Deus cuida de Caetano Veloso?

Imagem: Caleb Oquendo
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Por ANDRÉ CASTRO*

Caetano parece ver que há algo mais profundo na experiência religiosa evangélica do que a imagem de “encabrestados” pelos pastores dominadores e maldosos

Há algum tempo, Caetano Veloso tem publicamente apresentado uma tentativa de aproximação com algumas figuras evangélicas, sobretudo progressistas. Entre elas, destaca-se a relação com o cantor Kleber Lucas, especialmente na regravação da música “Deus cuida de mim”, que compõe a setlist de sua última turnê, junto com Maria Bethânia. Kleber Lucas é um dos maiores nomes históricos do gospel nacional, e a música em questão é uma das mais conhecidas do seu repertório.[i]

Depois de fazer uma versão junto ao cantor gospel, agora cantando a música em sua turnê, surgem alguns comentários de que o louvor no show foi recebido com “estranhamento”.[ii] Os caetanistas, para falar como Luigi Mazza, parecem não ter entendido a ação de seu último defensor do “Brasil idílico de beleza delicada”.[iii]

O caetanismo seria essa negação diante do surgimento da extrema direita que atropelou o projeto democrático popular. Assim, ir a um show de Caetano Veloso torna-se a rememoração do Brasil que deveria ter sido, uma miragem que reconforta os bem-viventes da classe média ilustrada, que viu ruir, sem poder fazer nada, o castelo de cartas do “consenso democrático”. Em volta do velho tropicalista havia se formado certa devoção ao brasil brasileiro, que encontrava nos shows do cantor o seu momento de culto.

O louvor, por certo, os lembrou daquilo que o próprio show tinha a função de fazê-los esquecer por um instante, já que esse Brasil jagunço[iv] os aguardava ao sair da arena, pronto para levá-los para suas casas, mediado pelos aplicativos de transporte. A imagem do evangelicalismo, assim, fica marcada como se fosse aquilo que há de pior no mundo. Aos olhos da intelligentsia, “o bolsonarismo é uma sujeira histórica, formada por gente desqualificada, militares truculentos, evangélicos estridentes. Não é o Brasil de verdade. São pessoas violentas, reprimidas e rancorosas com a ascensão social dos mais pobres.”[v] Precisam, portanto, ser criticados, ridicularizados, e estão condenados à lata de lixo da história.

É claro que essa imagem do evangelicalismo é apenas isso: uma imagem que os bem-pensantes, por certa desfaçatez de classe ou coisa que o valha, criaram para explicar a “gente bruta e mal-educada” que está colocando fogo no seu mundo. Mas Caetano nota outra coisa; o tropicalista explica: “O fato de vir crescendo enormemente o número de evangélicos no Brasil é uma coisa que tem imensa importância para mim. Por isso, vou cantar o amado louvor do pastor Kleber Lucas.”[vi]

Ele também assume que decidiu incluir a música após terminar de ler a autobiografia de Kleber Lucas, que tem o mesmo título da canção. Ao que parece, ele notou, com o auxílio da vida do cantor gospel, que há algo mais profundo na experiência religiosa evangélica do que a imagem de “encabrestados” pelos pastores dominadores e maldosos. Chega a apontar ainda uma possível convivência entre “polarizações” que seria necessário apoiar. Cita um grupo de jovens que conhecia todas as músicas do seu repertório clássico. Ao escutar a canção evangélica, uma delas demonstrou total repúdio. A poucos metros, outra jovem que, sem demonstrar desconforto, pelo contrário, cantou todos os versos do louvor. Ali, diz ele, haveria um “esboço de convivência” que os brasileiros deveriam ser capazes de praticar.

