do imperialismo norte-americano ou dos Estados burocráticos-autoritários de tipo soviético como modelos ou formas de sociabilidade ideais e derradeiras de organização social humana, rompendo assim com o campo do pensamento crítico.
Na época, eu também estava fortemente influenciado pela obra do economista Mário Possas e sua trilogia sobre a dinâmica das economias capitalistas, onde o autor buscava renovar a análise marxista do sistema econômico capitalista através da incorporação parcial das contribuições das tradições pós-keynesiana, schumpeteriana e outras correntes heterodoxas de teoria econômica. Ainda nos dias de hoje mantenho uma grande admiração pelos autores acima citados, dentre outros.
Salvo melhor juízo, Décio Saes sempre percebeu estes “desvios”, mas jamais fez nenhuma cobrança de fidelidade ou militância ideológica irrestrita a favor de uma suposta ortodoxia “althusseriana” (ou igrejinha acadêmica, diriam as más línguas) sempre me dando uma certa liberdade, assim como a outros de seus orientados, para seguirmos nossos rumos. Daí o respeito e a consideração que o Décio Saes sempre mereceu de pesquisadores situados em outros campos teóricos, como inclusive pode ser verificado em depoimentos que constam da internet, sempre reconhecendo a integridade acadêmica e intelectual do Décio Saes, bem como sua exemplar atitude científica.
O grosso das discussões teóricas travadas no grupo estão nos artigos publicados por Décio Saes no período, destacando-se alguns textos fundamentais como “Marxismo e história”, publicado no Vol. 1 da revista Crítica Marxista, e “O impacto da teoria althusseriana da história na vida intelectual brasileira”, publicado no livro História do marxismo no Brasil – vol. 3 (Campinas, Hucitec/Ed. Unicamp), sob a organização de João Quartim de Morais (IFCH/Unicamp), pp. 11-122. 1998.
As discussões travadas no GT althusseriano também impactaram na minha produção intelectual do período, especialmente os primeiros artigos e resenhas que escrevi e livros que publiquei (cf. especialmente Braga, 1994, 1995, 1996, 2002), embora isso não transparecesse de maneira explícita. E, ainda hoje, me inquietam algumas questões que debatíamos no grupo. Em meu memorial anteriormente citado, detalho alguns desdobramentos da frequência ao grupo em minha produção acadêmica, da época e posterior.
Enfim, os trabalhos do Décio Saes sobre a influência do campo althusseriano na teoria da história colocam uma ampla agenda de pesquisa e reflexão para os marxistas, que está longe de ter se esgotado. A agenda estabelecida pelo Décio Saes em seus estudos de teoria da história e em seu trabalho de análise da formação social brasileira (Saes, 2024) e análises comparativas (Saes, 2007), ainda podem inspirar jovens pesquisadores brasileiros em suas investigações e propostas de políticas e intervenções no espaço público.
É claro que se trata de um campo teórico aberto e em desenvolvimento, e que sempre haverá duas linhas em tensão em relação ao legado de Décio Saes: aquelas mais ortodoxas, para as quais “quase tudo está dito”, cabendo às novas gerações de pesquisadores se apropriar de suas contribuições aprofundando e aplicando esse esquema teórico, e aquelas visões mais heterodoxas, para as quais esse legado é um ponto de partida para novas investigações, e que deve ter suas teses sempre desenvolvidas e testadas num trabalho contínuo de novas análises e novos desenhos de pesquisas empíricos e históricos que “realizem” (para usar a expressão de Althusser no texto Sobre o Trabalho Teórico) as ideias fundamentais da ampla agenda de pesquisa e reflexão teórico-metodológica elaboradas pelo nosso grande mestre, procedimentos estes ainda em execução nos dias de hoje por vários de seus ex-orientados e interlocutores.
*Sérgio Braga é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
**Imagem de Graham Joncas: Althusser – Philosophy of the Encounter, cover photo
Versão modificada de artigo publicado no Caderno NEPES, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Piauí.
Referências
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