Dois livros sobre a União Soviética

Tatiana Iablónskaia. “Grão”, 1949
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Por LENINA POMERANZ*

Comentário sobre as obras de Lincoln Secco e Sheyla Fitzpatrick

Breve história da União Soviética

Sheila Fitzpatrick é australiana, nascida em Melbourne em 1941. Na contracapa do livro agora republicado informa-se que leciona atualmente na Universidade Católica da Austrália, sendo também professora honorária da Universidade de Sydney. É autora de uma dezena de livros, entre os quais está o objeto desta resenha.

O livro é dedicado a três sovietólogos, falecidos durante o período de escrita do livro: Jerry Hough, seu ex-marido entre 1975 e 1983; Stephen F. Cohen, que foi um dedicado estudioso dos assuntos soviéticos-russos na Universidade Columbia, New York; no seu agradecimento, ela diz que ele foi um crítico e rival, tornando-se um amigo com o passar dos anos; e Seweryn Bialer, que ela informa ter sido seu interlocutor e ter lhe propiciado uma perspectiva sobre assuntos comunistas, por ter sido um deles.

Além da Introdução e da Conclusão, o livro é composto por sete capítulos, o último dos quais dedicado à “queda”. A sua postura, segundo declara na Introdução é a do antropólogo histórico. Segundo ela, “o que o socialismo possa significar na “teoria”, algo que na década de 1980 ganhou o nome desajeitado de “socialismo realmente existente” emergiu “na prática” na União Soviética”. O propósito do livro seria então contar a sua história, do nascimento à morte. Tendo em conta a restrição de espaço, esta resenha vai restringir-se basicamente aos capítulos 3 (o Stalinismo) e 4 (A guerra e suas consequências), ambas centradas no papel histórico desempenhado por Joseph Stalin nos anos em que esteve no poder.

No centro da revolução de Stalin estava a industrialização, não a coletivização da agricultura; entretanto, economistas sustentavam que a única maneira de financiar a industrialização era “espremer” o campesinato. Foi então lançado, no inverno de 1929, um programa de coletivização total da agricultura, tornando as fazendas coletivas recém-criadas os únicos comerciantes legais de grãos e o Estado seu único cliente. Esse programa foi acompanhado por um processo paralelo de “desculaquização”, que tinha como lema a “liquidação dos culaques como classe”. Cerca de 4% de todas as famílias camponesas (de 5 a 6 milhões de pessoas) foram vítimas da desculaquização.

Com a “Revolução Cultural”, a autora completa o conjunto dos três aspectos da chamada “Grande Ruptura”, assim chamada por Stalin, destacando o que chamou de ação afirmativa, na qual estavam também incluídas as mulheres. Segundo ela ainda, a ação afirmativa era algo novo no cenário internacional em 1930, não havendo sequer um termo em língua inglesa para descrevê-la.

O desenvolvimento econômico da União Soviética realizou-se com base em Planos Quinquenais. O primeiro deles representou um esforço inicial de planejamento econômico e concentrou-se no rápido desenvolvimento da indústria pesada, particularmente mineração, metalurgia e maquinaria. Sem ter muito capital, o Estado apelou para a mão de obra barata: mulheres, desempregados urbanos e culaques, cuja deportação foi considerada pela autora como um dos fatores mais significativos desse processo. Além disso, milhões de jovens camponeses deixaram as aldeias, alguns fugindo da desculaquização, outros buscando oportunidades de emprego nas cidades. Doze milhões mudaram-se permanentemente das aldeias para a cidade apenas no período de 1928 a 1932.

Para tornar esse processo mais próximo das discussões que se realizam hoje em dia em torno da Ucrânia, vale indicar a opinião da autora, de que um dos debates mais acalorados e de longa duração foi sobre focar o desenvolvimento da Ucrânia, que tinha infraestrutura mais moderna, e, além disso atendia aos imperativos de segurança, um dos objetivos prioritários do país. Em função deles, Stalin estava inclinado a favorecer o coração russo/ucraniano em detrimento de regiões não eslavas para a implantação de fábricas relacionadas com a defesa.