Não haveria muitas razões para o repúdio de uma parte do público à música gospel se a imagem dela não estivesse ligada à nova extrema direita. Ao mesmo tempo, o tropicalista afirma que o que lhe interessa não é a “bancada evangélica”, mas a experiência de fé dos evangélicos que buscam ser a maioria religiosa nacional. Nesse desbalanceamento entre a imagem pública dos evangélicos e a experiência espiritual das parcelas mais periféricas que aderem ao evangelicalismo, parece que o louvor no show tropicalista profanou o que Luigi Mazza chamou de “afago recíproco” entre plateia e cantor, o que, segundo ele, mascara o fato de que nem um, nem outro sabem o que se passa com o Brasil.[vii] Afinal, a divindade que esse louvor conclama é outra, proscrita como inimiga do culto caetanista, que desse modo deixou transtornado os seus fieis. Desfeita a comunhão integral entre plateia e artista, estava exposto no ar o problema do evangelicalismo.

Os evangélicos são um problema, seja no sentido de serem inimigos a serem combatidos, seja como uma questão a ser desvendada. Esse problema aparece em todos os cantos, desde o lançamento de livros sobre história da filosofia por acadêmicos catedráticos até as notícias diárias do jornalismo esclarecido paulista. É um problema que, por não ter solução, continua sendo debatido. Por outro lado, para outra parcela da população, especialmente aquela que vive nos subúrbios das grandes cidades e no interior, os evangélicos estão presentes.

Não são um problema, em nenhum dos dois sentidos já citados. Eles estão por aí, seja na figura de um familiar, de um amigo da escola, da faculdade, trabalho ou até mesmo do próprio leitor hipotético, que pode ser o tão famigerado evangélico. É certo que essa identidade religiosa tornou-se um problema pela primeira vez quando foi reduzida pelo senso comum da grande mídia a interesses econômicos nos anos 90, com a famosa “teologia da prosperidade”, mas ganhou seu estatuto atual a partir de 2016, como parte significativa do que se consolidou como bolsonarismo. É claro que, como todos sabem, essa situação culmina na eleição de 2018. A imagem dos evangélicos é a de conservadores, radicais, bolsonaristas sendo vulgares. Ao mesmo tempo, vemos um crescimento vertiginoso da comunidade evangélica desde os anos 1980, que ganhou novos tons nos anos 2000.

O problema, portanto, não é o evangelicalismo por si só, mas como ele participa da reorganização da direita no Brasil. O que deixa estarrecidas, ou deveria deixar, nossas mentes bem-pensantes é que essa identidade religiosa cresce e tem como maioria de seus membros mulheres trabalhadoras, em sua maioria negras.[viii] A resposta mais fácil, e, portanto, mais repetida, é a culpabilização das lideranças, vistas como perversas manipuladoras das desprotegidas massas incultas, daqueles que ainda não lograram sua própria iluminação e, portanto, seguem um mestre.

Contrário a este senso comum vai, para citar um entre muitos exemplos, o caso recente da “PL antiaborto”, da bancada evangélica, que teve 66% de rejeição entre mulheres evangélicas a partir de 16 anos.[ix] Não que os evangélicos sejam defensores da descriminalização do aborto, muito pelo contrário; mas como essa pauta não nasceu de dentro do campo evangélico, e sim da suposição de um político, sua rejeição demonstra que não se trata de dominação ou instrumentalização, e sim de adesão e coerência de expectativas. Reduzir o debate à “dominação” é um falseamento do problema que aponta para uma resposta fácil, a qual diz mais sobre quem as profere do que sobre o objeto em questão.

