Do mercantilismo à pós-globalização

Imagem: Jan van der Wolf
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Por ARTHUR OSCAR GUIMARÃES*

Uma hipótese já considerada por alguns estudiosos, revela que as medidas anunciadas pelo governo Donald Trump podem desconsiderar ou mesmo desconhecer o seu real alcance e significado para o comércio mundial

1.

No momento que o mundo enfrenta a distopia[i] norte-americana, principal característica desse início da nova administração à frente da Casa Branca, uma explicação possível para a adoção do abrangente tarifaço comercial – recentemente imposto a diversos países – reside em pressupostos mercantilistas vis-à-vis as exigências da pós-globalização.

Para compreensão do que está por trás das recentes medidas econômicas mencionadas, em particular as taxações impostas pelos Estados Unidos da América às diversas nações do mundo, podemos recorrer às teorias mercantilistas de Thomas Mun (1571-1641), presentes na obra Um discurso de comércio, da Inglaterra às Índias Orientais (1621),[ii] quando o então mercador argumentou que, desde que as exportações totais da Inglaterra excedessem suas importações totais no processo de comércio visível[iii], a exportação de barras de ouro não era prejudicial aquela nação.

Em pleno século XXI, entendamos as ‘barras de ouro’ da Inglaterra como sendo os dólares hoje pagos pelos norte-americanos por suas necessárias importações. Thomas Mun ressaltava que o dinheiro ganho com a venda de produtos reexportados das Índias Orientais excedia a quantidade de barras de ouro originalmente exportadas com as quais esses produtos foram comprados e, dessa forma, a Inglaterra seria cada vez mais rica.

Não creio que a equipe econômica norte-americana conheça ou tenha entendimento completo das teorias de Thomas Mun, mas as medidas recentes têm, certamente, tudo a ver com o mercantilismo do século XVII. A confusão criada no comércio mundial globalizado, em tempos de Inteligência artificial, ChatGPT, DeepSeek e modernas formas de comunicação, veio a público em algo similar a uma tábua de pedra bíblica, com tarifas escritas em um cartaz, como um papiro, significativo de quão ‘fora do seu tempo’ são as tais medidas anunciadas no “Dia da libertação”, atemporalidade que certamente assustaria o mercantilista Thomas Mun.

Mas a cada dia que passa, o que causou estranheza a diversos economistas e demais especialistas em todo o mundo, parece não ter chegado ao fim. O presidente norte-americano disse que a reação chinesa poderia levar seu governo a impor grandes tarifas adicionais a Pequim se aquele país não rescindisse sua resposta às tarifas dos EUA. Tanto nos EUA, como no mundo asiático, as ações das grandes empresas mundiais têm sofrido grandes oscilações nas Bolsas de Valores, com quedas astronômicas, em um movimento ainda sem um final claro.

Prestes a completar três meses de mandato em sua segunda difícil tentativa de reverter o declínio do império norte-americano, não há como esquecer o conteúdo do discurso de posse, quando Donald Trump explicitou: “Seremos uma nação rica novamente. Iniciarei imediatamente a revisão do nosso sistema comercial para proteger os trabalhadores e as famílias americanas. Em vez de tributar os nossos cidadãos para enriquecer outros países, iremos impor tarifas e tributar países estrangeiros para enriquecer os nossos cidadãos”.[iv]

2.

Uma hipótese já considerada por alguns estudiosos, revela que as medidas anunciadas pelo governo Donald Trump – em tão pouco espaço de tempo – podem, de fato, desconsiderar ou mesmo desconhecer o seu real alcance e significado para o comércio mundial. A despeito da recente afirmação do economista, Nobel de Economia em 2008, Paul Krugman – Stop Looking for Methods in the Madness,[v] não há razão palpável para acreditarmos em decisões ingênuas e pueris. Há método em tudo que o mundo está assistindo: “Haverá um pequeno distúrbio, mas não nos importamos com isso”, disse Donald Trump. “Não será grande coisa.”[vi]

Dentre outras, ao menos duas dimensões ganham maior relevo nesse momento: a dimensão econômica, aparentemente insuficiente para explicar o alcance de tudo que se viu até aqui, e a dimensão geopolítica, que poderá completar o cenário da crise que se vislumbra.

Seja resultado de uma certa insanidade, seja de um escopo (mais apropriadamente, um alvo) a ser alcançado como um bullet pela economia norte-americana, o cenário que se pretende inaugurar indica que algo está ‘fora da nova ordem mundial’:

“Precisamos da Groenlândia para a segurança internacional. Precisamos dela. Devemos tê-la”, disse Donald Trump. “Odeio dizer isso assim, mas vamos ter que tomar posse deste imenso território ártico”, afirmou Trump a um apresentador de podcast.