Durante o primeiro Plano Quinquenal, a Rússia alcançou praticamente o pleno emprego, tendo o desemprego desaparecido do repertório soviético de problemas sociais nos sessenta anos seguintes. O grande fracasso, em sua opinião, foi a coletivização, que atrasou a agricultura por décadas. Na memória de muitas pessoas, porém, a década de 1930 foi um momento maravilhoso e emocionante para se crescer, criando um senso de propósito coletivo, que deveria ser espelhado na literatura e nas artes pelo “realismo socialista”. Havia até sinais de relaxamento político. Foi estabelecida uma nova Constituição, que garantia todas a liberdades básicas, inclusive as de expressão e reunião. De acordo com ela, vários candidatos poderiam candidatar-se nas eleições próximas.

Mas em meados da década de 1930, também ocorreram tendências no sentido oposto. Uma delas a ameaça de guerra, com a ascensão da Alemanha nazista na Europa Central. Outra, foi interna, decorrente do assassinato de Sergei Kirov, líder do partido em Leningrado, em dezembro de 1934. Zinoviev e Kamenev foram julgados por esse assassinato e condenados à morte. Outra foi o processo de terror, que a autora chama de “Grandes Expurgos”, que teve entre os acusados de sabotagem da indústria por seus líderes, o vice de Ordjonikidze no Comissariado do Povo da Indústria Pesada.

Este suicidou-se, depois de lutar inutilmente nos últimos meses de 1936, para não assistir à destruição do grupo de industrialistas que ele havia criado. Em 1937, o expurgo atingiu o marechal Mikhail Tukhatchevski e praticamente todo o alto comando militar, condenados numa corte marcial fechada por conspiração com os alemães e sumariamente executados. Em 1938, montou-se um terceiro julgamento encenado em Moscou contra Bukharin e Iagoda.

Após os grandes expurgos, os altos escalões de todas as instituições passaram a ser em larga escala ocupados por noviços, muitas vezes formados por recém-formados vindos da classe baixa, com carteira do partido tirada às pressas durante o treinamento. A memória institucional havia sido perdida, embora temporariamente, pois as pessoas que assumiram os postos aprenderam a exercê-los.

A autora preferiu deixar para um capítulo à parte, a guerra e suas consequências. Começa indicando a assinatura, por Viacheslav Molotov, então recém nomeado Ministro das Relações Exteriores do país, do Pacto de não Agressão com seu equivalente alemão, von Ribbentrop. O documento garantia que os dois países não se atacariam e protocolos secretos reconheciam suas respectivas esferas de interesse na Europa Oriental.

Nesses protocolos, a União Soviética reconheceu explicitamente o direito dos alemães de assumirem o controle da Polônia ocidental em troca do direito soviético de fazer o mesmo nas províncias orientais cedidas à Polônia em 1921. Com a imprensa soviética muda em relação ao Pacto, o público soviético recebeu a mensagem de que se tratava de uma aliança de conveniência.

A incorporação do Leste da Polônia foi a primeira aquisição territorial soviética desde o fim da guerra civil. Os territórios poloneses foram divididos entre as repúblicas da Ucrânia e da Bielorússia, acrescentando 23 milhões de ex-cidadãos poloneses à população. Alguns meses depois, a tropas soviéticas ocuparam os três países bálticos, antigas províncias do império russo que haviam se tornado independente entre as guerras, bem como partes da Bessarábia. O resultado foi a adição de mais quatro pequenas repúblicas à União Soviética: Letônia, Lituânia. Estônia e Moldávia.

Em junho de 1941 os alemães moveram suas tropas até a nova fronteira soviética, o que, por si só, indicava a possibilidade de um ataque. Pelo menos 84 avisos de ataque foram recebidos, mas Stalin, desesperado para evitar qualquer “provocação” que os alemães pudessem usar como desculpara para atacar, recusou-se a aprovar uma resposta militar. Em 22 de junho, a Operação Barbarosa começou com um ataque maciço alemão, que destruiu a maior parte da força aérea soviética no solo, avançou as forças da Wehrmacht através das fronteiras com uma velocidade assustadora e fez com que as tropas soviéticas e a população recuassem numa retirada e evacuação desordenadas.

