Depois do dilúvio

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Por TARSO GENRO*

Um cavaleiro apocalíptico, três negacionismos e muitos funerais

Ao contrário do que os formadores ideológicos da grande imprensa rapidamente propagaram, defendendo que a situação de tragédia não é propícia para o debate político sobre o futuro, defendo que é exatamente nos momentos de crise que as pessoas, as classes, as instituições, mostram a sua grandeza e a sua miséria. Sonegar as causas políticas da tragédia gaúcha é sonegar o essencial e ajudar a esconder os crimes e as omissões deliberadas que nos levaram até aqui.

Do ponto de vista do interesse público não cabe indicar quem são os criminosos, o que é uma tarefa da Justiça Penal, mas sim apontar as políticas públicas que permitiram que aqueles que cometeram crimes contra a democracia e a cidade fiquem escondidos nos esgotos das fake news e nas manipulações cotidianas da desinformação deliberada. A devastação é grandiosa e Celi Pinto tem razão quando diz que o dilúvio tem razões políticas.

Rezam a lenda e a Bíblia Sagrada que “as águas do Dilúvio destruíram os iníquos e todas as criatura que viviam na terra, exceto os que estavam na arca. Quando as águas do Dilúvio baixaram, Noé e a sua família saíram da Arca”. Os que saem da arca, depois do dilúvio – aqui e hoje – estão vivos para cumprirem os desígnios de Deus, da história ou dos profetas, mas eles – os que estão vivos – amam, sofrem, lutam e um dia morrerão. Nós morreremos, mas enquanto vivos, temos que falar.

Depois do Dilúvio também é uma pintura a óleo do inglês George Watts, que “apresenta o sol de forma incompleta em 1886 e completa, em 1891”. A história se move em sequências incompletas, como no quadro do inglês – marcado pela meticulosidade britânica: Noé abre a janela da arca e vê que a chuva cessou. O que pensam, os gaúchos de hoje quando as chuvas cessam, sobre as profecias dos negacionistas que conduziram o pensamento de milhões, na modernidade dissolvida pelas águas?

Tomada como símbolo, história ou mito, a situação de Noé (falecido com 950 anos e vivendo por mais 350 anos depois do dilúvio no mundo de um Deus improvável) não enfrentou as três negações que os humanos atuais enfrentam. Depois do nosso Dilúvio, que causou danos e impressões muito mais fortes do que a leitura das versões míticas da Bíblia, acho que devemos repensar a vida e a política.

Na versão bíblica, um Deus vingativo teria dito “multipliquem-se, povoem novamente a terra e exerçam domínio sobre ela”. E depois: “quem derramar o sangue de um ser humano, pelo ser humano seu sangue será derramado, pois ele foi criado à imagem de Deus.” O Deus da Gênesis 9, manda derramar sangue e nega, portanto, o direito de perdoar a quem derrama o sangue dos seus irmãos. Tendo o “verbo” como força letal, o Deus da Gênesis não precisou encarar as três negações que enfrentamos nos dias de hoje.

A visão da Gênesis está largamente superada pelo direito moderno, que é mais eficiente e mais “humano” que a “lei do talião”, que o Deus vingativo recomendou a Noé e aos seus sucessores, pois a lei dos homens julga os conflitos para retomar a coesão social, tanto pela aplicação da lei penal como pela possibilidade do perdão. O Deus mítico, ideal, criado pelos homens ou pela espontaneidade da energia do Universo é sempre maior do que a vida imediata.

Mas Ele não se defrontou com as três negações que nos desafiam: a negação da política, propagada pela mídia dominante, que gerou a deposição inconstitucional da presidenta Dilma Rousseff e abriu as comportas ao fascismo e aos novos políticos da extrema direita, negação principal e decisiva que ao eliminar a política tradicional como um cancro e colocar, em seu lugar, o fascismo e o negacionismo, mutilou o que tem de bom e humano na democracia liberal.

A segunda negação é a Pandemia que – com a política assassina da cloroquina contra a vacina e da respiração ofegante como deboche – ajudou a matar 800 mil pessoas, cujos titulares ainda permanecem soltos e impunes. O negacionismo climático é a terceira negação, que guindou ao topo do imaginário do progresso a destruição ambiental e a criação de novas normas de proteção, não dos humanos, mas dos desastres que aí estão.

Quero dizer, com a menção das três negações, que a dimensão da barbárie universal se derramou sobre o Rio Grande do Sul, não como uma maldição divina, que não só classifica crimes e estabelece as punições, mas que também se estabeleceu de forma consciente – pelo dolo evidente de determinados dirigentes políticos – pela extinção das políticas de manutenção das prevenções e das defesas da cidade contra as cheias.

Porto Alegre, assim, passou a ser uma cidade-teste da gentrificação perversa, da especulação imobiliária, palco dos “síndicos” populistas neoliberais – sem propósito público – incensados pela mídia dominante. Porto Alegre de modelo do Sistema Único de Saúde passou a ser o símbolo da irresponsabilidade na Saúde Pública, pela ausência de uma estratégia sanitária séria na época da Pandemia.

Porto Alegre de cidade que recebeu prêmios internacionais de gestão decente, tornou-se um criadouro de meritocráticos de opereta – educada pela extrema direita empresarial e pela sua mídia servil – que continuam buscando a proliferação dos seus negócios e (como bons neoliberais oportunistas) buscando as proteções do Estado. Porto Alegre vai voltar, mas – se quiser sobreviver – vai ter que varrer nas eleições deste ano o Cavaleiro único do apocalipse que nos afoga e concentra – no seu perfil populista – as três negações que Noé não precisou enfrentar, abrigado que esteve nas palavras do Senhor.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3ReRb6I]


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