E mais: “Os navios americanos são severamente sobrecarregados e não são tratados de forma justa de qualquer forma, incluindo a Marinha dos Estados Unidos. E o mais importante: a China opera o Canal do Panamá, e nós não o demos à China, demos ao Panamá. E vamos tomá-lo de volta”.

Não pretendemos avançar numa análise geopolítica. As palavras dizem por si. Mas cabe aqui destacar, de forma mais específica, alguns aspectos das tarifas impostas pelos EUA aos diversos países. Pelo efeito multiplicador dos problemas que os norte-americanos virão a colher em prazo relativamente curto (basta verificar as recentes manifestações pelo mundo e no próprio território norte-americano), pois a inclusão na lista das taxas alfandegárias de 25% sobre “todos os automóveis que não sejam fabricados nos Estados Unidos” trata-se de medida que abrange peças sobressalentes, e em razão da integração internacional da cadeia produtiva automotiva, essa será a medida mais devastadora sobre os preços de peças e automóveis no mercado interno dos EUA.

3.

E o Brasil? Que cenário se vislumbra no que agora os especialistas estão denominando de pós-globalização? Já alertávamos, em 1997, que era “preocupante a forma como o País (estava) se inserindo na economia globalizada. Sem uma retaguarda de capacitação tecnológica”. Nossa atenção se dirigia para o fato de que haveria “uma alteração da (então) dependência econômica para uma dependência tecnológica em relação aos países desenvolvidos”.[vii]

Fizemos bem menos do que podíamos nesses quase 30 anos, pois é fundamental que o país tenha uma outra postura em relação à necessidade imperiosa de uma política nacional de ciência, tecnologia e inovação, dinâmica e voltada ao crescimento dos investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), mas necessariamente solidária com os interesses da maioria de sua população, os segmentos mais necessitados.

É possível afirmar hoje, sem medo de errar, que estamos na antevéspera de uma das maiores crises[viii] mundiais dos últimos 50 anos. Todavia, é inegável que a crise atual – a despeito da importância de outros mercados – terá como epicentro a relação entre os EUA e a China. O quadro abaixo mostra a importância desses dois mercados para a economia brasileira, em específico para nossas exportações – inclusa a Argentina, o nosso maior parceiro comercial na América do Sul.

Ganha destaque nos dados apresentados, o salto dado pelas exportações brasileiras para a China em 25 anos (1999: US$ 0,674 bi; 2023: US$ 104.325; estamos falando em 15.378% de crescimento)! Já no caso dos EUA, verifica-se uma certa estabilidade entre 2010/2020, com considerável crescimento nas exportações brasileiras para os norte-americanos, que praticamente dobraram nos últimos cinco anos, durante o Governo Biden (2020: US$ 21 bi; 2024:  US$ 40bi). No período de 1999/2023 nossas exportações para os EUA cresceram 246,2%.

Nesses termos, ambos os países são fundamentais para o Brasil e ganham relevo para a economia brasileira, tanto em termos relativos, como absolutos, pois com a inclusão da Argentina, que permanece como a nossa principal parceira comercial no âmbito do Mercosul, na média do período considerado estamos falando em algo em torno de 40% das nossas exportações.

O Gráfico, a seguir, é baseado nas exportações do Brasil (1997/2024), e permite uma perfeita visualização: (i) do crescimento exponencial de nossas exportações para a China; (ii) do crescimento das exportações brasileiras para os EUA (particularmente durante os últimos 5 anos); e (iii) da estabilidade das exportações para a Argentina, particularmente nos últimos 15 anos.

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços
Secretaria de Comércio Exterior
https://comexstat.mdic.gov.br/pt/geral

Observação fundamental em relação ao nosso quinhão no tarifaço da tábua trumpista é que a taxação de 10% sobre os nossos produtos soou como um mal menor em tempos difíceis e de conversas comerciais aparentemente ainda emperradas. O caso brasileiro teve espaço diplomático privilegiado, com atenção específica para as tarifas sobre o aço e o alumínio exportados pelo Brasil para os EUA. No futuro breve os especialistas continuarão debruçados sobre o caso da China, em que as tarifas baixadas se somam às tarifas que já existiam. A confusão nas informações ainda é muito grande.