Em 3 de julho, Stalin foi ao rádio para salvar a Rússia dos invasores estrangeiros, não como uma guerra para salvar o primeiro estado socialista do mundo. Milagrosamente Moscou não caiu em mãos dos alemães em outubro, e muitas repartições do governo e muitos moradores – cerca de 12 milhões de pessoas no final de 1942- já tinham sido evacuados para o Leste. Os cidadãos restantes de Moscou estavam servindo como voluntários em unidades de defesa popular, mas muitos atribuíram o sucesso soviético acima de tudo ao “General Inverno”. No final de 1942, 40% do território e 45% da população da União Soviética estavam sob ocupação alemã.

O ponto de virada ocorreu em Stalingrado, em janeiro de 1943. Após semanas de combate corpo a corpo nas ruas da cidade, o exército soviético conseguiu derrotar as tropas alemãs, iniciando sua retirada para Oeste, que durou mais de um ano. Apesar dos ardentes apelos dos soviéticos, nenhuma segunda frente foi aberta no Ocidente. A vitória soviética na Manchúria levou o Japão, aliado da Alemanha, a assinar um pacto de neutralidade em 1941. Em casa, Stalin representava uma figura nova e carismática no cenário mundial. Uma mudança semelhante na opinião pública soviética, elevou a popularidade dos Aliados, particularmente dos Estados Unidos e Roosevelt.

A condução soviética da guerra foi previsivelmente implacável, declarando Stalin que qualquer um que se deixasse aprisionar pelo inimigo era um traidor, cuja família, assim como ele próprio, estaria sujeita a punição. O avanço na Polônia fez da União Soviética a primeira potência aliada a alcançar e libertar os campos de concentração nazistas, Majdanek em julho de 1944 e Auschwirtz, em janeiro seguinte.

As perdas soviéticas durante a guerra foram enormes e a tarefa da reconstrução formidável. As perdas populacionais eram estimadas em 27 ou 28 milhões de pessoas. No país como um todo, quase um terço do estoque de capital do pré-guerra havia sido destruído; nos territórios ocupados pelos alemães, foram dois terços.

O dia da Vitória foi comemorado pela primeira vez em junho de 1945, na Praça Vermelha, em Moscou. A União Soviética tinha sido um pária no cenário internacional antes da guerra, mas no fim dela era uma superpotência emergente.

Os Estados Unidos e a União Soviética seriam as superpotências do pós-guerra, não mais aliados, mas antagonistas ideológicos e geopolíticos. Em 1947, Churcil, já fora do poder, mas com o apoio de líderes americanos e britânicos, indicou em um discurso a existência de uma ”cortina de ferro”, que dividia o continente. Em 1948, o conflito sobre Berlim quase se transformou em guerra e a preocupação ocidental com as intenções soviéticas aumentou acentuadamente quando a União Soviética testou com sucesso sua própria bomba atômica.

Durante a guerra, acalentou-se a esperança de que a vitória, se viesse, traria alívio e melhora geral, mesmo que se soubesse que na realidade, as coisas não seriam fáceis, tendo em vista a tensa situação internacional e os enormes desafios da reconstrução econômica, realizada sem auxílio externo. O número de membros do Partido Comunista crescera significativamente – quase 2 milhões. À medida que o orçamento do Estado se expandia nos anos do pós-guerra, também aumentaram os gastos com assistência social, educação e saúde pública. Houve uma liberalização surpreendente em várias esferas na vida no pós-guerra. Mas outro tipo de liberalização podia ser discernido no florescimento do suborno e da corrupção.

Numa dialética familiar, tendências liberais e repressivas coexistiram nos últimos anos de Stalin, sendo o mais alarmante de tudo o crescimento do antissemitismo. A linha oficial condenava-o, mas o Comité Judaico Antifascista, criado durante a guerra foi dissolvido e seus principais membros foram presos.

As tensões internacionais vinham crescendo constantemente entre a duas superpotências. Vista em retrospecto, dá impressão de uma reação exagerada, mas isso não diminui a realidade do medo de “irmos para a guerra”, de Stalin. Este faleceu em 5 de março de 1953. Segundo a autora, mesmo antes de Stalin dar o último suspiro, o Politburo se reuniu no gabinete dele no Kremlin, para decidir a composição do novo governo e redigir o comunicado à imprensa. Era a normalidade num grau quase bizarro. A União Soviética tinha uma “nova liderança coletiva (SF), na verdade o Politburo de Stalin, sem Stalin.