Voltando ao show de Caetano Veloso: afinal, o que dizia o louvor que tanto chamou sua atenção, a ponto de cantá-lo, sem mais explicações, em sua última turnê? No refrão, se canta:

Deus cuida de mim, na sombra das Suas asas
Deus cuida de mim, eu amo a Sua casa
E não ando sozinho, não estou sozinho
Pois sei: Deus cuida de mim[x]

A sensação de que Deus cuida da sua vida – portanto é soberano e delimita o futuro – está ligada ao “amar a sua casa”, amar a igreja. Sentir-se sob as asas do Altíssimo é mediado pela convivência com os outros que também se sentem filhos de Deus. Enquanto estão juntos, ninguém se sente sozinho, pois estão com aqueles que se chamam de irmãos, uma irmandade forjada desde a fundação dos tempos, tendo como irmão mais velho o Redentor do mundo, Jesus. Aí sim faz sentido acreditar que Jesus “cuida de mim” – a um só tempo, uma experiência individual e comunitária. Ainda na letra da música regravada, vemos:

Se na vida não tem direção
É preciso tomar decisão
Eu sei que existe alguém que me ama
Ele quer me dar a mão[xi]

A “decisão” é crucial para entender o sentimento que permeia a própria música e que lhe dava sentido. Trata-se de conversão, mudança de vida, ou, melhor, reorganização da própria disposição em relação à vida a partir dessa comunidade chamada igreja; nela se encontra a dinâmica de como lidar com seus afetos e desejos. Ao adentrar essa comunidade, o crente agora sabe que vive pelos desígnios de Deus, e, portanto, tudo que acontece em sua vida é resultado da vontade do soberano.

Parece haver certo padrão nas letras do cantor evangélico, que passam por uma descrição e também por um imperativo. A própria certeza de que “Deus cuida de mim” precisa ser repetida também para que se acredite nela. Outras músicas do mesmo autor também carregam letras similares, e não por acaso ele fez tanto sucesso, marcando a música gospel no Brasil.

Estamos falando, desse modo, de um artista que por muito tempo esteve ativamente relacionado a um sentimento evangélico, uma imaginação religiosa que dava sentido a uma comunidade de fé que se espalhava por todos os rincões do país. Nas letras de Kleber Lucas, essa comunidade solidificou sua própria experiência de oração; o sujeito lírico do cantor é quase sempre o sujeito que ora. Diante dos problemas da vida, o fiel encontra esperança para as desgraças na casa de Deus, sente a presença do Soberano e coloca sua vida à disposição para aquilo que imagina ser o projeto de Deus para o mundo.

No entanto, quando o cantor toca isso em um show que tinha a exata função de cultuar, em sentido quase religioso, de rememorar o Brasil que fora destruído pela avalanche da extrema direita. Seja lá o motivo real da adesão de Caetano Veloso ao louvor, é certo que desmanchou por algum tempo o momento de culto, trazendo outra música religiosa, mas essa cantada por outra comunidade imaginada, que clama a Deus por outra nação.

O que nos interessa aqui é que as músicas do cantor gospel faziam sentido dentro de uma experiência de fé que passava por uma dinâmica comunitária, formando um campo, entre pentecostais e igrejas reformadas, em torno da imagem de redenção nacional: o avivamento. O avivamento é central na experiência religiosa evangélica desde sua fundação em 1734, com um avivamento liderado por Jonathan Edwards, pois ele é a demonstração histórica da ação de Deus, que não redime somente os corações, mas o próprio mundo.

Busca-se o avivamento, e rememoram-se os que já aconteceram, para provar ao mundo a realidade concreta da soberania de Deus. A ideia de um Brasil redimido por e para Cristo fundamentava a criação de um espaço comum entre grupos que antes não se entendiam como “irmãos”. Assim, desde 1994, com o começo das Marchas para Jesus no Brasil, os evangélicos proclamam um novo tempo para o Brasil. Por certo uma nova imagem do Brasil que haveria de se construir na luta política.

Os que creem nesse Brasil Avivado, diferentes dos caetanistas ressentidos com os rumos do mundo, que lamentam a morte do Brasil das suas idealizações, vivem como se o novo estivesse batendo à porta, como se cada segundo fosse uma pequena porta por onde o Messias poderia entrar. Uma experiência do tempo, desse modo, marcada pela expectativa de que tudo há de ser redimido em Cristo. Aquela mesma esperança, gestada no ato de se despojar de si em entrega ao que se entende como Deus soberano, também aponta para uma redenção que passa a ser vivida na cena nacional.