No caso da Europa, a título de exemplo, cabe destacar a decisão norte-americana em relação ao álcool: “Depois que a Europa prometeu tarifas retaliatórias, Donald Trump lançou uma tarifa de 200% sobre o álcool europeu.”[ix]

O jornal Financial Times, de forma peremptória, afirma que em razão das “tarifas recíprocas contra o resto do mundo os EUA caminham para uma recessão já neste ano”: “Donald Trump tomou posse há dez semanas. Ele herdou uma economia com inflação estável e juros em queda, mas com crescimento ainda projetado para superar o de qualquer grande concorrente neste ano. Mas a cada novo ataque de Trump à economia mundial, as previsões de crescimento para os EUA são reduzidas”. [x]

4.

Como é o nome do que estamos assistindo? Crise. “A crise é frequentemente vista como uma oportunidade, especialmente na cultura chinesa, onde o caractere para crise tem um duplo significado que inclui oportunidade. Cada crise pode trazer desafios, mas também pode abrir portas para crescimento e inovação”.[xi]

Ao Brasil é dada a oportunidade, na crise atual, de estruturar políticas públicas efetivas, que sejam mais que planos e relatórios que acabem dormitando em prateleiras da burocracia. Necessitamos, mais que em qualquer outro momento, de instrumentos efetivos que busquem gerar mais produtividade e competitividade aos produtos nacionais. Aumentar nossas exportações, sim. Criar novos mercados, sim. Diversificar nosso leque de parceiros comerciais pelo mundo, sim, pois novos destinos aos produtos brasileiros serão fundamentais na crise.

Mas não se pode esquecer, todavia, que a crise gerada com o tarifaço da tábua de pedras indica haver um ‘ponto crítico de perigo’: a recessão mundial. Essa será sinônimo de menos investimentos, menos produção, menos empregos, menos renda ao trabalhador. Como diz Caetano Veloso, ‘é preciso estar atento e forte’.

*Arthur Oscar Guimarães é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).

Notas


[i] Qualquer descrição imaginativa de um país, de uma sociedade ou de uma realidade em que se vive em condições de extrema opressão ou em regime totalitário, por oposição à utopia. In: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/distopia/ (Distopia | Michaelis On-line).

[ii] “Thomas Mun foi um dos primeiros mercantilistas. Em outras palavras, ele acreditava que as reservas de ouro de uma nação são a principal medida de sua riqueza e que os governos deveriam regular o comércio para produzir um excesso de exportações sobre as importações, a fim de obter mais ouro para o país.”. In ttps://www.britannica.com/money/Thomas-Mun (Thomas Mun – Brasil | Comerciante, Comércio, Finanças | Dinheiro da Britannica).

[iii] Aquele que envolve a exportação, importação e reexportação de bens em vários estágios de produção.

[iv] TRIBUNA, Mara. O que disse Trump: as principais declarações do novo Presidente em discurso direto. In https://expresso.pt/internacional/eua/2025-01-20-o-que-disse-trump-as-principais-declaracoes-do-novo-presidente-em-discurso-direto-33a31826.

[v] Parem de procurar método na loucura. In: https://jlcoreiro.wordpress.com/category/uncategorized/ . Uncategorized | José Luis Oreiro

[vi] Por que Trump quer mais tarifas? Veja o que ele já disse sobre as importações dos EUA. In https://www.msn.com/pt-br/dinheiro/outro/por-que-trump-quer-mais-tarifas-veja-o-que-ele-já-disse-sobre-as-importações-dos-eua/ar-AA1C9lOQ?ocid=msedgntp&pc=U531&cvid=319496a343f74f1498cd5a540ce677ff&ei=17

[vii] “País corre risco de perder mercado na globalização”. Entrevista concedida por A.O. Guimarães ao Diário do Nordeste. NEGÓCIOS. Tecnologia. Fortaleza. Ceará. Sexta-feira, 31 de janeiro de 1997; p. 3.

[viii] A palavra crise vem do grego, krisis, significa decisão. Em chinês, o ideograma para crise fala de ´ponto crítico de perigo`. In COSTA, Melissa Andrade. Crise ou Oportunidade: questão de escolha. Em 13 de agosto de 2020. In https://acropole.org.br/artigos/sociedade-valores/crise-ou-oportunidade-questao-de-escolha/

[ix] In https://www.washingtonpost.com/business/interactive/2025/trump-tariffs-enacted-effect-threatened/ E o jornal complementa: “Trump anunciou uma tarifa de 10% sobre todos os produtos, além de um imposto de importação punitivo adicional sob medida aplicável a aproximadamente 60 países.” (01.abril.2025)

[x] LUCE, Edward. Trump 2.0, as dez semanas que abalaram o mundo; 1 de abril de 2025. In https://valor.globo.com/mundo/noticia/2025/04/01/ftanalise-trump-mantem-eua-firmes-no-caminho-da-autodestruicao.ghtml

[xi] COSTA, Melissa Andrade. Op. Cit.


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