História da União Soviética

Lincoln Secco é professor livre-docente de história contemporânea na Universidade de São Paulo.

O livro, além do prefácio e de uma linha do tempo, na qual insere, por data de ocorrência, os fatos históricos que marcaram a Rússia, desde 2 de março de 1917, com a abdicação de Nicolau II em favor do grão-duque Miguel, até 1991, data da dissolução oficial da URSS, tem 7 capítulos, conclusão, glossário e bibliografia. Segundo o professor Lincoln Secco, o livro, por ser breve e didático, restringe-se a alguns momentos decisivos da história do país.

Para compor esta resenha em termos com a escrita sobre Sheila Fitzpatrick, ela terá como tema o Capítulo IV – O Stalinismo. Ele começa de forma prosaica, com a informação de que Khruschov, secretário geral do PCUS, numa reunião com militantes na qual leu seu famoso relatório sobre os crimes de Stalin, recebeu por escrito a pergunta de um deles, indagando porque o novo secretário geral não denunciara tudo aquilo na época de Stalin. A resposta veio com uma indagação: “quem assina a pergunta?” Como ninguém respondeu, Khruschov disse: “Aí está a resposta. Ficávamos em silêncio por medo”.

No dia 25 de fevereiro de 1956, Nikita Khruschov leu no XX Congresso do PCUS o famoso “relatório secreto” que, segundo o Lincoln Secco, marcaria o processo conhecido por “desestalinização”. A análise interna do documento, assim como a externa mostrarão que ele não era, nem tinha a intenção de ser secreto.

O stalinismo foi um termo cunhado pelos adversários de Stalin. Sendo hegemônicos no movimento comunista internacional, os stalinistas raras vezes se assumiram como tais, simplesmente se autodenominando como “comunistas”. Depois do XX Congresso do PCUS, mundialmente usou-se a expressão “desestalinização” e assumiu-se que entre Lenin e Khruschov teria havido outro regime. O relatório defendeu uma “volta a Lenin” e nisso também, segundo o professor Secco , está implícita a ideia de um desvio do curso “objetivo” da história soviética.

Como o marxismo-leninismo oficial dos anos 1940 afirmava a primazia da produção física na explicação dos fenômenos e a ação humana como um reflexo que no máximo regia sobre a base econômica, a teoria poderia ser usada tanto para condenar como para apoiar qualquer política voluntarista. Objetivismo e subjetivismo se sucediam. O voluntarismo e o materialismo coabitariam o pensamento stalinista. Se por um lado, a ideologia tudo podia transformar, por outro as ações humanas estavam determinadas rigidamente por leis de desenvolvimento histórico.

Como “técnica política”, o stalinismo ultrapassaria seu contexto de origem (a União Soviética dos anos 1930 – LS). O professor Secco diz no texto considerá-lo um fenômeno circunscrito à União Soviética e que exerceu, mais que influência, também um controle sobre o movimento comunista internacional.

Sobre sua gênese, o stalinismo foi visto ora como “revolução do alto”, ora como “reação termidoriana” ou “contrarrevolução burocrática”. O regime stalinista de fato não era totalitário, mas o professor Secco entende que na análise, “não podemos nos prender só à formalidade das decisões governamentais”. Ele cita o historiador Hobsbawm, que argumentou que a intolerância pragmática de Lênin não tinha limites, mas que as opiniões dele jamais passariam incontestadas e não há indícios de que ele aceitasse ou sequer tolerasse o culto secular que o stalinismo desenvolveu após sua morte.

Trotski ofereceu uma explicação materialista convincente nesse caso. O partido de 1917 havia desaparecido poucos anos depois. Ou seja, segundo ele, 70% dos membros aderiram durante a guerra civil. Zinoviev disse em 1923 que os membros do partido com filiação anterior a 1917 em toda a Rússia não somavam dez mil (aproximadamente 2,5% do total). Em 1927, ¾ dos membros haviam ingressado depois de 1923, e menos de 1% eram de veteranos que participaram da Revolução de Outubro. Os dados brutos do crescimento de membros do PCUS são indicados em uma tabela, discriminando entre membros efetivos e candidatos a membro.