É certo que, entre uma música de Kleber Lucas e outra, os evangélicos também ouviam o grupo Diante do Trono, o mais importante produtor da indústria gospel no Brasil, cantando sobre a redenção do país. Em suas músicas, a redenção nacional, por meio de seu avivamento, ganhava versos e refrões. Kleber Lucas, em suas letras, apresenta uma parte do sentimento evangélico, a cena interior que molda o despojamento do sujeito diante do poder de seu Deus. Outros grupos musicais, como o já citado, davam voz à expectativa que surgia dessa entrega. Ao todo, a própria vida ganhava sentido.

Trabalhar, estudar, acordar cedo e pegar um transporte público caótico, fazer o que é preciso para continuar vivo, encontrava sentido nessa imagem do Brasil como lugar de Deus, onde a plenitude dos tempos finalmente chegou. Mas, enquanto Jesus não volta, há que se trabalhar para avivar a nação, tornando visível a presença dele na história.

Talvez tenha sido algo similar a isso que Caetano Veloso viu na biografia do nosso cantor gospel. Os caetanistas viram barbárie onde seu ídolo encontrou experiência de esperança. Importa mais, para nós, entender o que passa no íntimo dessas pessoas que encontraram, nas músicas-orações do cantor gospel, sua própria vida. Está aí algo que organiza certo sentimento evangélico de Brasil.

*André Castro é mestre em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Autor, entre outros livros, de Breve história da Teologia da Libertação protestante (Editora Machado).

Notas


[i] Lançada em 1999, no terceiro álbum do cantor, a música dá título ao próprio álbum.

[ii] Spyer, Juliano. Caetano explica a evangélicos por que se reaproximou da religião. Folha de S.Paulo, São Paulo, 22 set. 2024. Ilustríssima. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/09/caetano-explica-a-evangelicos-por-que-se-reaproximou-da-religiao.shtml

[iii] MAZZA, Luigi. A síndrome caetanista. Piauí edição 212, Maio 2024.

[iv] FELTRAN, Gabriel. Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013-). Novos Estudos Cebrap, São Paulo, 2022. Disponível em: https://novosestudos.com.br/formas-elementares-da-vida-politica-sobre-o-movimento-totalitario-no-brasil-2013/#gsc.tab=0.

[v] Ibid, p. 31

[vi] Spyer, Juliano. Caetano explica a evangélicos por que se reaproximou da religião. Folha de S.Paulo, São Paulo, 22 set. 2024. Ilustríssima. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2024/09/caetano-explica-a-evangelicos-por-que-se-reaproximou-da-religiao.shtml.

[vii] MAZZA, Luigi. A síndrome caetanista, Piauí edição 212, Maio 2024. p. 31

[viii] Balloussier, Anna Virginia. Mulheres negras são maioria nas igrejas evangélicas paulistanas, aponta pesquisa Datafolha. Folha de S.Paulo, São Paulo, 15 jul. 2024. Cotidiano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/07/mulheres-negras-sao-maioria-nas-igrejas-evangelicas-paulistanas-aponta-pesquisa-datafolha.shtml.

[ix] Blum, Bárbara. “2 em cada 3 brasileiros são contra o PL antiaborto por estupro, diz Datafolha”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 5 jun. 2024. Equilíbrio e Saúde. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/06/2-em-cada-3-brasileiros-sao-contra-o-pl-antiaborto-por-estupro-diz-datafolha.shtml.

[x] Lucas, Kleber. Deus cuida de mim. In Lucas, Kleber Deus cuida de mim. Rio de Janeiro: Mk Music, 1999. Faixa 12.

[xi] Lucas, Kleber. Deus cuida de mim. In Lucas, Kleber Deus cuida de mim. Rio de Janeiro: Mk Music, 1999. Faixa 12.


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