Houve expurgos, inclusive na cúpula do exército, sendo uma de suas vítimas o Marechal Tukhatchevski, fuzilado sumariamente em 1938. Velhos bolchevique indicaram os processos de Moscou de 1936-1938 como o momento de consolidação do poder pessoal de Stalin. Somente em 1937 houve trezentas mil delações. O professor Secco reproduz dados descobertos por Moshe Lewin sobre a repressão stalinista, completados por descobertas de outros historiadores. De acordo com algumas fontes, nos anos de 1937 e 1938 foram registradas prisões de 1.371.392 pessoas, das quais 681.692 foram mortas. No Relatório Khrushvov, mencionado anteriormente, são indicados 1.500.000 presos e 68.692 mortos. Nos anos 1937-1938, os campos de trabalho forçado receberam cerca de 1.200.000 presos, aproximadamente. O próprio chefe da NKVD (serviço de segurança), Iagoda foi fuzilado em 1938 por seu sucessor Iejov, que depois seria também condenado à morte e fuzilado. O número total de condenados foi de aproximadamente 4 milhões de pessoas, das quais 800 mil foram condenadas à morte.

Com o falecimento de Stalin, o terror definitivamente desapareceu, mas não pararam as prisões por traição, espionagem, propaganda antissoviética, travessia ilegal de fronteira, contatos com estrangeiros, manifestações políticas, divulgação de segredos de Estado, contravenções e crimes comuns. As sentenças de morte deixaram de ser contabilizadas em centenas de milhares e caíram de 5.413 no período de 1959 a 1962 para 2.423 no período de 1971 a 1974. A prática do aborto foi legalizada novamente em 1955. As mulheres tiveram mais importância social reconhecida na União Soviética do que em qualquer outro país. Nos anos 1970 talvez fosse o único país do mundo em que elas constituíam mais da metade da força social de trabalho (51%).

Ao tratar do papel de Stalin na 2ª. guerra mundial, Lincoln Secco dedica boa parte dessa seção ao antissemitismo, que foi uma das acusações feitas a Stalin; este teria executado seus adversários judeus na luta pelo poder, como Trotski, Zinoviev e Kamenev, num quadro social em que o antissemitismo era popular na Europa. Em 22 de junho de 1941, os nazistas adentraram a União Soviética e em setembro cercaram Leningrado; em outubro, atacaram Moscou. Parte do governo abandonou a cidade, mas Stalin permaneceu em Moscou e, em 7 de novembro, no aniversário da Revolução, discursou nos subterrâneos do Metrô.

A batalha de Moscou terminou em janeiro de 1942. Entre 17 de julho de 1942 e 2 de fevereiro de 1943 deu-se a Batalha de Stalingrado. Ela simbolizou a viragem da guerra, mas segundo Lincoln Secco, se Moscou tivesse caído como Paris, a União Soviética estaria perdida. A acusação de que Stalin teria sido desastroso como condutor na segunda guerra mundial colide com a própria ideia de ele deter o poder absoluto no país. A vitória soviética e depoimentos de Churchill e Roosevelt fizeram de Stalin um líder real, qualquer que tenha sido sua verdadeira participação na condução da guerra.

Ao final desta, a União Soviética controlava uma parte da Europa e Stalin emergiu como líder antifascista nas capas das principais revistas estadunidenses, sendo elogiado por poetas do mundo inteiro. Segundo o Lincoln Secco, era um preambulo da Guerra Fria, mas que permitiu a sobrevivência do movimento comunista internacional e da União Soviética, embora não mais como centro revolucionário mundial e cada vez menos como modelo de sociedade.

O apogeu do stalinismo deu-se com a virada na política interna em 1934, assinalada pelo último momento de oposição a Stalin, no XVII Congresso do Partido. Havia contradições nas quais o stalinismo se movimentava: no interior a máxima repressão, no exterior, a busca de consenso. O assassinato de Kirov, secretário geral do PCUS em Leningrado, foi o estopim do grande terror. Em 1940 findava a fase do terror e se iniciava a da guerra; por fim, a última fase foi marcada pelo modelo para os novos países socialistas e pelo recrudescimento dos expurgos (1946-1953).

A desestalinização começou timidamente em 1952, com o próprio Stalin no XIX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. Ele morreu em 5 de março do ano seguinte e a sucessão, segundo o professor Secco, manteve um equilíbrio instável de forças no interior do partido. Reforçava-se a ideia de direção coletiva, com Malenkov na presidência do Conselho de Ministros. Em setembro de 1953, Khruschov foi confirmado como secretário geral do partido e, em 28 de abril de 1955, visitou Belgrado e retirou o Marechal Tito da excomunhão do movimento comunista internacional.

O Relatório Khruschov não foi confirmado pela liderança soviética; lido em 25 de fevereiro de 1956, ao término do Congresso do Partido, só foi publicado no New York Times, em versão inexata e mal traduzida. Na União Soviética só foi publicado na íntegra em 3 de março de 1989, num suplemento mensal do jornal Izvestia. Ele indicou o XVII Congresso do partido realizado em 1934, como a ruptura com o leninismo; e, exatamente porque as oposições já haviam sido derrotadas, criticava a ampliação da repressão, a substituição da luta ideológica pela violência administrativa e o uso de métodos extremos numa época em que a Revolução já havia triunfado.

Segundo o Lincoln Secco, retrospectivamente é possível avaliar o relatório como um erro geopolítico, do ponto de vista dos interesses da liderança soviética. Sem Stalin e o Komintern e sob a Guerra Fria, uma liderança coletiva seria a única possível, mas a crítica pública ao stalinismo só enfraqueceu a unidade comunista internacional. O Kominform foi extinto exatamente em 1956.

O Relatório Khruschov fez referências à crítica do papel da personalidade individual na História, com apoio em Marx; criticava o abandono da direção coletiva leninista e citava o “Testamento” de Lênin e textos de sua companheira Krupskraia, com críticas a Stalin. Mais tarde, as discussões historiográficas se concentraram em torno de como ocorreu a divulgação do Relatório. Foram feitas múltiplas cópias dele, que foram lidas em milhares de reuniões. A nova política resultou de um acordo na alta cúpula burocrática para terminar com a eliminação física de adversários e garantir a estabilidade do grupo dirigente; a sociedade se tornara mais complexa e a leitura do Relatório Secreto no XX Congresso do PCUS teve por objetivo controlar a discussão espontânea sobre o tema.

A desestalinização jamais foi completa, embora tivesse deixado para trás o terror em massa e permitisse uma tímida liberdade nas artes. Stalin continuou a ser citado como grande estadista, embora isso diminuísse com os anos. Bukharin e a velha guarda bolchevique não foram reabilitados naquele momento. Entre 1917 e 1939, das 214 pessoas que foram presidentes e vice-presidentes do Secretariado, do bureau político e de organização, do Comité Central e do Sovnarkom, 62% foram vítimas do terror e apenas 30% delas foram reabilitadas. Militantes que extrapolaram na crítica foram expulsos e demitidos dos seus empregos.

A vitória sobre o fascismo trouxe prestígio ao país; mas frequentemente se esquece, segundo Lincoln Secco, que a aliança antifascista resultou na desistência permanente dos comunistas ocidentais por uma opção revolucionária. A Guerra Fria arrefeceu os ânimos revolucionários europeus e, no Terceiro Mundo, as revoluções tinham mais um caráter de libertação nacional do que propriamente socialista.

Mas também nos países capitalistas, a esperança no futuro se tornou o pesadelo do século XXI. Os partidos de massa da esquerda, sindicatos estabelecidos e uma classe trabalhadora autoconfiante declinaram. Movimentos fascistas retornaram e o neoliberalismo atacou o Estado de Bem-Estar social.

*Lenina Pomeranz é professora aposentada da FEA-USP.

Texto publicado no Boletim Maria Antonia.

Referência


Sheila Fitzpatrick. Breve história da União Soviética. São Paulo. Todavia, nova edição, 2023.
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Lincoln Secco. História da União Soviética. Uma introdução. São Paulo, Maria Antonia, 2ª. Edição, 2023.


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